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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    60 Setembro 2021  
 
 
PSICANÁLISE EM PANDEMIA

CENAS DO TRAUMÁTICO. O FACE A FACE COM A MORTE II


M. LAURINDA R. SOUSA [1]



Vou lhes falar sobre realidades já enunciadas nas falas anteriores. As repetições são inevitáveis quando se trata do traumático; são tentativas de elaboração das catástrofes vividas.

Inicio minha participação neste encontro tomando dois fragmentos que espero possam funcionar como tela de fundo (assim se diz na nova linguagem digital) para o que vou lhes apresentar hoje.

O primeiro nos vem da Psicanálise; é apresentado por Freud, em 1905, ao tratar da origem da angústia infantil:

Um menino, à noite, angustiado com o escuro faz um apelo à tia:
“Tia, fala comigo; estou com medo porque está muito escuro”
“De que te serve que eu fale, se, no escuro você não me enxergaria?”, responde a tia.
E o menino:
“Não importa. Há mais luz, quando alguém fala” (p. 205).

O segundo, nos chega pela poesia; é enunciado por Mário Quintana em seu poema: Emergência

Quem faz um poema abre uma janela.
Respira, tu que estás numa cela abafada
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo para que possas profundamente respirar
Quem faz um poema salva um afogado

Olhemos, agora, para o que se apresenta na frente da tela:

Pragas, devastações, guerras, fome, miséria, exílios forçados sem garantia de lugar de abrigo... Notícias que constroem imagens. Cenas que povoam cotidianamente o nosso mundo e nos colocam face a face com a morte.

Diante das catástrofes, como a que vivemos hoje, somos confrontados com o que é da ordem do traumático e do desterro e com a dificuldade em construir perspectivas para o futuro.

O medo, a ameaça da contaminação, a iminência possível da morte, da perda de nosso lugar, nos atravessa... Mesmo que tentássemos viver com indiferença, se isso fosse possível, o sofrimento dos outros nos atingiria. A apatia, a desesperança, o cansaço e a melancolia estão aí para nos mostrar os efeitos dessas experiências traumáticas.

A pandemia apontou um caminho ainda mais cruel para quem nunca teve acesso aos direitos fundamentais e a uma vida digna. Falo especificamente do Brasil porque aqui somos atravessados pelo trauma da epidemia e pelo trauma político de uma redemocratização que, neste momento, se vê ameaçada pela ação de um governo extremamente perverso e violento.

Hoje, temos, segundo levantamento recente do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas, quase 50.000 crianças e adolescentes órfãos de pai e mãe, mortos pelo Covid e muitos vivendo em situações precárias. Essas crianças e jovens, são, também, a expressão da orfandade que marcou este país. Ficamos órfãos de nosso projeto político, dos ideais que nos alimentaram na luta contra os 20 anos de ditadura, contra a violência do poder, contra as desigualdades sociais e a injustiça que atinge, principalmente, pretos, pobres, indígenas e todos que ficam à margem da dita normalidade: heterossexual, branca e patriarcal.

Temos, também, um país órfão de parte de seu futuro possível devido à ausência das crianças e jovens que foram mortos por negligência, por maus-tratos, por chacinas, por balas perdidas.

Para eles, escrevi In memoriam:

Menino na rua
Zumbido de bala no ar
Poça de sangue

Chuva pingando
As lágrimas correndo
Vertentes no chão

Gritos nas casas
Procissão em silêncio
Outra vida nua

Nasceram flores
Na cova do menino
sempre-vivas

Em 16.5.2021, um jornal de grande circulação em São Paulo (Folha de São Paulo), estampou na primeira página uma foto que já é em si uma narrativa. De um lado, o muro com as marcas dos tiros da maior chacina do Rio de Janeiro, em Jacarezinho, 28 pessoas mortas. Do outro, a ironia do grafite onde se lê: CRIANÇA FELIZ.

Feliz? Como se vive com essas contradições?

Talvez, praticando encontros diários com suas contradições, tentando trocar urubus carniceiros por andorinhas, como poeticamente nos propõe Manoel de Barros. Ou, pensando como Octavio Paz, lido por Marcelo Ariel no encontro inaugural das Raias, ontem, afirmando que “a poesia revela este mundo, mas também pode criar outros mundos”.

Acompanhemos, então, o olhar de Manoel de Barros (2006):

“Eu tive uma namorada que via errado. O que ela via não era uma garça na beira do rio. O que ela via era um rio na beira de uma garça. Ela despraticava as normas. Dizia que seu avesso era mais visível do que um poste. Com ela as coisas tinham que mudar de comportamento. Aliás, a moça me contou uma vez que tinha encontros diários com suas contradições... Ela quis trocar por duas andorinhas os urubus que avoavam no Ocaso de seu avô... Ela queria trocar porque as andorinhas eram amoráveis e os urubus eram carniceiros” (XII – Um olhar).

Em 1930, ao analisar o Mal-estar na cultura, Freud também se inquietou com as dificuldades para lidar com as contradições. O que querem os homens?, perguntou ele. E respondeu: Querem a felicidade. E como se define essa felicidade? Por um lado, uma intensa vivência de Prazer, por outro, a eliminação da dor e do Desprazer. Ao reconhecer as dificuldades que a vida nos impõe, Freud reconheceu, também, que, para enfrentá-las, não nos é possível prescindir de calmantes.

O sofrimento nos ameaça de três fontes: do corpo, do mundo exterior e do vínculo com outros seres humanos – esta fonte sendo a mais dolorosa. Por essas condições de sofrimento, o homem se resigna, muitas vezes, a abandonar o ideal da felicidade e, simplesmente, tentar amenizar a infelicidade.

Uma forma de tentar resolver o sofrimento decorrente dessas três fontes seria, como membro da comunidade, tentar transformar essa realidade. Há, aqui, um chamado à ação de todos para o bem-estar de todos.

Outra alternativa valorizada é a que provém da arte. A arte cria laços sociais; rompe o isolamento narcísico. Fazer laços é uma forma de sobreviver, de resistir. Uma forma de expelir, elaborar o terror interno provocado pelas situações traumáticas, numa tentativa de denunciar, transformar, coletivizar, retirar o corpo da entrega apassivada; impedir o corpo de ocupar o lugar de retirante, de território onde se sepulta o mal. A recusa a essa sepultura é um sinal de luta pela vida.

Peter Brook, em entrevista recente feita ao jornal Libération, relembrou os bombardeios de Londres, durante a Segunda Guerra Mundial e marcou a importância da arte naquele momento: “quando as sirenes tocavam no início de uma representação, os espectadores eram obrigados a permanecer na sala até o dia seguinte. Como sempre havia atores profissionais e amadores entre o público, eles subiam uns depois dos outros ao palco para cantar e improvisar ao longo da noite” ... “Foi assim, disse ele, que, em condições terríveis, nasceu um novo teatro” [2].

Não só nasceu um novo teatro; as pessoas que passaram por essa experiência traumática encontraram uma forma de continência e suporte para se manterem vivas.

Vou, então, voltar meu olhar para o lugar da escrita e das produções poético-narrativas como uma forma de enfrentar o traumático deste momento. Momento em que somos atravessados pelas mazelas do corpo, pela devastação do meio ambiente, pela ameaça de um vírus que nos deixa sem ar, e pela exposição ao pior dos males, o decorrente de uma ação humana, de um urubu carniceiro, que pretende conduzir os homens, como boiada, ao caminho do morredouro.

Há outra face dessa realidade; uma outra terra onde as imagens podem ser vistas pelo seu avesso do avesso do avesso, desdobradas na pele de outros afetos, onde as dores do traumático podem ser destecidas e compor novas linguagens e novas memórias. Sua ausência, pode, como diz Antonio Cândido (2011), provocar a desorganização pessoal ou uma frustração mutiladora. Para ele, da mesma forma “que não é possível haver equilíbrio psíquico sem os sonhos durante a noite, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura” (p.177)

Há uma proximidade intensa entre a arte do poeta e o ofício do analista. Ambos, desbastam a palavra – termo tão significativo, cunhado por Manoel de Barros; Desbastar a palavra, é um trabalho absolutamente singular que demanda tempo, construção, repetição. Um refazer da vida.

Foi assim com Maria José dos Prazeres. Marcada desde a origem pela pobreza, pela cor da pele, pela vulnerabilidade do seu lugar na periferia do mundo, guardou, dentro de si, o desejo de vivência. Dos prazeres teve notícia, mas não os viveu suficientemente. Foram, porém, alimento para a resistência que fez anunciar, nos versos de Emicida, AmarElo (sample: Belchior – Sujeito de sorte) quando disseram da sua morte por Covid, em abril de 2020:

“Tenho sangrado demais/ Tenho chorado pra cachorro/ Ano passado eu morri/ Mas esse ano eu não morro... /Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes/ Se isso é sobre vivência, me resumir a sobrevivência/ É roubar um pouco do bom de mim.../ Ano passado eu morri, mas hoje eu não morro não”.

Juntou, na hora da partida, um pouco de versos e muito dos sonhos, tentando fazer do imprevisto um encontro e da morte anunciada, uma brisa sem destino.

Pensaram que o corpo estava morto, mas pergunto eu: Vocês sabem quem era o corpo morto? Estava de fato morto? Alguém fechou seus olhos? Alguém beijou o corpo morto? Alguém chorou por ele? [3]

Ouçam, então, o Convite que poderia, hoje, ser enunciado por Maria José dos Prazeres. Ele foi escrito por Hilda Gil, uma delicada poeta brasileira. Vejo nele um convite à vida; um convite ao estar junto. Um convite à resistência:

Se eu disser
Que nessa noite
Navegam barcos de sol
Se eu disser
Que imensas araras azuis cortam o céu
Se eu disser
Que matam crianças
E ainda assim elas brincam
Se eu disser
Que mora a guerra
No coração das pessoas
Se eu disser
Que as palavras
Não valem mais nada
Mas Kopenawa e Krenak
Sustentam o céu
E que há flores amarelas e bem-te-vis
E pessoas de chocolate nas praias de sal
E florestas de fogo
E rios de enxofre
E manhãs, meu Deus! As manhãs.
Se eu disser
Que ácidos corrosivos pairam
Sobre as cidades
Mas que damas da noite ainda perfumam
E os pirilampos dançam no campo
Se eu disser
Você vem?

Este é também um convite final deixado em nome de todos os que partiram como Maria José dos Prazeres: que possamos estar juntos na passeata do dia 24 de julho contra o fascismo e a favor da poesia e da vida.

Referências Bibliográficas:

Barros, M. (2011). Memórias inventadas. A segunda infância. Rio de Janeiro: Planeta, 2006.
Cândido, A. Vários escritos. Rio de Janeiro: Ouro e Azul, 2011.
Freud, S. Obras Completas. (1905). “Tres ensayos de teoria sexual”.
Buenos Aires: Amorrortu, 1995.

._____________________. (1930). “El malestar en la cultura”. Buenos Aires: Amorrortu, 1995.





[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora no Curso de Psicanálise.

[2] Relato feito por Bernardo de Carvalho, no jornal Folha de São Paulo, em 13.6.2021

[3] Perguntas feitas a partir do poema Morte, de Harold Pinter, citado em seu discurso ao receber o Nobel de literatura em 2005.




 
 
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