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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    57 Novembro 2020  
 
 
MAL-ESTAR NA CIDADE

SOBRE DEMOCRACIA E TOTALITARISMO NEOLIBERAL [1]



MARILENA CHAUÍ [2]



Estamos acostumados a aceitar a definição liberal da democracia como regime da lei e da ordem para a garantia das liberdades individuais . Visto que o pensamento e a prática liberais identificam liberdade e competição, essa definição da democracia significa, em primeiro lugar, que a liberdade se reduz à competição econômica da chamada “livre iniciativa” e à competição política entre partidos que disputam eleições; em segundo, que há uma redução da lei à potência judiciária para limitar o poder político, defendendo a sociedade contra a tirania, pois a lei garante os governos escolhidos pela vontade da maioria; em terceiro, que há uma identificação entre a ordem e a potência dos poderes executivo e judiciário para conter os conflitos sociais, impedindo sua explicitação e desenvolvimento por meio da repressão; e, em quarto lugar, que, embora a democracia apareça justificada como “valor” ou como “bem”, é encarada, de fato, pelo critério da eficácia, medida, no plano legislativo, pela ação dos representantes, entendidos como políticos profissionais, e, no plano do poder executivo, pela atividade de uma elite de técnicos competentes aos quais cabe a direção do Estado. A democracia é, assim, reduzida a um regime político eficaz, baseado na ideia de partidos políticos, que se apresentam no processo eleitoral de escolha dos representantes, de rotatividade dos governantes e de soluções técnicas para os problemas econômicos e sociais.

Na verdade, o cerne da democracia, o que lhe dá sentido, é a criação e conservação de direitos, exigidos por contra-poderes sociais organizados.

Há, na prática democrática e nas ideias democráticas, uma profundidade e uma verdade muito maiores e superiores ao que o liberalismo percebe e deixa perceber. Que significam, por exemplo, as ideias de situação e oposição, maioria e minoria, cujas vontades devem ser respeitadas e garantidas pela lei? Elas vão muito além dessa aparência. Significam que a sociedade não é uma comunidade una e indivisa voltada para o bem comum obtido por consenso, mas, ao contrário, que está internamente dividida em classes sociais e que as divisões são legítimas e devem expressar-se publicamente.

Da mesma maneira, as ideias de igualdade e liberdade como direitos civis dos cidadãos vão muito além de sua regulamentação jurídica formal. Significam que só há cidadãos se os indivíduos forem sujeitos de direitos e que, onde tais direitos não existam nem estejam garantidos, tem-se o direito de lutar por eles e exigi-los.

O que é um direito? Um direito difere de uma necessidade ou carência e de um privilégio. De fato, uma necessidade ou carência é algo particular e específico. Alguém pode ter necessidade de água; outro, de comida. Um grupo social pode ter carência de transportes, outro, de hospitais. Há tantas necessidades quanto indivíduos, tantas carências quanto grupos sociais. Um privilégio, por definição, também é algo particular e específico, dependendo do grupo ou da classe social. Necessidades ou carências, assim como privilégios tendem a ser conflitantes porque exprimem as especificidades de diferentes grupos e classes sociais. Um direito, porém, ao contrário de necessidades, carências e privilégios, não é particular e específico, mas geral e universal, válido para todos os indivíduos, grupos e classes sociais.

Dizemos, então, que uma sociedade — e não um simples regime de governo — é democrática quando, além de eleições, partidos políticos, divisão dos três poderes da República, respeito à vontade da maioria e das minorias, institui algo mais profundo, que é condição do próprio regime político, ou seja, quando institui direitos e que essa instituição é uma criação social, de tal maneira que a atividade democrática social realiza-se como uma contra-poder social que determina, dirige, controla e modifica a ação estatal e o poder dos governantes.

Sob este aspecto os principais traços da democracia podem ser assim resumidos:

1. forma sócio-política definida pelo princípio da isonomia (igualdade dos cidadãos perante a lei) e da isegoria (direito de todos para expor em público suas opiniões, vê-las discutidas, aceitas ou recusadas em público), tendo como base a afirmação de que todos são iguais porque livres, isto é, ninguém está sob o poder de um outro porque todos obedecem às mesmas leis das quais todos são autores (autores diretamente, numa democracia participativa; indiretamente, numa democracia representativa). Donde o maior problema da democracia numa sociedade de classes ser o da manutenção de seus princípios — igualdade e liberdade — sob os efeitos da desigualdade real;

2. forma política na qual, ao contrário de todas as outras, o conflito é considerado legítimo e necessário, buscando mediações institucionais para que possa exprimir-se. A democracia não é o regime do consenso, mas do trabalho dos e sobre os conflitos. Donde uma outra dificuldade democrática nas sociedades de classes: como operar com os conflitos quando estes possuem a forma da contradição e não a da mera oposição?

3. forma sócio-política que busca enfrentar as dificuldades acima apontadas conciliando o princípio da igualdade e da liberdade e a existência real das desigualdades, bem como o princípio da legitimidade do conflito e a existência de contradições materiais — introduzindo, para isso, a ideia dos direitos (econômicos, sociais, políticos e culturais). Graças aos direitos, os desiguais conquistam a igualdade, entrando no espaço político para reivindicar a participação nos direitos existentes e sobretudo para criar novos direitos. Estes são novos não simplesmente porque não existiam anteriormente, mas porque são diferentes daqueles que existem, uma vez que fazem surgir, como cidadãos, novos sujeitos políticos que os afirmaram e os fizeram ser reconhecidos por toda a sociedade;

4. pela criação dos direitos, a democracia surge como o único regime político realmente aberto às mudanças temporais, uma vez que faz surgir o novo como parte de sua existência e, consequentemente, a temporalidade como constitutiva de seu modo de ser;

5. única forma sócio-política na qual o caráter popular do poder e das lutas tende a evidenciar-se nas sociedades de classes, na medida em que os direitos só ampliam seu alcance ou só surgem como novos pela ação das classes populares contra a cristalização jurídico-política que favorece a classe dominante. Em outras palavras, a marca da democracia moderna, permitindo sua passagem de democracia liberal à democracia social, encontra-se no fato de que somente as classes populares e os excluídos (as "minorias") sentem a exigência de reivindicar direitos e criar novos direitos;

6. forma política na qual a distinção entre o poder e o governante é garantida não só pela presença de leis e pela divisão de várias esferas de autoridade, mas também pela existência das eleições, pois estas (contrariamente do que afirma a ciência política) não significam mera "alternância no poder", mas assinalam que o poder está sempre vazio, que seu detentor é a sociedade e que o governante apenas o ocupa por haver recebido um mandato temporário para isto. Em outras palavras, os sujeitos políticos não são simples votantes, mas eleitores. Eleger significa não só exercer o poder, mas manifestar a origem do poder, repondo o princípio afirmado pelos romanos quando inventaram a política: eleger é "dar a alguém aquilo que se possui, porque ninguém pode dar o que não tem", isto é, eleger é afirmar-se soberano para escolher ocupantes temporários do governo.

Nossa sociedade não é apenas anti-democrática, mas estruturalmente autoritária, cindida entre as carências das classes populares e os privilégios das camadas dominantes.

Conservando as marcas da sociedade colonial escravista, a sociedade brasileira é marcada pelo predomínio do espaço privado sobre o público e, tendo o centro na hierarquia familiar, é fortemente hierarquizada em todos os seus aspectos: nela, as relações sociais e intersubjetivas são sempre realizadas como relação entre um superior, que manda, e um inferior, que obedece. As diferenças e assimetrias são sempre transformadas em desigualdades que reforçam a relação de mando e obediência. O outro jamais é reconhecido como sujeito nem como sujeito de direitos, jamais é reconhecido como subjetividade nem como alteridade. As relações, entre os que julgam iguais, são de “parentesco”, isto é, de cumplicidade; e, entre os que são vistos como desiguais, o relacionamento toma a forma do favor, da clientela, da tutela ou da cooptação — e, quando a desigualdade é muito marcada, assume a forma da opressão. Em suma: micro-poderes capilarizam em toda a sociedade de sorte que o autoritarismo da e na família se espraia para a escola, as relações amorosas, o trabalho, a mídia, o comportamento social nas ruas, o tratamento dado aos cidadãos pela burocracia estatal, e vem exprimir-se, por exemplo, no desprezo do mercado pelos direitos do consumidor (coração da ideologia capitalista) e na naturalidade da violência policial.

Podemos resumir os principais traços de nosso autoritarismo social considerando que a sociedade brasileira se caracteriza pelos seguintes aspectos:

- estruturada segundo o modelo do núcleo familiar, nela se impõe a recusa tácita (e, às vezes explícita) para fazer operar o mero princípio liberal da igualdade formal e a dificuldade para lutar pelo princípio socialista da igualdade real: as diferenças são postas como desigualdades e, estas, como inferioridade natural (no caso das mulheres, dos trabalhadores, dos negros, índios, migrantes, idosos) ou como monstruosidade (no caso dos homossexuais);

- estruturada a partir das relações familiares de mando e obediência, nela se impõe a recusa tácita (e às vezes explícita) de operar com o mero princípio liberal da igualdade jurídica e a dificuldade para lutar contra formas de opressão social e econômica: para os grandes, a lei é privilégio; para as camadas populares, repressão. A lei não deve figurar e não figura o polo público do poder e da regulação dos conflitos, nunca definindo direitos e deveres dos cidadãos porque a tarefa da lei é a conservação de privilégios e o exercício da repressão. Por este motivo, as leis aparecem como inócuas, inúteis ou incompreensíveis, feitas para serem transgredidas e não para serem transformadas. O poder judiciário é claramente percebido como distante, secreto, representante dos privilégios das oligarquias e não dos direitos da generalidade social;

- a indistinção entre o público e o privado não é uma falha ou um atraso, mas é, antes, a forma mesma de realização da sociedade e da política: não apenas os governantes e parlamentares praticam a corrupção sobre os fundos públicos, mas não há a percepção social de uma esfera pública das opiniões, da sociabilidade coletiva, da rua como espaço comum, assim como não há a percepção dos direitos à privacidade e à intimidade. Do ponto de vista dos direitos sociais, há um encolhimento do público; do ponto de vista dos interesses econômicos, um alargamento do privado, e é exatamente por isso que, entre nós, assim como a figura do “Estado forte” sempre foi natural, também nos cai como uma luva o neoliberalismo;

- forma peculiar de evitar o trabalho dos conflitos e contradições sociais, econômicas e políticas enquanto tais, uma vez que conflitos e contradições negam a imagem mítica da boa sociedade indivisa, pacífica e ordeira. Não são ignorados e sim recebem uma significação precisa: conflitos e contradições são considerados sinônimo de perigo, crise, desordem e a eles se oferece uma única resposta: a repressão policial e militar, para as camadas populares, e o desprezo condescendente, para os opositores em geral. Em suma, a sociedade auto-organizada é vista como perigosa para o Estado e para o funcionamento “racional” do mercado;

- forma peculiar de bloquear a esfera pública da opinião como expressão dos interesses e dos direitos de grupos e classes sociais diferenciados e/ou antagônicos. Esse bloqueio não é um vazio ou uma ausência, mas um conjunto de ações determinadas que se traduzem numa maneira determinada de lidar com a esfera da opinião: a mídia monopoliza a informação, e o consenso é confundido com a unanimidade, de sorte que a discordância é posta como atraso ou ignorância;

- naturalização das desigualdades econômicas e sociais, do mesmo modo que há naturalização das diferenças étnicas, postas como desigualdades raciais entre superiores e inferiores, das diferenças religiosas e de gênero, bem como naturalização de todas formas visíveis e invisíveis de violência;

- fascínio pelos signos de prestígio e de poder: uso de títulos honoríficos sem qualquer relação com a possível pertinência de sua atribuição, o caso mais corrente sendo o uso de "Doutor" quando, na relação social, o outro se sente ou é visto como superior) "doutor" é o substituto imaginário para os antigos títulos de nobreza; manutenção de criadagem doméstica cujo número indica aumento de prestígio e de status, etc...

A sociedade brasileira é oligárquica e está polarizada entre a carência absoluta das camadas populares e o privilégio absoluto das camadas dominantes e dirigentes, portanto, uma sociedade em cujo centro não se encontra nem a ideia nem a prática dos direitos.

Esta situação se agrava com o neoliberalismo, pois este não é, como se propala, um enxugamento racional do Estado e sim a decisão de dirigir os fundos públicos para o capital e retirá-los portanto dos serviços e direitos sociais (alimentação, saúde, educação, moradia, transporte, saneamento, luz elétrica e água encanada) que são privatizados como mercadorias que se compram e vendem no mercado, excluindo os que não têm condições socioeconômicas para adquiri-los.

Tornou-se corrente nas esquerdas o uso de termos fascismo e neo-fascismo para descrever criticamente nosso presente.

Estamos acostumados a identificar o fascismo com a presença do líder de massas como autocrata. É verdade que, hoje, embora os governantes não se alcem à figura do autocrata, operam com um dos instrumentos característicos do líder fascista, qual seja, a relação direta com “o povo”, sem mediações institucionais e mesmo contra elas. Também, hoje, se encontram presentes outros elementos próprios do fascismo: o discurso de ódio ao outro — racismo, homofobia, misoginia; o uso das tecnologias de informação que levam a níveis impensáveis as práticas de vigilância, controle e censura; e o cinismo ou a recusa da distinção entre verdade e mentira como forma canônica da arte de governar.

Em vez de fascismo, denomino o neoliberalismo com o termo totalitarismo. Por que designar o neoliberalismo como o novo totalitarismo?

Totalitarismo:
porque em seu núcleo encontra-se o princípio fundamental da formação social totalitária, qual seja, a recusa da especificidade das diferentes instituições sociais e políticas que são consideradas homogêneas e indiferenciadas porque são concebidas como organizações. O totalitarismo é a afirmação da imagem de uma sociedade homogênea e, portanto, a recusa da heterogeneidade social, da existência de classes sociais, da pluralidade de modos de vida, de comportamentos, de crenças e opiniões, costumes, gostos e valores.

Novo:
porque, em lugar da forma do Estado absorver a sociedade, como acontecia nas formas totalitárias anteriores, vemos ocorrer o contrário, isto é, a forma da sociedade absorve o Estado. Nos totalitarismos anteriores, o Estado era o espelho e o modelo da sociedade, isto é, instituíam a estatização da sociedade; o totalitarismo neoliberal faz o inverso: a sociedade se torna o espelho para o Estado, definindo todas esferas sociais e políticas não apenas como organizações, mas, tendo como referência central o mercado, como um tipo determinado de organização: a empresa - a escola é uma empresa, o hospital é uma empresa, o centro cultural é uma empresa, uma igreja é uma empresa e, evidentemente, o Estado é uma empresa. Deixando de ser considerado uma instituição pública regida pelos princípios e valores republicano-democráticos, passa a ser considerado homogêneo ao mercado. Isto explica por que a política neoliberal se define pela eliminação de direitos econômicos, sociais e políticos garantidos pelo poder público, em proveito dos interesses privados, transformando-os em serviços definidos pela lógica do mercado, isto é, a privatização dos direitos, que aumenta todas as formas de desigualdade e exclusão. O neoliberalismo vai além: encobre o desemprego estrutural por meio da chamada uberização do trabalho e por isso define o indivíduo não como membro de uma classe social, mas como um empreendimento, uma empresa individual ou “capital humano”, ou como empresário de si mesmo, destinado à competição mortal em todas as organizações, dominado pelo princípio universal da concorrência disfarçada sob o nome de meritocracia. O salário não é visto como tal e sim como renda individual e a educação é considerada um investimento para que a criança e o jovem aprendam a desempenhar comportamentos competitivos. O indivíduo é treinado para ser um investimento bem sucedido e para interiorizar a culpa quando não vencer a competição, desencadeando ódios, ressentimentos e violências de todo tipo, destroçando a percepção de si como membro ou parte de uma classe social e de uma comunidade, destruindo formas de solidariedade e desencadeando práticas de extermínio.

Quais as consequências do novo totalitarismo?

- social e economicamente, ao introduzir o desemprego estrutural e a terceirização toyotista do trabalho, dá origem a uma nova classe trabalhadora denominada por alguns estudiosos com o nome de precariado — para indicar um novo trabalhador sem emprego estável, sem contrato de trabalho, sem sindicalização, sem seguridade social, e que não é simplesmente o trabalhador pobre, pois sua identidade social não é dada pelo trabalho nem pela ocupação, e que, por não ser cidadão pleno, tem a mente alimentada e motivada pelo medo, pela perda da auto-estima e da dignidade, pela insegurança;

- politicamente põe fim às duas formas democráticas existentes no modo de produção capitalista: 1. põe fim na social-democracia com a privatização dos direitos sociais, o aumento da desigualdade e da exclusão; 2. põe fim na democracia liberal representativa, definindo a política como gestão e não mais como discussão e decisão públicas da vontade dos representados por seus representantes eleitos; os gestores criam a imagem de que são os representantes do verdadeiro povo, da maioria silenciosa com a qual se relacionam ininterruptamente e diretamente por meio do twitter, de blogs e redes sociais – isto é, por meio do digital party, - operando sem mediação institucional, pondo em dúvida a validade dos parlamentos políticos e das instituições jurídicas, promovendo manifestações contra eles; 3. introduz a judicialização da política, pois, numa empresa e entre empresas, os conflitos são resolvidos pela via jurídica e não pela via política propriamente dita. Em outras palavras, sendo o Estado uma empresa, os conflitos não são tratados como questão pública e sim como questão jurídica, no melhor dos casos, e como questão de polícia, no pior dos casos; 4. os gestores operam como gangsteres mafiosos que institucionalizam a corrupção, alimentam o clientelismo e forçam lealdades. Como o fazem? Por meio do medo. A gestão mafiosa opera por ameaça e oferece “proteção” aos ameaçados em troca de lealdades para manter todos em dependência mútua. Como os chefes mafiosos, os governantes também têm os consiglieri, conselheiros, isto é, supostos intelectuais que orientam ideologicamente as decisões e os discursos dos governantes, estimulando o ódio ao outro, ao diferente, aos socialmente vulneráveis (imigrantes, migrantes, refugiados, lagbtq+, sofredores mentais, negros, pobres, mulheres, idosos) e esse estímulo ideológico torna-se justificativa para práticas de extermínio; 5. transformam todos os adversários políticos em corruptos, embora a corrupção mafiosa seja, praticamente, a única regra de governo; 6. têm controle total sobre o judiciário por meio de dossiês sobre problemas pessoais, familiares e profissionais de magistrados aos quais oferecem “proteção” em troca de lealdade completa (e quando o magistrado não aceita o trato, sabe-se o que lhe acontece);

- ideologicamente, com a expressão “marxismo cultural”, os gestores perseguem todas as formas e expressões do pensamento crítico e inventam a divisão da sociedade entre o bom povo, que os apóia, e os diabólicos, que os contestam. Por orientação dos conseglieri, pretendem fazer uma limpeza ideológica, social e política e para isso desenvolvem uma teoria da conspiração comunista, que seria liderada por intelectuais e artistas de esquerda. Os conselheiros são autodidatas que se formaram lendo manuais e odeiam cientistas, intelectuais e artistas, aproveitando-se do ressentimento que a extrema direita tem por essas figuras. Como tais conselheiros estão desprovidos de conhecimentos científicos, filosóficos e artísticos, empregam a palavra “comunista” sem qualquer sentido preciso: comunista significa todo pensamento e toda ação que questionem o status quo e o senso-comum (por exemplo: que a terra é plana; que não há evolução das espécies; que a defesa do meio ambiente é mentirosa; que a teoria da relatividade não tem fundamento, etc.). São esses conselheiros que oferecem aos governantes os argumentos racistas, homofóbicos, machistas, religiosos, etc., isto é, transformam medos, ressentimentos e ódios sociais silenciosos em discurso do poder e justificativa para práticas de censura e de extermínio;

- psicologicamente: dá-se o surgimento de uma nova forma da subjetividade, marcada por dois traços aparentemente contrários, mas realmente complementares – de um lado, um traço narcisista incentivado pelos meios eletrônicos de satisfação imediata e contínua dos desejos e, por outro lado, um traço depressivo porque marcada pela exigência de vencer toda e qualquer competição e pela culpa se fracassar. Estamos diante do que é perfeitamente analisado por Marcuse quando escreve:

“O sofrimento, a frustração, a impotência do indivíduo derivam de um sistema funcionando com alta produtividade e eficiência, no qual ele deveria auferir uma existência em nível melhor do que nunca. (...) com sua consciência controlada e vigiada, sua intimidade abolida, suas emoções integradas no conformismo, o indivíduo não dispõe mais de ‘espaço mental suficiente para desenvolver-se contra o seu sentimento de culpa, para viver com uma consciência própria”.





[1] Aula aberta proferida em 03 de outubro de 2020, organizada pelo curso Saúde Mental e Reforma Psiquiátrica, do Instituto Sedes Sapientiae. Disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=c56ph7I6MF0

[2] Professora e pesquisadora em História da Filosofia Moderna e Contemporânea e em Filosofia Política.




 
 
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