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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    56 Outubro 2020  
 
 
NOTÍCIAS DO DEPARTAMENTO

DA DENÚNCIA DO TRAUMA AO MANIFESTO DO LETRAMENTO


COMISSÃO GTACME [1]



Qual a questão ética e política mais relevante dos nossos tempos? A resposta para esta pergunta surge da leitura da matéria “Dados do SUS revelam vítima-padrão de Covid-19 no Brasil: homem, pobre e negro” (Revista Época, 3 de julho de 2020), que mobilizou o Departamento a convidar o GTACME [2] (Grupo de trabalho A cor do mal-estar) para participar de um importante evento interdepartamental, reconhecendo a relevância de seu tema sócio-político. A chamada desta matéria explicita a necropolítica do atual governo federal, que utiliza a pandemia como mais um instrumento para um genocídio que atinge também os povos indígenas, perpetuando o racismo como um dispositivo do biopoder estatal, questão esta negada nas pautas de esquerda.

Atendendo ao convite para a participação neste evento interdepartamental promovido pelo Instituto Sedes Sapientiae, o Departamento de Psicanálise resgata a Carta de Princípios deste Instituto com seu histórico propositivo marcado por lutas políticas democráticas.

Fruto de um momento histórico em que a realidade social exigiu transformações decisivas, o Instituto Sedes Sapientiae, em sua Carta de Princípios, elaborada no período de sua fundação, convoca seus integrantes à adoção de preceitos democráticos. Em plena ditadura militar não seria admissível pensar num Instituto que se eximisse de refletir e atuar no campo social. O Instituto, em conformidade com as diretrizes de sua Carta de Princípios, assume o “dever a ser cumprido” e busca “construir metas e princípios de trabalho a favor da emancipação popular”. Seu modelo não é o de um “cientificismo que se proclama neutro”. Não! Diferentemente, busca um modelo implicado com as questões políticas e sociais de seu tempo. Uma instituição comprometida em desenvolver “pesquisas, cursos e serviços vinculados à realidade brasileira e voltados para as necessidades da população economicamente menos favorecida, facilitando-lhe instrumentos para assumir seu próprio projeto histórico de libertação” (parte VI da Carta de Princípios).

Se a expressão “população economicamente menos favorecida”, que aparece em destaque em nossa Carta de Princípios, fala de uma pobreza abstrata a ser combatida, sem corpo e sem história, hoje somos capazes de determinar com mais precisão que parcelas da população — as assim chamadas minorias — foram destinadas a ocupar o espaço da vulnerabilidade e da necessidade. E certamente a população negra se destaca dentre elas.

Todos os indicadores sociais de saúde, educação, habitação, trabalho, renda, justiça, punição e encarceramento, serviços básicos de saneamento, segurança, transporte, são unânimes em apontar como a distribuição de cuidados é desigual, e como é retirada dessa parcela da população a oportunidade de usufruir e exercer seus direitos. É hora de esmiuçar o lugar (e a culpa) de classe para admitir quais os marcadores sociais de diferença (e de opressão) determinam e mantêm a distribuição desigual do poder e do privilégio. E sem dúvida o marcador social de opressão de raça é um deles e se expressa em detrimento da população negra, que compõe a maioria dos que vêm até o Instituto Sedes Sapientiae em busca de atendimento clínico. A mesma face desigual entre brancos e negros é evidenciada na constatação de que o número de negros nos cursos, tanto alunos como professores, é diminuto. Contrastando com essa situação, no papel de funcionários, que exige menor qualificação e proporciona, portanto, menor remuneração, a presença negra aumenta significativamente. O racismo brasileiro é estrutural e institucional e se apresenta como tal também no Sedes Sapientiae. Mesmo sustentando princípios democráticos, o ISS não dispõe dos meios específicos em sua política de investimento para acessar e integrar a população negra historicamente desfavorecida. É cada vez mais evidente que o caminho democrático, o caminho antifascista, passa certamente pelo antirracismo.

Assim, torna-se imprescindível identificar quais determinantes históricos, ainda vigentes, são responsáveis por essa desigualdade para que possamos ativamente implementar políticas e ações afirmativas.

É hora de estabelecermos ainda novos princípios, outras bases de luta para sermos capazes de favorecer o que temos denominado diversidade, estabelecendo um novo espaço ocupado por negros, ampliando nossa capacidade de lidar com a complexidade do tempo presente.

Essa mobilização é inescapável. E só temos a ganhar com a ampliação de nosso olhar, com a abertura para outras perspectivas, de um modo diferente do já estabelecido e que zela pela manutenção das regalias e prejuízos.

Pensamos ser importante salientar ainda que é possível identificar como sinal das mudanças do tempo o fato do grupo A cor do mal-estar ter sido reconhecido em seu trabalho e convidado para representar o Departamento de Psicanálise num evento interdepartamental do Instituto Sedes Sapientiae. Um sinal do longo e complexo caminho de letramento para a luta antirracista, que se iniciou em 2010, com a denúncia da psicanalista Maria Lúcia da Silva do teor racista presente numa fala proferida em sala de aula no curso Conflito e Sintoma, do Departamento de Psicanálise. Uma denúncia que, escutada, acatada e muito trabalhada, gerou, em 2012, o evento em três etapas O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise, que se corporificou, então, na publicação, em 2017, do livro de mesmo nome, e que prossegue num questionamento duradouro capaz de originar ainda novos e potentes frutos.



“Na fina camada entre memória e esquecimento, por vezes o que se revela, desconcertante e assustador, é o presente.”



Este grupo de trabalho surge como fruto de inúmeras reuniões, conversas e reflexões nos encontros na Incubadora de ideias, iniciadas em 2015, a partir da inquietação de Anne Egídio, acolhidas por Heidi Tabacof. Como pré-requisito para participar da Incubadora, é necessário ser membro ou aspirante a membro do Departamento de Psicanálise. No entanto, alguns obstáculos a essa participação tiveram que ser transpostos: a participação na Incubadora como aspirante a membro, porém com isenção da anuidade; a participação excepcional de uma pessoa com formação psicanalítica em outro instituto, que não era ainda membro ou aspirante, sob a condição de que se comprometesse no processo de candidatura.

Tais situações nos colocam, negras e negros, uma vez mais no lugar da resistência, da insistência e por vezes de transgressão, ao mesmo tempo que proporcionam a realização de alianças, no sentido de subverter, questionar e alterar algumas “normas/regras” estabelecidas no regulamento do próprio Conselho de Direção do Departamento de Psicanálise. Situações também vividas e enfrentadas em outros momentos por membros do Departamento em eventos anteriores que buscaram o diálogo entre Racismo e Psicanálise nesta Instituição.

O objetivo deste grupo de trabalho é estudar, pesquisar e elaborar os efeitos do trauma gerado pela escravização e os efeitos do racismo e da discriminação no desenvolvimento psíquico de indivíduos afrodescendentes, principalmente, mas também da população branca. Este trauma e a sua transmissão geracional não são identificados nas abordagens psicanalíticas.

Como uma tentativa de sanear esta lacuna na psicanálise, formulamos uma proposta que denominamos de Letramento, que visa subsidiar o analista, independente da etnia, com apresentações e discussões de temas que proporcionem uma compreensão e um acolhimento deste silêncio, deste vazio e das interrogações que este recusado e recalcado trauma provocam, incorporando também a dimensão da escuta de um sintoma social negado dentro de uma instituição de psicanálise.

A citação inicial da minha fala é de Belisário Franca, diretor do filme: Menino 23 – Infâncias perdidas no Brasil. É com esse filme, baseado na tese do historiador e professor Sidney Aguilar Filho, que o GTACME inaugura sua presença e marca seu pertencimento a este Departamento. Para a construção de um programa continuado, visando o letramento dos psicanalistas do Instituto Sedes Sapientiae e a construção de possíveis intervenções psicanalíticas no traumático do racismo, o Grupo de trabalho A cor do mal-estar propõe:

1. Blocos de seminários teóricos nos cursos de psicanálise;
2. Oficinas vivenciais e cirandas de letramento;
3. Discussões clínicas;
4. Apresentações literárias, cinematográficas, teatrais, musicais e de artes plásticas;
5. Cooperação com comunidades, onde haveria um letramento também da população acometida;
6. Cooperação com outras áreas profissionais;
7. Estabelecimento de um fórum permanente;
8. Implementação de cotas raciais.

Neste grupo de trabalho temos experimentado as tensões na convivência interracial, mobilizadas na constatação das “máscaras brancas” usadas para negar e excluir os corpos pretos, confirmando o racismo na construção da sociedade brasileira, fruto da ideologia do embranquecimento.

O racismo organiza a sociedade brasileira mantendo uma estrutura de opressão sistemática que não permite que pessoas negras ocupem espaços como os das universidades e de outros cargos de poder. Somos uma sociedade patriarcal fruto do processo da colonização, da escravidão e do racismo, com seus marcadores políticos, jurídicos, psicológicos, religiosos e econômicos. Estas estruturas reafirmam uma discriminação historicamente construída. Isto posto, cabe nos perguntarmos: como se constitui o inconsciente das pessoas no Brasil? Seria o racismo uma neurose da cultura brasileira?

Como a psicanálise pode pensar a experiência do racismo? Se o racismo cria subjetividades negras subalternas, ele também pode intensificar subjetividades brancas narcísicas e manipuladoras? Não há racismo se não houver um circuito pulsional que o sustente. É preciso admitir que este circuito está presente nos institutos e nas nossas formações como psicanalistas. Diante deste fato manifestamos mais perguntas: como fica a questão existencial para o sujeito não branco diante de sua análise? Quem eu sou? O que determina o meu desejo? Como me inscrevo na minha história e a partir de quais elementos discursivos? Como colocar estas questões, se estamos inseridos em códigos tradutivos simbólicos herdados da designação racial e geradores de sofrimento psíquico? Como nós psicanalistas temos escutado esta questão, já que os códigos e as narrativas que formaram nossa escuta estão contaminados pelo jogo de poder e a suposta neutralidade da branquitude?

Como nossa instituição com seus departamentos e profissionais da saúde mental podem se posicionar? Como mantermos a sustentação do mal-estar para promover a mobilização dos afetos? Como promover a quebra da neutralidade? Como ceder espaço de poder com ações reparatórias? O grupo A cor do mal-estar trabalha para a legitimação do lugar de fala dos negros, mas também para implicar a fala da branquitude racializada, quebrando a neutralidade e sua linguagem de poder. Os brancos precisam admitir seus privilégios, só assim será possível tecer uma aliança que realinhe o Departamento de Psicanálise com uma luta democrática antirracista mobilizadora de afetos. É desta abertura que nasce o letramento racial, pela resistência e insistência preta.

A resistência negra não é jovem e sofre ainda, apesar do longo tempo de existência, da necessidade de continuar insistindo sem trégua. A insistência na resistência foi o que coube e restou junto com a segregação social, expropriação cultural, ontológica, somado a formas de racismos que vai das entranhas a pele e não isenta ninguém nem lugar nenhum. Está em tudo e em todos.

A resistência sem descanso nos ajudou a chegar onde estamos. Mas só resistir exaure as forças necessárias para as outras etapas, tais como reverter processos viciados, ocupar espaços e territórios já há muito marcados histórica e culturalmente pelo brancocentrismo. A exaustão diária para sobreviver e resistir desloca energias que se fossem direcionadas para as bases da estrutura que discrimina e hierarquiza os poderes, serviriam para movimentar explorar territórios inéditos para a luta antirracista.

Insistimos que a luta antirracista pertence a todos, pretos, brancos, vermelhos...

Para usufruir da vida como iguais e de direito, como todos os indivíduos, talvez tenha chegado o momento de apostas corajosas e por que não, ousadas, ao lado de quem insiste em não negar as difíceis consequências do racismo cotidiano. São aliados sensíveis a causa de toda uma população negra, alguns já publicamente declarados e outros ainda desconhecidos, donos de uma coragem ciente das dificuldades que terão no caminho, tais como os medos, as raivas, as tristezas, os desconfortos das palavras não ditas mas nem por isso mortas. Refinar uma escuta onde os sons silenciados dos envolvidos encontrem um lugar de acolhimento e possam ecoar além, esta tem sido uma prática antirracista dos aliados já publicamente declarados.

Talvez seja o início de uma nova música de uma dança já iniciada em alguns lugares, dança de pares não frequentes onde a confiança vai tomando forma na medida que se insiste em continuar na pista.

A insistência não resistiu em dizer que essa luta não deveria ter cor e que a confiança em si não tem preconceitos.

Insistimos que o Sedes Sapientiae dirija um olhar atento às relações raciais e a outras provocações em seus espaços porque insistimos em um circuito pulsional de outra ordem que não pela via do racismo estruturado. Investimos em alianças a partir das relações raciais pressupondo a ocupação de um instituto branco por corpos negros em seus processos instituintes, para afirmar um posicionamento político de ações afirmativas a estes corpos.

Convocamos o ISS a pensar em como ampliar seus horizontes e estender seus caminhos, de modo que possa compartilhar olhares coletivamente e com novos preceitos inclusivos, respeitando as particularidades e singularidades dessas relações. Esta é uma demanda comum da população negra, que apela a preceitos democráticos, e que hoje se tornam demandas colocadas também ao ISS, por conta de seus princípios de trabalho que estão a favor da emancipação. Para estas populações, o que nos resta são as metas ou métodos, caminhos simbólicos e reais de emancipação.

Se for oportuno à instituição, deixamos a ela uma questão ética do nosso tempo: pela escuta, instrumento próprio dos seus ofícios transmitidos, entender e respeitar as identidades pelas suas diferenças e proximidades e junto a elas colaborar ativamente ao convívio de todos para o bem viver.

Para o bem viver é necessário repensar as formas relacionais que o Instituto deseja ter com seus frequentadores e concretizar caminhos possíveis para que as tais diferenças estejam horizontalizadas, no acesso a recursos institucionais, materiais e simbólicos.

Sustentar a permanência de todos pelo acolhimento de suas nuances singulares. Ampliar as identificações institucionais com as histórias dos negros e negras valorizando o que antecedeu o trauma coletivo da escravização moderna e as reinvenções deste povo em seu cotidiano pela sobrevida em busca do próprio bem viver.

Todos sabemos que os cargos de limpeza geral e segurança, majoritariamente ocupados por negros no ISS, são tão dignos e importantes quanto qualquer outro. Mas quando a instituição oferece à população negra somente esses postos de trabalho, ela é passível de questionamento. Eventualmente ou esporadicamente, especialmente em novembro, outros negros e negras são convidados a protagonizar outros ofícios e tarefas. Este, por exemplo, é um preço que o racismo cobra e a branquitude paga ao desvirtuar valores, causando a perda do caráter humano por ser alienado em relação às implicações com o racismo.

Quando a instituição se propõe antirracista, é dela e de seus instituídos a dignidade de manter a população negra transversalmente em toda a estrutura da instituição. E é dela a responsabilidade de sustentar sua postura institucional antirracista, a partir dos seus princípios, e não somente do esforço dos negros instituídos. A instituição que se propõe antirracista, ou que se assume como sujeito coletivo de seu tempo histórico, estará atenta e sensível aos racismos pessoais, institucionais, estruturais. Caso contrário, a dignidade de se dizer antirracista não passaria de demagogia institucional perpassada pelo politicamente correto, exercício importante de não ofender nenhum ser humano em sua particularidade ou singularidade, mas que é desprovido de prática política concreta de acesso, permanência e assunção a sujeito ou ascensão social. Sem isso, a ofensa a essa população já está em exercício, independente do que se fale.

Aqui manifestamos à instituição provocações para a criação de novas formas de ser e estar nela instituído. Para que a instituição esteja próxima de seus princípios norteadores de atuação, tais manifestações lhe servem muito bem.

Provocamos o Instituto Sedes Sapientiae sobre as possibilidades de desejar outros corpos ocupando seus espaços pelo prisma das relações raciais, para assim poder olhar para além do perfil majoritariamente, e não raro exclusivamente branco, já constituído graças ao incansável racismo estrutural e institucional. Portanto, é necessário sempre provocarmos o desejo institucional de incluir corpos pretos em seu espaço.

Desejar que esses outros corpos transitem no espaço institucional é permitir que essas confluências com os já instituídos indiquem onde estão as contradições e potências da instituição. A assunção desse desejo possibilita a quem frequentemente não é racializado deixar-se ser e também desejar ser racializado, justamente para poder ser o outro em uma relação e, a partir disso, saber qual seu lugar de fala no laço social. O tema do racismo, mesmo sendo urgente, não é tema exclusivo e único da população negra, mas de todos.

Outra reflexão pertinente trata das condições objetivas impostas a este corpo negro, que o impedem de se sentir pertencente ao laço social e confirmam ou reforçam um viés negativo sobre ele mesmo. Não ter lugar desejado por uma sociedade racista, a não ser, na melhor das hipóteses, na música ou futebol, faz sobrar um estranhamento quando não se está na subalternidade, na indigência ou no crime. Esse cuidado institucional tem sua importância por impedir que um corpo negro se torne um estranho dentro dos limites da própria instituição e que ali se reproduzam as condições já existentes fora dos seus limites. A chancela institucional faz reconhecer, perante todos que estão ali, novos corpos para ocupar seus espaços. Este reconhecimento oficial da instituição passa a ser algo também necessário quando a sociedade não recebe todos os seus membros de forma igualitária e equânime.

As políticas afirmativas são aquelas que afirmam o desejo de transformação política, mesmo quando o Estado e parte da sociedade fazem parecer que essa transformação é inalcançável. Não basta não ser racista, é preciso ser antirracista.

Nesse sentido, é oportuno ao Instituto Sedes Sapientiae e seu Departamento de Psicanálise ampliar e compor seu percurso antirracista pela promoção das relações raciais, justamente por ser notório que tal instituição já contempla dimensões políticas da Psicanálise no Brasil que refletem sobre as questões de gênero e os efeitos nocivos da ditadura no Brasil. Desta forma, é importante negritar que a oportunidade de ampliação do pensamento de Raça e Classe na Psicanálise é essencial enquanto produção de pensamento e conhecimento . E que a Psicanálise também é uma das possibilidades de entender as dimensões das relações raciais, inclusive por seus aspectos subjetivos, irracionais e sobretudo inconscientes.

Em vista da conjuntura política atual, na qual o representante maior do país produz declarações racistas de forma livre e espontânea, vemos como oportuno manifestar o caminho das relações raciais como aquele voltado para o diálogo entre as diferenças.

E sensivelmente percebemos no Grupo de trabalho A cor do mal-estar, alicerçado no Departamento de Psicanálise, um espaço propagador deste processo, não só através de uma atitude antirracista, mas também pela escuta do racismo sofrido, praticado ou reproduzido por cada um de nós, com a possibilidade de levar suas práticas ao ISS e toda sua comunidade.



Nunca conheci um racista!

A minha vida toda só conheci pessoas que se autodeclararam livres de preconceito de cor, visto que foram educadas por famílias que as ensinaram assim. O convívio com pessoas pretas, as quais nunca lhes deram uma devolutiva de desaprovação, não deixa dúvidas de que estas pessoas não contribuem para o racismo que é estrutural.

Este país ergueu-se do sangue de cerca de 4 milhões de pessoas africanos, e o racismo que sustentou/constituiu toda essa violência possui hoje aspecto análogo a um tabu, não é tarefa fácil sustentá-lo em um lugar de evidência o que inclusive só se torna possível se considerarmos um certo nível de tensão.

Quando falamos aqui de racismo, nos referimos a um constructo, fruto de um período histórico de aproximadamente 400 anos de escravidão ocorrida neste país. Em vez de escutarmos essa história, nas escolas e por todos os cantos encontramos apenas silêncio ou uma espécie de glamourização do processo de colonização que exterminou diferentes comunidades nativas e arrancou aproximadamente 4 milhões de pessoas da África, servindo-se de todo tipo de violência possível de se imaginar. Então, falar de racismo é também evocar o mal-estar de se haver com um aspecto nosso que negligenciamos, afinal não é tarefa fácil se reconhecer como racista. Talvez por isso, por muito tempo víamos propagandas televisivas que disseminavam a imagem do Brasil como um paraíso inter-racial. Talvez por isso, também não raro ouvimos falar que “o racismo é coisa do passado” ou “o racismo é coisa da cabeça do pretos”. Não poderia deixar de ser coisa da cabeça dos pretos, uma vez que eles são obrigados a falar do racismo a todo momento na tentativa de se defenderem.

Estatísticas produzidas por diferentes pesquisas científicas nos dão a dimensão do quanto o nosso passado se presentifica, se configurando em violência que incide sobre a população preta. Mesmo falando a todo momento sobre o racismo sofrido no passado e no presente, a população preta só tem sua fala legitimada em algumas situações pontuais, através de imagens estarrecedoras como a da morte de George Floyd, que não dá margem pra dúvidas. Também podemos concluir aqui a partir deste fato que, essa legitimação da queixa da pessoa preta nunca é dada, mas sim conquistada por meio de prova irrefutável. Então, fica a pergunta: o que é que os pretos têm a dizer que até a psicanálise tem dificuldade de escutar? Por que até a psicanálise tem dificuldade de reconhecer o seu lugar de fala? A escuta da psicanálise como a conhecemos, em toda sua potência, estende-se também de fato à população preta e suas causas? O quanto é possível que a psicanálise seja mais um constructo racista?





[1] Ana Lúcia Marques de Souza, Christiana Freire, Erivelton Amaro, Jefferson Santos Pinto, Maria Aparecida Miranda, Marisa Correa da Silva, Noemi Moritz Kon e Selma Tavares.

[2] Ana Lúcia Marques de Souza, Ana Carolina de Paula Santos, Anna Mehoudar, Anne Egidio, Camila Munhoz, Christiana Freire, Cristina Barczinski, Cristina Herrera, Dedé Ribeiro, Emilia Broide, Erivelton Amaro, Heidi Tabacof, Jefferson Santos Pinto, Maria Auxiliadora Arantes, Maria Eduarda Lyrio, Maria Marta Azzolini, Maria Aparecida Miranda, Noemi Moritz Kon, Otavio Augusto Delia, Paula Francisquetti, Roberta Veloso de Matos, Selma Tavares, Sergio Marinho, Silvana Jeha, Solange Maria Santos Oliveira, Sonia Alexandre e Tania Veríssimo.




 
 
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