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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    51 Setembro 2019  
 
 
MAL-ESTAR NA CIDADE

ALEMÃO


JULIANA MARIN [i]


O primeiro encontro aconteceu em 2008 quando soubemos de um grupo de crianças e adolescentes em situação de rua que circulava pela região da Barra Funda, próximo ao Viaduto Antártica.

Nossa aproximação aconteceu aos poucos pois, para eles, éramos agentes da Prefeitura, moralistas em quem não se pode confiar.

As tentativas de aproximação geraram desconforto em alguns de nós, eram crianças e adolescentes em situação de rua, fazendo resistência ao vínculo, tentando nos amedrontar. Inventavam nomes, histórias e endereços, para nos confundir.

Ocuparam um terreno arborizado e construíram uma espécie de casa na árvore, onde guardavam seus pertences. Apesar de toda a desorganização aparente, se apresentavam como um coletivo coeso, com uma força de proteção e acolhimento que nos impactou. A cada dia “uma figurinha” nova surgia e nos confundia com sua história inventada.

Na medida em que nos aproximávamos, percebíamos que entre nós existia uma “distância de realidades” que não permitia a vinculação. Não conhecíamos sua linguagem, não fazíamos ideia do que significavam suas gírias e não acompanhávamos sua agilidade de pensamento. Eles se divertiam e se irritavam com nossa caretice.

Faziam algumas viagens para praia, como capitães da areia, de Jorge Amado, retornavam e relatavam as aventuras vividas muitas vezes causando inveja em nós, com nossas vidas monótonas.

Eram mantidos em situação de rua por um sistema cruel, que viola seus direitos e os desumaniza desde o nascimento. Crianças e adolescentes, entre 11 e 17 anos, invisíveis para muitos e, quando enxergados, vistos como perigosos e inconsequentes. Que adquiriam a autonomia e a cultura da rua, para dar sentido à sua existência. Ali eles pertenciam!

O afeto e a arte possibilitaram uma linguagem em comum. Aos poucos passaram a nos reconhecer como ponto de apoio. Construímos uma oficina de grafite, regada a reggae, risos e lanches. Assim conseguimos entender um pouco de suas histórias.

Alemão era o apelido do menorzinho deles, tinha 11 anos; junto com seu irmão mais velho, enfrentou violência doméstica e encontrou na rua lugar para existir. Era “marrudinho” e falava pouco. Rejeitava nossas propostas de acolhimento institucional, também não aceitava o retorno ao convívio familiar. Era discipulado por seu irmão de 17 anos, que por vezes foi levado pela PM para a Fundação Casa, por porte de maconha e outras infrações no entorno de onde o atendíamos.

As visitas que realizávamos na Fundação Casa para este irmão mais velho de Alemão permitiram nosso acesso ao contato com a família. E foram inúmeras tentativas frustradas de reaproximação. Alemão e o irmão ““optaram”” pela rua...

Nossa equipe usava toda a criatividade possível, se reinventava na tentativa de apresentar para Alemão e aos outros outras possibilidades de existência, que o futuro poderia ser melhor para eles. Mas aqui neste país, estes corpos não têm vez, são matáveis pelo mesmo Estado para quem trabalhamos.

Alguns anos mais tarde reencontro Alemão no mesmo local onde o conheci. Adulto, sozinho, pois seu irmão falecera aos 22 anos. Viver parecia não ter mais sentido para ele, com olhar vazio e fosco.

Em 05 de julho de 2019, o encontrei novamente na Barra Funda, mas desta vez já sem vida, com seu corpo congelado pelo frio. Aos 22 anos foi manchete de jornal como um dos 3 “moradores de rua” atingidos pelas baixas temperaturas de São Paulo. Num contexto em que as políticas públicas de garantia de direitos para a classe social que sustenta o sistema capitalista são vistas por muitos eleitores como “direito pra bandido”, o que justifica que tais políticas devam ser extintas, assim como essas vidas.





[i] Assistente social pela FAPSS, 2007. Estudante do 2o ano do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma do Departamento de Psicanálise; assistente social na Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae desde 2018.




 
 
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