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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    53 Abril 2020  
 
 
NOTÍCIAS DO DEPARTAMENTO

MEMÓRIA PARA UMA AÇÃO AFIRMATIVA: UMA CARTA AO DEPARTAMENTO DE PSICANÁLISE [1]



JEFFERSON SANTOS PINTO [2]



Gostaria de oferecer ao Sedes Sapientiae um olhar sensível e atento às relações raciais e outras provocações, olhar este que possa funcionar como um posicionamento político de uma ação afirmativa.

A princípio provoco sobre a possibilidade de a instituição Sedes Sapientiae desejar outros corpos ocupando seu espaço, além do perfil majoritariamente, e não raro, exclusivamente branco já constituído institucionalmente. Provoco o desejo de incluir corpos pretos em seu espaço.

Pensarmos sobre a possibilidade desse desejo institucional abre margem para pensar sobre a própria branquitude constituída no espaço, branquitude que, por efeito dela mesma, invisibiliza correlações de poder próprias das relações raciais. Romper seus limites impostos e indagar sobre o desaparecimento da diversidade, marcadamente brasileira, é trazer à consciência o processo de branqueamento que sistematicamente está recalcado ou reprimido pelo racismo estrutural e que ainda hoje se faz presente nas instituições em geral, incluindo o próprio Sedes.

Fomentar esta reflexão institucional pode ampliar o olhar sobre as forças das relações raciais e seu efeito sobre a própria instituição. Um espaço majoritariamente constituído por pessoas brancas denota um pacto entre os próprios de não comentarem sobre raça, pois não precisam se haver com as correlações de poder que se apoiam sobre as diferenças raciais, uma vez que estão entre iguais racialmente. E mesmo havendo o intuito de se debater sobre o racismo somente entre pessoas brancas, corre-se o risco de elaborar e produzir algo naturalizado pelo próprio privilégio. Podendo a instituição oferecer acesso e espaço a um grupo racial heterogêneo, desta forma torna possível a reflexão e produção intelectual de grupos não hegemônicos sobre diversos temas, inclusive sobre as próprias relações raciais.

Desejar que esses outros corpos transitem no espaço institucional é permitir que essas confluências com os já instituídos indiquem onde estão as contradições e potências da instituição. A permissão desse desejo possibilita a quem frequentemente não é racializado deixar-se ser e também desejar ser racializado, justamente para poder ser o outro em uma relação e, a partir disso, saber qual seu lugar de fala no laço social.

Mas para garantir esse espaço não é suficiente desejar e se permitir que estes corpos se identifiquem racialmente nos corredores da instituição. Necessário cuidado para que esses corredores sejam lugares de encontro não só de seus pares, mas principalmente de seus iguais. Incluir um único negro ou negra não é suficiente, nem mesmo se este único pensar sobre si como categoria filosófica. Incluir também seus iguais raciais é ampliar o espaço de possíveis encontros e trocas de "igual para igual".

Também importante frisar que tão necessário é subverter a lógica comum de inclusão engessada de se colocar corpos negros em espaços exclusivamente brancos, na qual, muitas vezes, para estes corpos não é permitida a expressão de sua subjetividade, estando quase como objetos em lugares predeterminados pela expectativa de confirmação de uma subjetividade enviesada. Antes mesmo de seres humanos serem nomeados negros, sequestrados e traficados da África até a América, eles já produziam mitos, organização social, nações, conheciam astros, economia, tecnologias e outras formas de trabalho. O tema do racismo, mesmo sendo urgente, não é tema exclusivo e único da população negra, mas se faz necessário para todos.

Outra reflexão pertinente é pensar sobre as condições objetivas impostas a este corpo negro que o impedem de sentir-se pertencente ao laço social e reforçam e confirmam um viés negativo sobre o mesmo. Não ter um lugar desejado pela sociedade, a não ser, na melhor das hipóteses, na música ou futebol, faz sobrar um estranhamento quando não se está na subalternidade, indigência ou crime. Esse cuidado tem sua importância por impedir que um corpo negro se torne um estranho, dentro dos limites da instituição, e que se reproduzam as condições existentes fora destes limites. A chancela institucional faz reconhecer, perante todos que estão ali, novos corpos para ocupar seus espaços. Este reconhecimento oficial da instituição passa a ser algo também necessário quando a sociedade não recebe todos os seus membros de forma igualitária e equânime.

Provocante pensar a inclusão deste corpo negro sem a exigência a estes corpos de produzirem mais do que os já instituídos, como contrapartida do acesso oferecido. Se de um grupo historicamente foi exigido trabalho forçado sem retorno material, ou seja, o trabalho escravo, contraditório seria exigir deste corpo negro algum pagamento em troca. Importante lembrar que a ação afirmativa é uma afirmação de incluir integralmente um grupo historicamente excluído e não uma vantagem ou privilégio a este grupo. Uma política afirmativa é aquela que afirma o desejo de transformação política, mesmo quando o Estado e parte da sociedade faz parecer que essa transformação seja inalcançável. Não basta não ser racista, é preciso ser antirracista.

E nesse sentido é oportuno a mim estar junto ao Sedes Sapientiae compondo meus passos dentro da psicanálise por saber que esta instituição contempla uma dimensão política na psicanálise brasileira e amplia as questões de gênero dentro dela. Também importante dizer que a oportunidade de ampliação do pensamento de raça e classe na psicanálise é essencial para mim enquanto pensador e produtor de conhecimento. Penso que a psicanálise seja uma das possibilidades de entender as dimensões das relações raciais, inclusive por seus aspectos subjetivos, irracionais e sobretudo inconscientes.

Com isso dito me sinto contemplado nas categorias que descrevi ao longo do texto como um corpo negro, morador da periferia de São Mateus, Zona Leste de São Paulo, de classe social popular, estudante das relações raciais, psicólogo clínico privado e clínico público, e psicanalista.

No campo do trabalho acabo de sair do terceiro setor para me dedicar ao meu trabalho autônomo na clínica privada na região da Consolação. Atendo na clínica desde os estágios básicos na clínica universitária em 2016, estendendo até hoje os atendimentos em psicanálise.

Além da clínica, trabalho para o Instituto AMMA Psiquê e Negritude, desde 2018, como psicólogo coordenador de grupos reflexivos sobre relações raciais. Nesta instituição também me formei, e nela permaneço em formação na coordenação de grupos reflexivos que se atualizam a cada ano no curso sobre Psicologia e Relações Raciais oferecidos por lá.

Trabalhei na Associação Comunitária Padre Moreira em um Serviço Público de Residência Inclusiva por dois anos como psicólogo, que me deu bases para entender a rede assistencial e de saúde da região de São Mateus para o público com Deficiência Intelectual e comorbidades, até final de 2019.

Estagiei por um ano e meio na Defensoria Pública do Estado e São Paulo de 2016 até 2017, atuando como mediador de conflitos em casos de racismo, preconceito e discriminação no Núcleo de Defesa a Diversidade e Igualdade Racial.

Também fiz parte do NAPRA (Núcleo de Apoio a População Ribeirinha Amazônica), desenvolvendo intervenções socioambientais com a população local (ribeirinha e indígena) de Nazaré em Rondônia (2016).

Também estive no Conselho Regional de Psicologia - SP contribuindo com o Grupo de Trabalho sobre Relações Raciais de 2014 a 2016 com debates, atividades em instituições e empresas, palestras sobre relações raciais, eventos no próprio CRP-SP com temáticas transversadas pelo racismo, entre outros.

Formei-me em Psicologia em 2017 por uma universidade particular. Enquanto estudante estive compondo um coletivo estudantil, que resultou, entre outras coisas, no incremento do conteúdo de relações raciais nas disciplinas do eixo da Psicologia Social, treinamento com seguranças para convívio com alunos negros, publicidade interna responsiva e inclusiva e maior celeridade em casos de racismo contra negros e LGBTQI+ dentro da universidade. Também coordenei uma extensão universitária de cine debate por um ano quando estudei parcialmente Psicologia na Federal do Piauí.

Estou compondo com mais duas psicólogas e um pedagogo psicanalistas uma Clínica Pública em São Mateus chamada Perifanálise, com o intuito de pensar como a identidade do ser periférico se atrela à psicanálise e como esta se aplica com sua terapêutica na periferia. Iniciamos os trabalhos em 2018 e estamos atendendo em uma galeria de artes Favela Galeria do grupo OPNI.

Participei como organizador de eventos do Centro de Referência da Assistência Social (CREAS São Mateus) como o I e II Seminário sobre Inclusão, Visibilidade e Empoderamento do PCD na Sociedade (2018 e 2019), Semana da Psicologia (2015), Semana da Consciência Negra (2014), I Semana Contra Opressão e Preconceito LGBTfóbico (2014) e I Semana da Luta Antimanicomial (2012), estes últimos na Universidade particular.

Estive nos cursos sobre Educação, Direitos Humanos e Tecnologias pela Wikimedia Foundation aprendendo e construindo páginas na Wikipedia sobre direitos humanos e educomunicação; Estéticas Africanas pela Casa das Áfricas/USP com estudos sobre o cinema de Ousmane Sembene; Cineclubismo pela escola Darcy Ribeiro de Cinema, que me deu chancela para criar um cinedebate na universidade; Artes Visuais Negras pelo Sesc pesquisando artistas brasileiros negros; Sociedade Brasileira do Sec. XX pela Livraria Expressão Popular, fazendo análises de conjunturas históricas brasileiras com bases no materialismo histórico dialético de Marx.

Em vista da conjuntura política atual, na qual o representante maior do país produz declarações racistas de forma livre e espontânea, vejo como oportuno privilegiar o caminho das relações raciais como aquele voltado para o diálogo entre as diferenças. Acredito que o Departamento de Psicanálise possa ser um espaço acolhedor neste processo, não só através de uma atitude antirracista, mas também pela escuta do racismo sofrido ou praticado por cada um de nós.



São Paulo, janeiro de 2020





[1] Este escrito é uma versão modificada do memorial escrito pelo autor para a obtenção de uma bolsa de estudos referente ao 2º ano do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma.

[2] Psicólogo, psicanalista, aluno do 2º ano do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma, do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.




 
 
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