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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    54 Junho 2020  
 
 
MAL-ESTAR NA CIDADE

A CORTE NAS TORRES E O REAL[1]



NATÁLIA ZUCCALA[2]



Aviso aos leitores: este é um texto de ficção.



Eu não matei o filho dela. Ele foi sozinho, eu só deixei que ele fosse, ele se jogou, eu não. Foi um acidente.


Eu matei o meu filho. Deixei ele só, deixei ele ali com ela e ele se descuidou, eu matei meu filho, meu Deus, eu deixei que ele morresse.

Ele estava muito agitado, na realidade ele era muito agitado, birrento. Só porque a mãe não estava lá, ele se viu no direito de abrir o berreiro, ela tinha ido fazer o seu serviço, estava em horário de trabalho, afinal! Criança não tem que trabalhar, ele não fechava a boca e foi me deixando incomodada, irritada, fui perdendo o controle. Sabe? Eu não aguento esse tipo de coisa nem de filha minha, por que eu aguentaria essa agressividade dele, que nem é meu filho, que estava ali só porque eu fazia um favor a eles? Eu não aceito na minha casa criança gritando assim, feito um porquinho no abate, ele grunhia. O menino estava agressivo! Ele estava descontrolado, menino mimado, eu não soube o que fazer, eu nunca sei o que fazer quando eles grunhem, eu não sei. Eu não matei, eu.


Ela não sabe lidar com criança, nunca soube. Nem da gravidez ela gostava, fingia, mas não gostava. Quando eu fui contratada, ela tava grávida, enorme, ela engordou um tanto, ela vomitava, chorava, se desesperava, dizia pra mim: eu não aguento mais, dizia pra mim: pra que ter filho, se for pra ficar assim? Ela não entendia nada sobre ser mãe, ela odiava o próprio corpo e me mostrava fotos de como sua barriga era antes, como ela era magra. Passava horas se olhando no espelho e comia e chorava e vomitava e quando eu tentava ajudar, ela se deitava no meu colo, como se fosse ela a criança.


Quando a minha filha nasceu.


Quando a filha dela nasceu.


Foi difícil.


Foi horrível.


Na época eu aumentei o salário, contratei em tempo integral, ela fez um bom dinheiro e eu precisava muito de alguém pra cuidar da menina, ou então.


Eu achei que ela fosse matar a menina, quando ela nasceu. Eu tive muito medo de que isso acontecesse. Senti que precisava ajudar a bebê, ela. Larguei marido em casa e fiquei lá, cuidando delas, em tempo integral. Só depois de seis meses eu consegui voltar pra casa em paz, ela até dizia pra que eu voltasse, mas eu não conseguia. Das poucas vezes em que ela pegava a menina no colo, quando ia amamentar nos primeiros dois meses, ela só teve leite dois meses, ou quando eu precisava que ela pegasse pra eu cuidar da comida, ela chorava. Chorava calada, culpada e agarrava com aquelas unhas enormes a pele fina da bebê, uma vez as unhas fizeram a menina sangrar. Ela não entendeu o que estava acontecendo, saiu de casa, mas, desta vez, não chorou.


É como dizem: ser mãe é padecer no paraíso.


No quarto de empregada tinha espaço pra mim e pro meu menino. Mas ele não estava sempre lá, metade da semana eu deixava ele com a vó, ou com o pai, quando o pai podia, mas era bom, era tão melhor, quando ele estava lá. Com ele ali, todas se acalmavam, ele era agitado, dava trabalho, mas o resto da casa se acalmava, engraçado, mas era isso que acontecia, porque, além de agitado, ele era divertido, carinhoso, sorridente, ele impedia que a gente ficasse triste, que ela escorregasse pra aquele lugar cheio de solidão e desespero e eu sentia menos medo, quando ele estava lá. Naquele lugar que não era meu, nem deixava de ser.


Ele estava sempre aqui em casa, era um menino espaçoso, mas era também muito engraçado. A gente gostava muito dele.


Todo mundo se irritava com ele de vez em quando, mas no fundo gostava dele.


Eu deixava ela trazer, sabe? Quando não tinha com quem ficar, ele ficava na minha casa, comia da minha comida, bebia da minha água, eu paguei roupa pra esse menino, dei material escolar, eu também cuidava dele, eu ajudava, sempre ajudei. No Natal, comprava até presente, eu era quase uma mãe pra ele. Ou melhor, um pai.


Às vezes, eu acordava de madrugada com medo, quando meu menino não estava comigo e éramos só nós três: eu, ela e a bebê.


Ela sempre se achou mãe da minha filha, eu precisava dizer pra ela que não ficasse tanto tempo com a menina, que fosse fazer o serviço, ou até ficar com o filho dela, mesmo durante o seu turno. Na realidade, eu percebo hoje que ela era um pouco negligente com ele, infelizmente. Ele faltava no colégio, se não queria comer ela não obrigava, vivia mastigando chiclete, bala, claramente ela se importava mais com a minha filha do que com o filho dela. Faltava pulso firme e disciplina. Nada acontece à toa, né?


Não consigo nem contar quantas vezes eu acordei de madrugada, depois de sonhar que a menina morria. Dessas vezes, eu dormia do lado do berço pra garantir que ela acordasse viva, no dia seguinte. Sonhei com a morte da menina por muitos meses, sonhei que ela morria afogada, caía do berço, que parava de bater o coraçãozinho, que ela se jogava pela janela, que a mãe matava ela. Quando isso acontecia, eu ia até o quarto, o berço, correndo, ainda afobada, pra descobrir que tava tudo bem. Ela quase não chorava! Eu nunca tinha visto isso antes, um bebê quieto, que dorme a noite inteira, não pega chupeta, era tão estranho. Eu tinha um medo terrível de descuidar da menina, de ser culpada se qualquer coisa acontecesse a ela, às vezes eu tinha mais medo pela vida dela, que não era minha filha, do que pelo meu menino. Como pode ser, meu Deus? A nossa vida, eu achava, dura do jeito que é, ia fazer dele mais resistente, mais esperto, ele não era um sopro, como aquele neném quieto, meu Deus, me perdoe.


Nossos filhos cresceram juntos, sabe? Eu nunca mataria um menino que é quase um irmão pra minha filha. Ele esteve sempre aqui, na minha casa, até usava de vez em quando brinquedos que não eram dele. Imagina, no meio dessa pandemia toda, eu achei que fosse melhor eles ficarem na minha casa, mais limpa, organizada, com menos gente.


Eu precisava do dinheiro.



Ela nunca tinha com quem deixar a criança, então eu me via forçada a permitir que ela trouxesse pro serviço, mas, realmente, eu não deveria ter deixado, de jeito nenhum. Criança não deve ir ao trabalho com os pais, não é problema do empregador se um funcionário não tem onde deixar seus filhos, nenhum patrão tem responsabilidade por isso e eu não podia compactuar com a negligência dela. Eu não levo minha filha pra trabalhar, se levasse, estaria sujeita a esse tipo de coisa, mas eu não levo. A verdade é que a gente erra por ser permissivo demais com quem não tem responsabilidade.


A menina acabou se apegando muito a mim, uma vez, me chamou até de mãe. Mas eu dei uma bronca. Onde já se viu? Você tem mãe, eu disse, mas sabia que estava mentindo.


Que sirva de lição pra todos nós.


Eu acho que meu filho tinha ciúmes, dela, da filha, do cachorro. Ele era muito teimoso, teimoso demais, meu Deus, ele era, eu falo dele no passado e não acredito, ele era.


O filho dela era muito difícil, não parava quieto, muito difícil mesmo. Eu sentia certa raiva naquele menino. Onde já se viu? Se comportar daquele jeito na casa dos outros, eu precisava dizer pra ele, olha que absurdo, dizer que aquela não era a casa dele. Ele era muito folgado, espaçoso, perguntava, falava, ele definitivamente não entendia o lugar dele, faltava muita educação e, nesse sentido, eu sentia que pelo menos nossa família era uma referência pra ele, né? Uma referência de como se comportar e mesmo em termos de valores. Ele viveu tanta coisa que não poderia ter vivido na comunidade dele, comeu, até viajou! Pelo menos ele teve uma boa vida. A gente planejava, inclusive, levá-los pra Disney com a gente, quando as fronteiras se abrissem, pra Disney! Quando que esse moleque ia poder fazer isso, se dependesse da mãe e do pai, me diz?


Muito teimoso, ele não aceitava o lugar dele, não aguentava ficar só, no quartinho, ele tinha medo, menino teimoso, mal-educado! Ele era muito muito revoltado, falava e perguntava tudo, eu tentava educar, mas não tinha jeito, ele era irrequieto, agitado, eu não sabia o que fazer pra que ele se acalmasse, eu não tinha tempo, ele era esperto, na verdade, o meu menino tinha futuro, era perguntador, inquieto, agitado e isso tudo era bom, sim! Ele era bom, meu Deus, tinha futuro. Eu devia ter confiado nele. Eu devia ter confiado mais nele, na revolta dele, nos sentimentos, na inquietude, nas birras dele! Eu não podia ter confiado era nela, eu matei o meu filho, eu traí o meu filho!


Ele não calava aquela boca. Gritava e gritava que queria a mãe que queria a mãe e chorava e eu tenho enxaqueca crônica, eu, eu tenho muita enxaqueca a todo tempo e quase não consigo pensar, agora mesmo eu sinto toda a cabeça amortecida e não consigo, tem vezes que o meu rosto paralisa de um lado e eu não consigo mais falar e pesa muito muito a cabeça, quase não consigo segurar a cabeça pelo pescoço, pesada, enorme, parece que vai cair que eu não vou aguentar e ele chorava e gritava, eu só queria que ele calasse a boca, que ele deixasse a minha cabeça em paz, eu só queria poder entrar num quarto escuro e dormir e ele me puxava e gritava, maldito, então eu deixei, eu deixei ele ir, ele queria ir, eu deixei, eu coloquei ele dentro do elevador, eu deixei ele ir, sozinho, porque eu tive medo de matá-lo, tive medo de calar aquela boca suja com as minhas próprias mãos, aquele moleque impertinente, eu queria matá-lo, meu Deus, eu queria. Eu matei o filho dela!


Como, me diz, me diz como eu fui confiar nessa mulher pra olhar o meu menino, como eu fui confiar nessa mulher pra ficar contigo, meu filho, me diz? Como foi que eu não te ouvi eu não ouvi a tua revolta as tuas perguntas a tua inquietude a tua impertinência? O teu medo sempre teve razão de ser, a tua raiva e a tua agressividade tinham sim razão, você era muito muito inteligente, você entendia tudo aquilo, via tudo, enquanto eu me recusava a entender, você sabia o seu lugar e o seu lugar não era o silêncio!


E ele tinha medo, eu sabia, eu via nos olhos dele, ele tinha medo de mim. Eu era a única pessoa de quem ele tinha medo e eu gostava de saber disso.


Uma mulher que não consegue nem cuidar de si, que não consegue nem cuidar da própria comida, do próprio corpo, da própria casa, da própria filha, que não consegue cuidar nem da merda de um cachorro, meu Deus. Ela matou o meu menino! Não fui, não, foi ela!


Ele só queria a mãe. Ele queria ir atrás dela e a minha filha também. Os dois pediam por ela, aqueles dois inúteis pediam e gritavam por ela, aqueles dois merdinhas não conseguiam ficar um segundo sem aquela desgraçada, nem um segundo sequer sem a mãezinha doméstica deles. E eu? Eu só queria fazer a minha unha! Só queria ter paz enquanto fazia a minha unha. A manicure lá, aqueles dois merdinhas, a minha cabeça, a minha cabeça, a minha cabeça! Eu disse: filha, cala a boca e vai pro seu quarto, ela foi, então, eu enfiei aquele desgraçadinho no elevador e disse: vai lá, acha a sua mãe agora e traz ela de volta, eu realmente confiava que ele, eu não, eu não sei o que eu estava fazendo, ele não trouxe, ele saiu do elevador e não voltou, eu não sei, ele não trouxe a mãe de volta, ele saiu do elevador e se jogou, lá de cima, eu, eu não podia imaginar, eu não tenho culpa, ele não voltou, ele. Uma fatalidade.


E pensar que eu perdi o meu menino sem poder me despedir e pensar que o meu menino morreu me procurando e pensar que ele andou de elevador o prédio inteiro que ele me procurou andar por andar dizendo o meu nome eu nunca pude ouvir o meu menino dizendo o meu nome dizendo: mamãe, antes de morrer e pensar que ele morreu chamando por mim e eu não estava lá, só ela. Só ela pôde ouvir o meu filho me chamando, nem a isso eu tive o direito.


A presença dele na minha casa trazia uma energia negativa, uma influência negativa para a minha filha, mas nunca quis dizer nada a ela pra não ofender. Eu nunca senti tanta falta de alguém como ele sentia dela naquele dia, eu não entendo como ele podia sentir tanta falta de alguém. Cada centímetro do apartamento era preenchido pelo seu choro e pela sua angústia e pelo seu desespero, eu sentia as paredes derretendo, os móveis tremendo, a casa toda desabando sem ela, a casa inteira sentia falta dela, a casa sem ela desabava e eu sabia. Eu sabia que na hora em que ela voltasse, tudo estaria sob controle de novo, que só ela era capaz de controlá-los, de botar ordem na minha casa, de aquietar as paredes, os móveis, os cachorros, as crianças e isso me deixava ainda mais irritada.


Dizem que ele me viu lá embaixo. Que ele me viu passeando com o cachorro lá embaixo e por isso se jogou, pra me encontrar, meu pequeno não sabia que não era anjo e se tornou um.


O meu marido disse que foi um acidente, que eu não tive culpa e ele tem razão. Eu não joguei o menino, ele caiu.


As manchetes de jornal, que não leio porque me recuso, dizem que foi um acidente.


A minha terapeuta tem me atendido duas vezes por semana via skype. Às vezes três.


A minha advogada disse que talvez ela seja presa, disse que não foi um acidente e que ela pagou vinte mil reais pra responder pelo crime solta. Em liberdade. Foi um crime. Sim. Foi um crime, é verdade. E, se foi um crime, merece justiça. Eu quero justiça.


Meus advogados dizem que não foi um crime, fiz questão de contratar os melhores, essa história está sugando meu sangue.


Torço pra que ela se liberte de si mesma.


Eu tenho pena dela. Meu marido ofereceu dinheiro pra família e ela recusou, depois de tudo que eu fiz por ela e por aquele menino, depois de todo dinheiro que eu dei pra eles durante todos esses anos, hipócrita!


Depois de tudo o que eu fiz por ela, ela achou que pudesse comprar meu silêncio. Ela não me conhece.


Uma coisa eu aprendi: precisamos ter mais cuidado. Por isso, a gente contratou uma moça que não tem filhos, dessa vez.


Precisamos com urgência aprender a cuidar dos nossos.


A minha filha perguntou por eles, claro. Eu fiquei sem saber o que dizer, né? Aí, depois


Depois, quando eu tiver forças, quando eu tiver superado isso tudo, quando eu puder,


eu disse que ela preferiu trabalhar em outra casa, que eles quiseram ir embora. É aquela coisa, né? Algumas mentiras são necessárias.


quando eu estiver preparada para ouvir de novo a voz do meu filho, ouvir de verdade


Ela não pode saber a verdade, de jeito nenhum, é muito pequena pra lidar com esse tipo de assunto assim tão pesado.


ouvir a voz pesada e genuína do meu filho, que desde sempre me alertou, me chamou atenção, a voz inquieta e insubmissa do meu menino,


Ela chorou, esperneou, teve raiva, foi a primeira vez que eu vi minha filha com tanta raiva de alguém. Raiva dela, né? Deles. Eu disse para a minha terapeuta, inclusive, que esta raiva pode ser benéfica para a nossa relação, sinto que estamos mais próximas.


quando eu tiver coragem de ouvir a voz dele outra vez, esta voz não vai mais se calar e todos terão de ouvi-la. Meu filho vai falar. E vai gritar, através da minha garganta. Quando as lágrimas secarem, meu pretinho vai ser voz pra mim e eu vou ser corpo pra ele, pro meu filho que morreu, sim, que foi morto, mas que vive em mim e que me faz a cada dia mais forte, mais. Preta.




[1] Este escrito foi inicialmente publicado no site da autora https://agoraestouaqui.wordpress.com/.

[2] Natália Zuccala é aluna do 1º ano do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma, bacharel em Letras, professora de Língua Portuguesa, tendo publicado Todo mundo quer ver o morto (Patuá, 2017).

[3] Malua é cientista social, mestranda em sociologia e antropologia pela UFRJ.




 
 
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