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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    60 Setembro 2021  
 
 
DECOLONIAL

CELEBRATE [1]



SÍLVIA NOGUEIRA DE CARVALHO [2]


É domingo, descanso. Em pandemia, fico em casa. Escuto Anderson .Paak, comemoro:

Time never cares, if you're there or not there
All you ever needed was a simple plan
But you're doing well, I mean you're not dead
So let's celebrate while we still can.

[O tempo nunca se importa, se você está lá ou não
Tudo de que você precisava era de um simples plano
Mas você está indo bem, quer dizer, você não está morto
Então, vamos comemorar enquanto ainda podemos]

Sozinha, rememoro. Era uma vez um encontro marcado entre o Conselho de Direção do Departamento de Psicanálise e o Grupo de Trabalho A Cor do Mal-Estar. Na pauta, o seguimento das políticas afirmativas assumidas pela Assembleia de nosso Departamento.

Heidi T. anuncia a leitura de um pequeno documento que fundamenta direção e formato das propostas que GTACME tem a fazer.

Anne E. lê. A letra ela mesma, à capela. A palo seco [3].

Cristina P. manifesta nossa receptividade à proposta. Tide S., nossa vontade de saber mais. Paula F. distingue que a oferta se faz para o contexto do Departamento.

Uma diversidade de importantes falas se sucede – do trauma, do letramento, do trauma ao letramento. Chega minha vez. Enquanto Cristina P. e Tide S. se arriscavam a responder de imediato, pude escrever. Afinal, pela invocação do sensível, já nos encontrávamos ali mesmo num espaço experimental.

Co-memoro a forma da apresentação. Simples e forte. Um nome: Aquilombamento afetivo. Um movimento composto por dois bons significantes: quilombo, afeto. E um recurso, o recurso da voz. A voz de Anne E. que - por seu timbre e prosódia - não é uma voz qualquer. Sem texto pra olhar.

A suspensão do olhar me convida a revisitar paisagens antigas. Uma aula de dança africana. Essa aula não começa com ninguém, começa com a amplidão da sala - piso de madeira, janela envidraçada, teto de telhas aparentes - e o som dos atabaques. No recomeçar, alguém assume o primeiro gesto e a primeira palavra. Esse alguém ali se chama professor. Em nossas futuras oficinas se poderia chamar coordenador.

Fatima V. disse que podia ser uma roda. Acho que sim e encontro uma referência pro sim: “Na cultura afro-indígena, a roda é o local de encontro, é na roda de samba que os versos são cantados, celebrados, festejados. Na capoeira, na ciranda... estar em roda é se colocar em posição afro-brasileira.”[4]

Noni M. disse que era um convite para o comum. Penso no escrito de Richard Sennet em A corrosão do caráter: Nós, o pronome perigoso. Esse perigo me interessa, outra vez e agora.

Assim me ocorre a derradeira invocação: um homem, John, apaixonando-se irremediavelmente por uma mulher, Yoko. Ao visitar a exposição da artista, ele se depara com certa instalação dela: uma escada de pintura ali disposta, pronta pra ser subida. No alto, há simplesmente uma palavra a ser lida: Sim.

Um sim de sim. Tal como no alto de uma escada de armar, e de acordo com Heidi T., esse sim de sim é: sem garantia nem escapatória.

Bora comemorar enquanto a gente ainda pode?



22ago2021





[1] Em referência à canção do músico norte-americano Anderson .Paak (1986-), Celebrate (Comemorar) no disco Malibu, de 2016: https://youtu.be/5SKpOW_o8Do

[2] Psicóloga, analista institucional, psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Professora no curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma e sua representante na Clínica do Sedes. Integrante do coletivo Escuta Sedes. Integrante da equipe editorial deste Boletim e articuladora da área de Publicações e Comunicação no Conselho de Direção 2021-2023.

[3] Tal como se diz, na tipografia espanhola, da letra sem adorno e, no canto flamenco, daquele que se entoa sem guitarra. Na poética de João Cabral de Melo Neto (1920-1999), A palo seco (1960) refere-se à superposição entre o sul da Espanha e o nordeste do Brasil: O cante a palo seco/ é o cante mais só/ é cantar num deserto/ devassado de sol/ é o mesmo que cantar/ num deserto sem sombra/ em que a voz só dispõe/ do que ela mesma ponha. Disponível em: http://sibila.com.br/mapa-da-lingua/a-palo-seco/13784. Na filosofia de Bento Prado Jr. (1937-2007), remete a umapoética do entendimento. Ver Poesia ao sol do meio-dia In: Folha de São Paulo, 31/01/1999. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fol/brasil500/dc_2_9.htm . No desamparo de que disponho para partilha, a palo seco associa-se à ditadura civil-militar brasileira, como aludido nos versos de Belchior: Se você vier me perguntar por onde andei/ No tempo em que você sonhava/ De olhos abertos, lhe direi/ Amigo, eu me desesperava . In: Belchior (1946-2017), A palo seco, 1973. Disponível em: https://youtu.be/W6i-b_nUhKw.

[4] Oliveira, L; Prada, P.; Raicher, R., A parceria NURAAJ e AMMA Psiquê na prática da Clínica do Sedes. In Boletim Online 47, setembro 2018. Disponível em: http://www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/index.php?apg=b_visor&pub=47&ordem=3

O artigo, originalmente elaborado para a edição 47 do jornal digital do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, foi contemplado em novembro de 2018 pelo Núcleo de Relações Raciais do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo com o prêmio Jonathas Salathiel de Psicologia e Relações Raciais, na categoria Redes e articulações.




 
 
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