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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    59 Julho 2021  
 
 
NOTÍCIAS DO DEPARTAMENTO

POLÍTICA DE COTAS: UMA QUESTÃO URGENTE PARA AS INSTITUIÇÕES DE FORMAÇÃO PSICANALÍTICA


ABERTURA


MARIA APARECIDA MIRANDA[1]



Bom dia a todas e todos. Eu sou Maria Aparecida Miranda, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e integrante da comissão organizadora deste evento, composta também por Anne Egídio, Marisa Corrêa da Silva e Camila Munhoz.

Inicio agradecendo aos convidados deste painel de hoje, professor Juarez Xavier, aos psicanalistas Ignácio Paim Filho e Ney Marinho, que prontamente atenderam nosso convite para estar aqui hoje para um debate que, no nosso entender, é importante, urgente e necessário. Agradeço à diretoria do Instituto, representada aqui pela Georgia Vassimon e pela Marta Quaglia Cerruti.

As apresentações dos convidados serão feitas no momento do painel pela mediadora Marisa Corrêa da Silva.

Agradeço também a presença de todas e todos por estarem aqui conosco nessa manhã de sábado.

Esse painel nos traz a seguinte provocação: Política de cotas: uma questão urgente para as instituições de formação psicanalítica. Como psicanalistas não podemos discutir cotas sem a análise e o entendimento do racismo institucional e seus efeitos psicossociais no desenvolvimento dos sujeitos na nossa sociedade. O pequeno número de psicanalistas negras, negros nos dá um indicativo da existência de um racismo institucional também nos institutos de formação psicanalítica e nas sociedades de psicanálise.

O fato que levou à criação deste grupo de trabalho denominado A cor do mal-estar: da invisibilidade do trauma ao letramento foi o incômodo de uma formanda negra do Departamento ao se ver como exceção e vivenciar posturas, olhares, falas racistas ao longo da sua formação. A partir da conversa desta formanda com uma docente e membro do Departamento sobre a sua angústia em relação ao racismo vivenciado, foi proposta na Incubadora de Ideias a formação do GT com o intuito de aprofundar o estudo e o entendimento metapsicológico do racismo, latente e manifesto, nas nossas relações intra e interpsíquicas.

Com a denominação invisibilidade do trauma, o GT intenciona construir um entendimento entre nós, psicanalistas, de que o racismo no nosso país existe de modo estrutural, sendo portanto determinante na constituição psíquica de todos nós, exercendo uma ação traumática secular, cumulativa, crônica tanto na população negra como na branca. Justamente num país construído sobre bases escravocratas, cuja maioria da sua população é negra, precarizada, excluída da igualdade de direitos, inferiorizada enquanto cidadãos, este entendimento poderia ser óbvio, porém não ocorre.

Na abordagem e interrelação psicanalítica, é necessário que sejam levados em conta diversos aspectos do comportamento do sujeito, visando a uma melhor compreensão da psicodinâmica implicada neste comportamento, incluindo os processos transferenciais e contratransferenciais. No entanto, a vivência secular de racismo é excluída destas considerações. Seria essa desconsideração uma forma de naturalização do racismo, como um mecanismo de negação e exclusão de algo indesejável e insuportável?

Acreditamos ser fundamental nos questionarmos sobre esse silenciamento. Sair dele é um dos objetivos do letramento racial. Urge entender que o racismo adoece e inscreve lesões crônicas que vêm sendo transmitidas consciente e inconscientemente através de gerações e gerações, estando dessa forma internalizado tanto na população negra como na branca. Desta forma poderíamos pensar que haveria uma transmissão do inelutável – diante do roubo da história dos povos colonizados e escravizados – na relação transferencial não só no processo de análise, mas também na transmissão da psicanálise.

A psicologia e a psicanálise são importantes áreas de conhecimento que podem contribuir para estudos e pesquisas sobre os efeitos do racismo na saúde mental da população, porém ainda há muita desinformação e desinteresse sobre a temática nas instituições que atendem as pessoas e formam os profissionais. Tomando o aspecto da baixa representação de profissionais negros nos institutos de transmissão da psicanálise, surgem os questionamentos:

1. Quais as suas causas?
2. Que aspectos podemos elencar para entendê-la?
3. Interessa às instituições essa baixa representação?
4. Os institutos apresentam barreiras raciais, e consequentes barreiras sócioeconômicas, que dificultam a formação de psicanalistas negras e negros?
5. É necessário entrar em contato com o próprio racismo internalizado?

Não temos respostas imediatas para essas perguntas, mas entendemos que a implantação de um GT, um debate como esse aqui hoje e também os que vêm ocorrendo em outros centros de formação de psicanalistas visam aprofundar esses questionamentos, assim como a intenção de inserir a temática racial na formação e na rotina de psicanalistas e outros profissionais. Isso requer ações que promovam a inclusão da população negra nos espaços ocupados majoritariamente pela população branca. Neste sentido defendemos a implementação de um sistema de cotas para candidatas/os negra/os nos cursos e na formação psicanalítica como uma política de reparação e de inclusão.

E o que queremos dizer com letramento?

Letramento é um processo que nos implica, necessariamente, no reconhecimento do não saber, do não sabido e do des-sabido em cada um de nós e em quem nos cerca, apresentando o racismo como questão onipresente, inescapável. Esta compreensão faz do letrar-se um exercício contínuo, perseverante. Propor um trabalho de letramento aos psicanalistas é enfrentar a repercussão dessas questões na subjetividade de brancos/as, negros/as e outros/as no trabalho clínico, na formação de analistas, na nossa produção ética, teórica e política. Não há como entrar nessa aventura sem implicar o corpo, os corpos, nossa experiência sensível tantas vezes invisível, mas sempre presente num cotidiano cruelmente desigual, opressor e traumatizante.

Para mobilizar esses afetos que nos atravessam, elaborá-los e responsabilizarmo-nos por eles, tomamos como ponto de partida o processo pelo qual passamos desde 2008, quando começamos a trabalhar o tema do racismo no âmbito do Departamento de Psicanálise, do Instituto Sedes Sapientiae.

Naquele ano fomos mordidos definitivamente pela questão do racismo ao escutá-la pela primeira vez no âmbito da formação de analistas. Assim começamos a enxergar e poder tocar algo que estava ali o tempo todo, mas não percebíamos. Um movimento tectônico começou a se produzir, sem uma manifestação mais clara na superfície da vida institucional.

Em 2015, com a entrada de alunas negras afirmadas como tal no curso de Psicanálise foi que a palavra letramento apareceu. Foi trazida por Anne Egídio à Incubadora, nos encantou e incitou a querer entendê-la mais, inaugurando o vasto campo de trabalho no qual nos encontramos agora no grupo de trabalho A cor do mal-estar, construído pela Anne Egídio, por mim e pela Marisa Corrêa da Silva, com sustentação institucional da Incubadora de Ideias com efetiva participação de Heidi Tabacof, Christiana Freire, Cristina Herrera, Noemi Moritz Kon  e todas e todos que chegaram em seguida, um grupo interracial disposto a ocupar espaços e reivindicar mudanças concretas que inscrevam a prática do antirracismo entre nós, imediatamente.

Para isso, é necessário ressignificar comportamentos excludentes no cotidiano das instituições, que não são identificados por estarem naturalizados e internalizados.

Termino por aqui, agradecendo a Maria de Fátima Vicente, articuladora da área de eventos, a Cláudia Dametta, secretária do Departamento de Psicanálise e a equipe de T.I. pelo apoio.


Grupo de trabalho A Cor do Mal-Estar




UM RELATO[2] DO EVENTO SOBRE POLÍTICAS DE COTAS


EQUIPE EDITORIAL DO BOLETIM ONLINE


O evento on line, realizado no dia 29 de maio e proposto pelo grupo de trabalho A cor do mal-estar[3] do Departamento de Psicanálise, trouxe uma provocação para o Instituto Sedes Sapientiae. Como pontua em sua apresentação Maria Aparecida Miranda, uma das organizadoras, não é possível discutir cotas sem levar em conta o racismo institucional presente nas instituições psicanalíticas. A angústia originada de um racismo latente na nossa sociedade, herdeiro das bases escravocratas sobre as quais foi construído este país, traz inúmeras perguntas desencadeadas pela baixa representatividade de negros, seja entre alunos e formandos, seja quanto a professores e autores estudados. Assim se problematiza o interesse das instituições psicanalíticas em combater o silenciamento a respeito do racismo.

O evento cultural que antecedeu as falas dos convidados, anunciado por Marisa Corrêa, moderadora do evento, foi apresentado pelo poeta Erivelton Amaro - um fundo escuro e o som de atabaques serviam de cenário para a leitura em voz alta de uma lista infindável e sinistra de fatos na história brasileira que resultaram na matança de negros, desde a escravização até a negação da pandemia e seu impacto sobre a população negra. O silêncio que se seguiu foi mais do que significativo. Esta é a história que não se conta na escola.

Membros da Diretoria do Instituto, Georgia Vassimon e Marta Cerruti se apresentaram, reafirmando a urgência de abordarmos o tema e o propósito de transformar esta discussão numa política consistente que envolva todos os setores e áreas do Sedes. Foram enumerados quatro pontos principais como fios condutores: a necessidade de sensibilizar a comunidade para o fato de o racismo ter consequências nefastas para todos nós; abrir contratações para professores e aumentar o número de estudantes negros, reafirmando o Instituto sua responsabilidade numa transformação social que apoie a democracia; o respeito à pessoa humana; a definição de uma política que não se restrinja a um ou outro departamento, mas que seja aplicada no Sedes como um todo, numa construção coletiva.

O primeiro convidado a se apresentar foi Ignácio Paim Filho, médico, psicanalista, membro do Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre (CEPdePA) e da Sociedade Brasileira de Porto Alegre (SBPdePA). Ele conta do momento em que, depois de um longo período em que se via como um negro assimilado ao mundo dos brancos, exemplo típico de negro único, descobriu-se negro numa viagem a Cabo Verde: para seu estranhamento, naquele congresso em que a plateia era majoritariamente negra, ele estava na mesa ladeado exclusivamente por colegas brancos, numa reiteração de seus lugares de poder. A partir do efeito dessa experiência, Paim foi em busca de sua história ancestral, tendo nascido e vivido num estado do Brasil em que apenas 16% da população é negra. Ignacio começou a trabalhar sobre ações reparatórias, a refletir sobre a morte rotineira dos negros, a escrever sobre os assassinatos, sobre a presença do racismo na cultura psicanalítica. Acredita que as instituições psicanalíticas devem promover um letramento racial, podendo avançar para o exercício de uma branquitude crítica, pois para ele sem pressão, sem produzir inquietação nas pessoas que detêm o poder, as coisas não se transformam. O custo alto da formação afasta os negros da formação, que não receberam nenhuma benesse pós-abolição. Na instituição onde trabalha, foi criado um fundo que dá ajuda financeira aos candidatos a partir da criação da comissão Obuntu, palavra que significa em bantu “Eu sou porque nós somos”.

O convidado seguinte, Juarez Xavier, professor da UNESP Bauru, onde também é docente da Comissão de averiguação das autodeclarações de pretos e pardos, retoma o final dos anos ’80, onde aparecia uma questão urgente: o Estado produzia morte de negros em escala industrial - por que não se adotavam políticas que paralisassem este massacre? Ele discute o conceito de cotas, afirmando que os negros não precisam delas, pois não são minoria. Precisam sim de políticas públicas, é necessária a discussão de políticas afirmativas, uma vez que nossa sociedade ainda não se apercebe da condição humana dos negros. Para ele, a brutalidade que persiste até hoje só se explica porque a população negra ainda não tem o estatuto de humanidade. Entre 1905 e 1908, por exemplo, o governo alemão assassinou 75 mil habitantes da Namíbia, entre os povos Herero e Nama, por terem resistido à dominação colonial (apenas recentemente, a Alemanha admitiu a prática deste genocídio e entrou em acordo para o pagamento de uma indenização ao governo daquele país). Mais um exemplo disto é o fato de 70% dos presos injustiçados no Brasil serem negros, de que uma criança negra não desperta empatia como aquelas brancas, o que se percebe na extensa cobertura da mídia ao assassinato de um menino branco de classe média alta, enquanto a morte frequente de crianças negras nas periferias por conta de ações policiais não produz tanta indignação. O racismo sistêmico é aquele que define o critério da descartabilidade humana do Brasil, que é muitas vezes desejado. Este racismo acaba por produzir uma espécie de sub-cidadania, na qual os integrantes não têm acesso à educação, à moradia, ao lazer e circulam num espaço onde o estado democrático está ausente. Assim as instituições acabam por reproduzir o universo cultural escravagista, apoiando-se numa lógica supremacista.

Em 1978, como relata Juarez, quase 100 anos após a abolição da escravidão, graças em boa parte à militância do MNU (Movimento Negro Unificado), o racismo é finalmente criminalizado no Brasil. A luta política se fortalece e apoia as ações afirmativas, o que resulta no estabelecimento de cotas para negros e indígenas nas universidades públicas. Mas, para que isto funcione, faz-se necessário também o letramento dos professores, assim como a referência aos autores negros, ao invés da restrição bibliográfica a autores homens brancos lançando seu olhar europeu ou norte-americano, apoiada em uma fabulação axiológica de neutralidade sobre a produção científica que precisa ser rompida. Os antigos objetos desta produção – negros, mulheres e LGBTQI + - são sujeitos, o que exige a revisão de procedimentos metodológicos. Sobretudo, segundo Juarez, é fundamental convencer os privilegiados de que este sistema já se esgotou.

Em seguida, mais um convidado se apresenta, Ney Marinho, médico e diretor da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro. Considera que a política de cotas ajudou a instituição de que faz parte a “sair da grande noite”, expressão do filósofo camaronês Achille Mbembe. Para ele, a tríade racismo, desigualdade e belicismo é composta de categorias que devem ser extintas como condição da sobrevivência de nossa civilização, de nossa humanidade. Discorreu sobre a mentalidade escravagista que perdurou em nossa sociedade e que acabou por expressar enorme resistência aos governos populares que, embora tenham promovido a expansão econômica do país, acabaram por não implantar as reformas estruturais necessárias para combater a desigualdade. Nesta mesma época de lutas políticas latinoamericanas, ocorriam na África os movimentos revolucionários de descolonização, que acabaram culminando na luta armada, no combate a forças poderosas internacionais. Segundo Ney, não podemos separar estas lutas contra a desigualdade social da luta antirracista. Foi justamente o golpe civil-militar de 64 e seus subsequentes 21 anos de ditadura que ampliaram o roubo de nosso rico legado africano. Ney lembra-se de Mandela quando este afirma que não é apenas o negro, mas também o branco que precisa ser liberto da escravidão em que ele vive sem perceber. Há um grande empobrecimento cultural resultante do racismo, uma vez que a maioria da população negra é mantida acuada em territórios restritos como as favelas. Em termos de políticas de inclusão, Ney relata que a SBPRJ destina cotas a candidatos negros, indígenas e refugiados. Este é um projeto definitivo, cujo desenvolvimento contribuirá não só para a instituição, como também para a psicanálise, pois o palestrante avalia que, desde a Guerra Fria, a formação psicanalítica se afastou das questões sociais e políticas - às quais, entretanto, o tema do racismo volta a nos remeter. Entende que tal concepção insular da psicanálise é produto de uma visão política que não leva em conta a tensão permanente entre o sujeito e o grupo.

Ao final, na troca promovida pelas perguntas do público, houve uma reflexão sobre a forma de enfrentamento do racismo nas instituições, possibilidades de acesso de estudantes e professores aos cursos, adoção de autores não brancos e sobre a escuta do racismo nas análises. Para muitos, o projeto deve ser abraçado pela instituição como um todo - se não há este compromisso, as políticas não avançam. Também foi reafirmada a necessidade de ampliar a concepção de inclusão para além da destinação das cotas, para o efetivo acolhimento dos novos alunos e o enfrentamento do assédio acadêmico. Outra questão levantada foi a necessidade urgente de que a branquitude assuma sua dívida concreta e simbólica para que a luta verdadeiramente antirracista seja assumida por todos. Para tanto, podemos contar com um grande instrumento, descoberto por Freud – o trabalho com a palavra investida e potente.




[1] Psicanalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

[2] Este relato é uma versão resumida deste evento. O vídeo com a reprodução integral pode ser acessado por meio do link http://www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/index.php?mpg=07.08.03&acao=ver&id=120&pg=

[3] O grupo A cor do mal-estar é composto por Ana Carolina Santos, Ana Lucia Marques Souza, Anne Egídio, Camila Munhoz, Christiana Freire, Cristina Barczinski, Cristina Herrera, Dedé Oliveira Ribeiro, Erivelton Amaro, Heidi Tabacof, Jefferson Souza Pinto, Maria Letícia Munhoz, Maria Aparecida Miranda, Marisa Correa, Marta Azzolini, Noemi Kon, Paula Francisquetti, Roberta Veloso de Matos, Selma Tavares, Solange Oliveira e Tania Veríssimo.




 
 
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