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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    60 Setembro 2021  
 
 
DECOLONIAL

A VISIBILIDADE DAS VOZES


CAMILA FLABOREA [1]



O intuito inicial deste escrito é buscar organizar as múltiplas vozes que têm chegado até mim e que foram deflagradas a partir de uma publicação numa rede social, gerando polêmicas discussões, defesas apaixonadas e, creio eu, uma insuficiente sobreposição de camadas acerca do assunto.

Antecipo não buscar sínteses para esta discussão. Ainda que exemplos apareçam aqui e ali, entendo que estamos longe de chegar a um ponto de equilíbrio ou a uma conclusão definitiva.

Preciso deixar claro, igualmente, o meu ponto de vista nesta discussão. Por um lado, ele é privilegiado, já que não sou musicista e posso me distanciar das paixões envolvidas no caso. Por outro, limitado, exatamente pela mesma razão. Socialmente, também ocupo lugar privilegiado: sou branca, cis, heterossexual, moradora de região não periférica. Por um terceiro lado, tenho buscado cotidianamente entender qual é o papel possível (ainda que não protagonista) na luta a favor da visibilidade social, da não normatividade dos corpos e subjetividades e do antirracismo.

Posto isto, vamos aos fatos que gostaria de problematizar aqui...

No dia 10 de julho, Thiago de Souza publicou uma foto em uma rede social com os dizeres “O jogo virou. É o funk no Teatro Municipal” [2]. No dia 12 de julho, se comemora o dia nacional do funk. No dia 13, fez outra postagem na mesma rede, anunciando: “Funk no Municipal: atura ou surta!” [3]

Entre os dias 10 e 13 de julho, houve várias reações e o debate público se inflamou, em torno de uma suposta polarização entre “cultura periférica” e “alta cultura”. Acompanhei o que foi provocado no meio dos cantores líricos brasileiros: o que se pode manifestar e sobretudo o que podemos apreender disso.

Thiago de Souza é musicólogo, tem mestrado na UNESP e é doutorando na ECA/USP. Defende a posição de que a música erudita está longe demais da realidade brasileira e que a música de concerto está morta [4]. Publicou um livro que trata deste tema cujo título é Sorry, it´s over! A morte da música clássica [5]. O funk é o tema de seu doutorado, buscando apontar seu valor legítimo e insiste, em vários momentos, que a música clássica “tornou-se dispensável”. E como Thiago e o funk foram parar no Municipal?

Em 2022 haverá a comemoração do centenário da Semana de Arte Moderna de 22. A proposta da direção do teatro é ocupá-lo com inúmeras manifestações artísticas que seriam inicialmente inesperadas naquele espaço, privilegiando a cultura negra e periférica de São Paulo: https://youtu.be/rxyWMZRM1Is .

Pois bem, neste contexto comemorativo foi que Thiago e mais duas pesquisadoras e funkeiras, Renata Prado e Fernanda Souza, gravaram um vídeo, dentro do teatro, falando sobre o funk: seu lugar, seu valor e sua força.

Infelizmente, alguns cantores se manifestaram imaginando que se tratava de um show de funk no Municipal. Digo infelizmente porque isso mostra que não procuraram olhar a postagem inicial. E todas as vezes que, apressadamente, vamos nos manifestando sem um mínimo entendimento do que se passou, a tendência é a de falarmos com paixão e superficialidade.

Houve os que se indignaram com as postagens em si, de tom claramente provocativo, de alguém que já tem anunciado que o ganha pão de vários músicos que se dedicam a uma arte por toda uma vida, morreu, e não é de hoje…

E há ainda os que vieram à público defender uma hashtag que pedia inclusão sem exclusão. Anunciando aí que havia um mal-estar gerado por essa suposta ocupação do teatro, mal-estar dos que também queriam estar lá.

Minha ideia é elencar aqui, de maneira sobreposta, as questões que foram alavancadas por este evento. Não numa ordem de importância, mas numa tentativa de seguir pensando.

Começo pela questão mais óbvia: o preconceito contra o funk, tão aclamado e denunciado. De que preconceito se trata?

Impossível ignorar o fato de que o funk é um representante da cultura gerada na periferia. Uma afirmação da potência negra e periférica como produtora de uma cultura própria é importante. Não podemos nos esquecer de que essa cultura, que hoje é muitas vezes tratada como menor, já foi até mesmo considerada criminosa apenas por existir, como aconteceu com a capoeira e até mesmo o samba. Aliás, não há melhor maneira de desumanizar um povo que tentar matar sua religião e sua cultura. O povo negro e periférico tem lutado contra isso e se expandido em força, num contraponto essencial à política de extermínio em curso neste país.

Pois não é difícil deduzir que estar num lugar como o Theatro Municipal é um passo na direção oposta à colonização. É um ato político, além de artístico. E neste sentido, penso eu, requer o apoio de todos que querem ver a diversidade acolhida de fato nos espaços públicos, sejam eles centrais ou periféricos.

Qual é então a queixa que pode ter advindo de uma circunstância como essa e que possa ser pensada para além de racismo e de valores coloniais? Existe alguma reclamação que possa ser legitimada num contexto como o Brasil de 2021, com todos os embates políticos que temos vivido? Penso que sim. E ela vem de uma classe de artistas que também pede para ser ouvida.

O que faz um cantor de ópera no Brasil, grosso modo? Dedica-se uma vida inteira e torce para trabalhar o suficiente e se sustentar com seu canto. Salvo raras exceções, a classe artística no Brasil luta muito para sobreviver, e os cantores líricos não são exceção a isso. Menos ainda os inúmeros técnicos que trabalham nos bastidores desses espetáculos. O que se pode ver como música eurocêntrica carrega essa pecha para dentro de seu próprio meio. Quero dizer com isso que o cantor nacional é preterido inúmeras vezes e os cantores internacionais, supervalorizados. Os colonizados são, ainda, e mais uma vez, inferiores aos estrangeiros. Essa mesma classe -preterida costumeiramente- e lutadora por um espaço de trabalho ficou em situação terrível durante a pandemia. Muito aos poucos, os eventos estão sendo retomados. Mas não é preciso dizer que muitos desistiram da carreira, muitos recorreram a amigos, familiares, coletivos de auxílio ou simplesmente passaram grandes necessidades e ainda estão passando.

A queixa que ficou explícita, ainda que mal explicada, não é, portanto, em boa parte das vozes que se levantaram, nem contra o Thiago e nem contra o funk. A queixa é a reivindicação da possibilidade de trabalhar no principal teatro de ópera de São Paulo. Que tem fosso, estrutura acústica e equipe suficientes para produzir uma ópera.

Se a ideia é valorizar a cultura nacional, a ruptura da colonialidade e a integração dos territórios no Theatro Municipal, eles se perguntam -e acredito que com razão- o porquê dessa proposta não incluir a ópera brasileira contemporânea. Por que a diversidade não abraça os cantores nacionais com todas as suas cores, classes e gêneros neste espaço que finalmente se propõe como democrático? Por que não há nenhum representante da ópera no conselho diretivo do Theatro Municipal de São Paulo, que possa falar não somente em nome da ópera, mas sobretudo em nome dos cantores líricos (que no dia 22 de julho comemoram seu dia), e em nome de tantos técnicos e músicos que tentam encontrar o jeito possível de viver e sobreviver se expressando através dessa arte que, ainda que vinda da Europa, encontrou em solo nacional formas próprias e cores nossas - que também precisam aparecer? Temos exemplos brilhantes, dentro e fora do Brasil, de pontes sendo construídas unindo linguagens, somando potências: https://youtu.be/TfQJZ76WR0U.

Em que pese a manifestação que sempre surge da branquitude sem consciência, surge também em paralelo a demanda pelo espaço de trabalho de vozes que, ao serem invisibilizadas, também vão sendo caladas -e, portanto, mortas- seja pela falta de dinheiro depois de um ano e meio sem trabalho, seja por não encontrarem um lugar de pertencimento valorizado. Pior ainda é a constatação de estarem sendo deixados de lado por quem deveria supostamente acolher e oferecer o protagonismo desta retomada ao artista nacional, sem restrições. Ao invés disso, são atingidos por um “fogo amigo”. Penso que já há pessoas demais desmontando a cultura e alijando os seus trabalhadores. Vamos queimar os músicos eruditos brasileiros junto com a estátua do Borba Gato? É a isso que chegamos em nossa luta anticolonial? Cada vez que a cultura se divide, ganha quem a quer inexistente e inoperante em sua potência criativa, educativa e transformadora. A quem serve o incentivo à polarização dentro de um grupo de profissionais que deveriam estar unidos no combate ao desmonte cultural? O colonialismo, ao longo da História, bem soube se valer deste tipo de política- dividir para dominar.



29/08/2021






 
 
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