ÁGORA
TEMA

A Construção da ideia de corpo


The body idea construction


Desde Freud, a constituição psíquica do sujeito se dá a partir do apoio pulsional no soma, ou seja, o nascimento de uma zona erógena apoiada em uma necessidade fisiológica. Dessa forma, as experiências vivenciadas pelo bebê, sejam elas de prazer ou desprazer, deixam impressões sensoriais e afetivas, formando assim os traços, memórias e representações psíquicas, todos constitutivos do aparelho psíquico.

Assim se dá a passagem do corpo biológico para o corpo erógeno, o caminho pulsional desde o soma até o pensamento, da necessidade ao desejo. Esse processo de integração se dá na relação com o objeto.

A vida psíquica do bebê começa com a experiência de fusão com a mãe. Progressivamente, mãe e filho vão se diferenciando, de tal modo que a criança separa seu próprio corpo do corpo da mãe e, paralelamente, o que é psíquico vai se diferenciando do que é somático na mente da criança. Qualquer fracasso nesse processo compromete a possibilidade de a criança integrar e reconhecer, como seus, o seu corpo, seus pensamentos e seus afetos.

Isso pode ser notado nos sujeitos que se apresentam à clínica psicanalítica com intenso sofrimento por não aceitarem o próprio corpo ou não se reconhecerem nele. Casos como anorexia, obesidade, busca desenfreada pelo corpo perfeito podem ser situações que demonstram uma distorção da imagem corporal ou sensação de inadequação. Nos casos de distorção da imagem corporal, percebemos que recursos médicos, estéticos ou até mesmo intervenções cirúrgicas nem sempre dão conta de aplacar o sofrimento,e, por esse motivo, são encaminhados para psicoterapia ou análise.

Convidamos nossos debatedores a pensar sobre as implicações técnicas que podem ocorrer nesses casos e sobre o manejo do psicanalista ao receber, conduzir e cuidar desses pacientes, que se apresentam muitas vezes sem demanda de análise, mas com grande sofrimento.

 


As Vicissitudes do Manejo Clínico na Anorexia e na Bulimia

The Vicissitudes of Clinical Management in Anorexia and_Bulimia

 

Maria Helena Fernandes

Minha contribuição neste debate irá se restringir ao que pude aprender, ao longo dos anos, com a clínica da anorexia e da bulimia, particularmente atendendo meninas e jovens. Não resta dúvida de que a abordagem psicanalítica desses quadros clínicos soube evoluir, e muito, sobretudo nos últimos vinte anos, levando em conta as dificuldades, as resistências à mudança e os impasses observados durante as psicoterapias desses casos. De uma ênfase exclusiva na decifração do sentido do sintoma, segundo o modelo de uma clínica das neuroses, os trabalhos psicanalíticos foram progressivamente explorando o papel das falhas narcísicas precoces ou traumáticas e destacando a importância de um trabalho de reconstrução ou mesmo construção de sentidos. Sendo assim, para contribuir com a discussão desse debate, pretendo aqui retomar dois aspectos muito presentes nessa clínica: a dificuldade de percepção das sensações corporais e a dificuldade de diferenciação da figura materna, para refletir a respeito das vicissitudes do manejo clínico diante dessas patologias.

A dificuldade de percepção das sensações corporais e de diferenciação da figura materna se faz acompanhar nessas jovens de uma outra, igualmente significativa, a saber, a dificuldade de percepção de seu mundo interior e suas necessidades afetivas. O que chama atenção é que, mesmo diante de uma atividade fantasmática aparentemente rica, ela não parece favorecer o enriquecimento da atividade imaginativa e relacional. As fantasias parecem aprisionados no corpo, surgindo, muitas vezes, de forma antimetafórica e concreta. Essas jovens se apresentam como se estivessem privadas do seu espaço interno, despossuídas de uma interioridade. Uma despossessão que, segundo Bidaud (1998), diz respeito ao corpo, ao afeto e ao pensamento. 

É a sensibilidade do analista que deve guiá-lo na aridez desse terreno de contato restrito, oferecendo pouco alimento interpretativo, dosando a conta-gotas o que será oferecido. É justamente quando a vivência transferencial começa a movimentar-se, saindo do seu congelamento inicial, que o próprio vínculo com o analista se torna algo potencialmente destrutivo e ameaçador. De fato, na clínica da anorexia e da bulimia, a destrutividade assume, muitas vezes, contornos dramáticos, não apenas por colocar em evidência a potência da destruição que vem de dentro, do interior do próprio sujeito, mas também por assinalar o potencial destrutivo no interior da transferência. Sendo assim, na relação transferencial, o analista é solicitado e ao mesmo tempo atacado, em uma relação, quase sempre, baseada no tudo ou nada. Esses movimentos transferenciais exigem que o analista crie possibilidades de manejo dessadestrutividade, de contornos nitidamente simbióticos. É nesse sentido que muitos autores salientam a importância do atendimento compartilhado com outro profissional (frequentemente o clínico geral, o nutricionista, o psiquiatra, etc.). O tratamento compartilhado tem, assim, a função de mediar a relação dual estabelecida com o analista e pode ajudar a enfrentar as adversidades ao longo do caminho, para que não nos percamos em expectativas de resultados rápidos, na maioria das vezes idealizados.

A escuta atenta do analista, que ouve com igual interesse tudo que o analisando diz, deixando-se embalar pela sua atenção flutuante, muitas vezes parece representar para essas jovens uma experiência nova, que encanta e assusta. Embora essa experiência pareça funcionar como um alimento reparador, ela não está ao abrigo de uma forte ambivalência, vivida de forma eloquente através dos movimentos transferenciais. O difícil na condução do processo analítico dessas jovens é encontrar a justa medida, é conseguir dosar proximidade e distância, silêncio e palavra. Elas não podem ficar sem o alimento psíquico da proximidade do analista, nem toleram ficar expostas à excitação excessiva de sua presença, se ela se fizer próxima demais.

Na transferência, desenha-se claramente o desejo regressivo de se ver integralmente cuidada por um pai e uma mãe ideais, totalmente disponíveis e ainda detentores de um poder mágico, capaz de protegê-las da dor e do sofrimento, mesmo que esse desejo seja incompatível com os ideais de autossuficiência e autonomia. Ao aparecer na análise, por meio da repetição que caracteriza a transferência, exacerba-se o sentimento de impotência e, assim, pode representar perigo para a continuidade do processo analítico. O paradoxo reside justamente no fato de o interesse no trabalho analítico e o prazer no contato com o analista se tornarem, ao mesmo tempo, fonte de angústia, provavelmente porque evocam a ameaça de indiferenciação e fusão vividas na relação com a figura materna. O controle onipotente sobre o corpo repete a relação experimentada com a mãe, e é esta relação que se repete na transferência. Uma relação marcada por ausência e intrusão, desamparo e desesperança, o que exige do analista delicadeza e paciência, não podemos ter pressa!

Assim, a dificuldade de diferenciação da figura materna certamente também vai assinalar a complexidade da condução do processo analítico com essas jovens, em que ficamos, com frequência, suspensos no fio da navalha da presença-ausência. Isto é, tentando nos equilibrar entre não falar demais, nem de menos. Suspensos por esse fio tênue, o desafio para os analistas é de conseguir seguir adiante pensando, estabelecendo ligações, criando imagens que permitam a criação de uma história na qual se possa simultaneamente contar e construir sentidos diversos para essa experiência subjetiva.

É nesse tênue fio de navalha que o espaço e o tempo das sessões vão sendo lentamente ocupados por uma tentativa de nominação do que é vivido ali, entre analista e analisando. Quase como um esforço para "pensar alto", "dar voz" ao que é experimentado, inicialmente através das sensações corporais, que abrem o caminho para a passagem dos pensamentos e, em seguida, dos afetos, sonhos e devaneios. Trata-se de uma passagem lenta e delicada, em que, muitas vezes, é necessário destrinchar as experiências subjetivas, habituando pacientemente essas jovens a nos explicarem o que querem dizer, o que sentem. Elaborar perguntas é muito mais importante nessa clínica do que fazer afirmações na forma de interpretações. Isso parece ajudá-las a contarem de si. Contar de si é também, e essencialmente, uma forma de se escutar! É a uma escuta de si mesmas que o processo analítico deveria poder levar essas jovens.

A situação analítica pode funcionar, então, permitindo resgatar fragmentos, juntar pedaços, criar sentidos, inventar formas, liberando a atividade fantasmática das suas modalidades defensivas, que davam um lugar privilegiado às experiências e sensações corporais. O atendimento dessas jovens nos revela um caminhar incontornável pelas sensações corporais, no início descritas e investidas como um material de análise que nós, analistas, precisamos nos habituar a ouvir sem preconceitos. É isso que vai permitir uma passagem desse corpo recusado a um corpo libidinizado, investido pela presença e pela palavra do analista.

Se nessas jovens observa-se, conforme já salientei tantas vezes, que a função de para-excitação materna encontrou dificuldade de ser introjetada, deixando-as expostas ao desamparo diante da ausência do objeto, não posso deixar de insistir aqui na importância dessa função de para-excitação do analista. Nesses casos, a função mediadora e protetora, assegurada pela presença constante e regular do analista, vem se unir a essa função de libidinização assegurada pela sua escuta. As dimensões paradoxais dessa transferência - fascínio e horror, amor e ódio, vida e morte - solicitam do analista que este possa exercer, à semelhança da alteridade materna, uma função de para-excitação em sua tripla dimensão de proteção, mediação e libidinização, permitindo à situação analítica funcionar como um reorganizador da libidinização do corpo. Somente nessas condições a atividade fantasmática poderá vir a ressurgir com toda sua virtualidade e riqueza.

Não é à toa que, diante desses casos, muitas vezes é o corpo do analista que é solicitado, na relação transferencial, a acolher os sentimentos e as sensações mais primitivas. Muitas vezes cabe ao corpo do analista receber e conservar essas sensações para que, através delas, possa reconstituir no movimento transferencial sua história libidinal. É essa reconstrução que permite estabelecer a ligação entre essas jovens e seus corpos e, assim, entre elas e seu desejo. Assim, a relação transferencial com o analista pode oferecer novas possibilidades de trocas que podem permitir a essas jovens se descobrirem desejantes, portadoras de vontades e capacidades até então desconhecidas, podendo inclusive sentir prazer em conhecê-las e desfrutá-las. Mas essa descoberta, durante longo tempo potencialmente geradora de angústia, precisa se realizar discretamente, em uma espécie de velamento de sua importância, a fim de que possa se tornar tolerável.

A situação analítica surge aqui como o espaço privado de acolhimento da interioridade. Um espaço no qual o segredo dessa descoberta pode ser preservado todo o tempo que for necessário. É esse ninho para o segredo que assegura à análise sua potencialidade para engendrar um movimento reorganizador da libidinização do corpo. Essas jovens solicitam de nós uma capacidade para habitar o vazio e a incompletude e para transitar pacientemente entre a vulnerabilidade e a ternura. Com elas somos confrontados à necessidade de gerenciar as angústias de abandono e de intrusão, de esfacelamento e do vazio, e, ainda, a levar em conta, ao mesmo tempo, o corpo e a palavra no manejo da relação transferencial.

 

Referências

BIDAUD, Eric. Anorexia mental, ascese, mística: uma abordagem psicanalítica. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1998.



O Eu e a Face Operada

The Self and_the Operated Face 

Ana Flávia M.G. Almeida

 

Quem sou eu para mim? Só uma sensação minha.

O meu coração esvazia-se sem querer, como um balde roto.

Pensar? Sentir? Como tudo cansa se é uma coisa definida.

(Fernando Pessoa)

 

O corpo adoecido e a fantasia de cura. Cura de quê? Durante minha formação de cirurgiã, apenas ouvia sobre uma aniquilação de sintoma, não se tratava de um sujeito que sofre. E de que sofre um paciente com assimetria de face que solicita uma cirurgia ortognática? Sofre de prognatismo ou retrognatismo?

O sofrimento que o bisturi não repara.

De um lado, um paciente que não se encontra identificado com seu corpo; do outro, um cirurgião que estuda estruturas estéticas e padrões funcionais adequados e, entre eles, a suposta solução depositada em um procedimento cirúrgico de grande porte, em que uma face será modificada em definitivo por múltiplas fraturas.

No início da minha clínica cirúrgica, uma jovem, vou chamá-la de Joana, chega acompanhada de sua mãe em consulta para realizar uma cirurgia ortognática. A paciente apresentava um sorriso gengival e uma mandíbula retraída, porém uma oclusão dentária dentro da normalidade. Sua mãe, que se comunicava por ela, relatava que a face incomodava a jovem. 

"Fizemos o tratamento ortodôntico, mas ela não está contente com o resultado. Sabemos que a mordida está boa, mas o tamanho da gengiva dela a incomoda."

Mesmo direcionando minhas perguntas a Joana, era a mãe quem respondia. Ela pouquíssimas vezes falava.

Decidimos pelo procedimento e, no pós-operatório, quando o edema já havia reduzido e sua nova identidade já estava estabelecida, Joana retornou para consulta de acompanhamento com sua mãe, como era de rotina. Ao fazer uma indagação a Joana, sua mãe iniciou a resposta e ela a interrompeu:

"Cala a boca, ela está falando comigo."

Ouvi com um alegre espanto; ali se apresentava um eu.

Para além de um pensamento dualista entre operar ou não operar um paciente com assimetrias de face, em que o corpo biológico não determina em si a indicação cirúrgica, a psicanálise possibilita pensar na função do corpo na constituição do eu, e no papel das intervenções cirúrgicas para a formação de um sujeito.

Uma nova identidade é buscada; o desejo de que sua imagem seja compatível com uma demanda que resulta de forças conscientes e inconscientes leva a um apelo: "Mude-me, mude meu rosto, mude minha identidade, porque com esta eu não consigo permanecer".

O sofrimento do eu está aderido a uma mandíbula pequena ou grande. É somente isso que eles expressam, porém a imagem final será suficientemente boa para que o eu possa apoiar-se nela? O planejamento estético que tanto estudamos dará ao indivíduo a imagem idealizada de si para que seu eu encontre lugar em seu corpo?

Esta é uma questão que encontrei na clínica. Um homem de 45 anos realizou uma cirurgia para correção de prognatismo havia 10 anos. Ele me procurou para que eu lhe devolvesse sua mandíbula proeminente. A cirurgia realizada por um colega estava inquestionável, sua oclusão dentro da normalidade e uma harmonia estética adequada, contudo ele apresentava um sofrimento maior do que antesda cirurgia.

O saber médico,segundo o qual o corpo biológico é a única possibilidade de avaliação, encontra-se distante da compreensão de um procedimento de mudança de identidade.A imagem por nós avaliada com grande precisão não é suficiente para reduzir a angústia de uma imagem que não contempla o paciente.

A imagem projetada no espelho ou capturada em uma fotografia gera, em alguns pacientes, um desconforto de identificação. Há uma rejeição à imagem, como acontecia com Joana. Quando deformidades são importantes e acompanhadas de alterações funcionais do sistema estomatognático, vemos uma indicação clara do procedimento, porém não é essa a maior demanda no cotidiano de um consultório de cirurgia bucomaxilofacial.

Seguindo esta construção, observo um equívoco quando o eu é confundido com o sujeito, como centro do aparelho psíquico. O eu é palco de conflitos, e parte de sua estrutura é inconsciente. O corpo pode ser visto como a expressão inconsciente de suas demandas.

Casos como o de Joana, em que as alterações faciais não são acompanhadas de patologias funcionais, observamos um incômodo de identificação. O desejo por uma imagem que esteja à mercê de uma idealização que não é refletida no espelho. 

A problemática não está nas especificidades das deformidades corporais, mas no possível percurso de sua reconstrução. O processo assemelha-se ao retorno do primitivo como uma nova possibilidade de investimento. A regressão é evidente, parece-me um desejo de reviver, reconstruir, reconstituir a cena da maternagem, investimentos primitivos em que não só sua face será modificada, mas seu eu será alvo de investimentos libidinais.

O desejo inconsciente de regressão inicia-se pelo adoecimento decorrente de uma decisão cirúrgica, e não como resultado de uma economia pulsional, que encontra o soma como descarga, sem a possibilidade de mentalização.

A face operada participa dos processos inconscientes presentes na formação da demanda de constituição de um corpo onde o eu possa apoiar-se.

A cena cirúrgica inicia-se com um sono profundo, induzido pela anestesia geral. Em uma abordagem de vida e morte, o eu se desfaz pelo adormecimento; a ausência de si é parte necessária para uma reconstrução.

Ao despertar da anestesia geral, uma face edemaciada. Parestesia de lábio inferior, hipotonia de musculatura, lábios entreabertos, a boca não encontra registro mnêmico para alimentar-se. A dieta líquida, pastosa, oferta a consistência e a textura dos primeiros momentos de subsistência. A cada duas horas, uma refeição é servida, como nos primórdios já ocorrera.

Sua nova imagem não é a mesma que a memória guardou, e tampouco é como deverá ser no momento em que o edema regredir. Espaço de tempo vácuo, em que o silêncio se manifesta com retração do eu. Podemos pensar então em reviver processos corporais desde a etapa de dependência absoluta, levando à construção de um novo senso de existir.

O cirurgião ocupa um lugar de amparo na transferência, assim como o analista em casos de pacientes regredidos, entre eles os chamados somatizadores. Podemos pensar em uma relação objetal primitiva, possivelmente pré-verbal. No setting analítico, cabe ao analista considerara possibilidade de aceitar ou não ocupar o lugar de sustentação parao paciente, como a água suporta o nadador. Nesses casos, o analista pode ter a tarefa de inativar a falha básica (BALINT, 1968).

O cirurgião não vislumbra a possibilidade de ocupar esse lugar; não há conhecimento, reconhecimento ou entendimento, portanto não há uma decisão. Aí estamos diante de um entrelace de inconscientes que se encontra à margem de qualquer decisão pensada ou elaborada.

O desejo do sujeito de reviver a cena primitiva como uma possibilidade de reconstrução de si pode encontrar apoio em uma nova imagem; isso está muito distante de meros padrões estéticos. 

O eu não é uma entidade estabelecida e tampouco coincide com o nascimento biológico. Sua construção é silenciosa e apoia-se no corpo, que encontra no outro o investimento necessário para essa construção. Sua constituição não é estática, desenvolve-se ao longo do tempo, tornando-se progressivamente robusto. Desse modo, é capaz de intermediar uma relação com o id sem submeter-se à tirania do supereu, adquirindo a habilidade de viver uma relação mais salutar com o mundo externo.

O procedimento cirúrgico pode ser visto como um recurso para modificação da identidade, e a decisão é resultado de processos inconscientes. Ao visualizar uma face harmônica, o sujeito pode reviver investimentos primitivos e encontrar uma possibilidade de o eu não sucumbir às altas exigências do supereu.

A questão que levanto neste debate é qual o papel do cirurgião em uma relação que é atravessada por uma passagem ao ato? Qual a possibilidade de inserir a subjetividade nesse encontro narcísico?

Posso dizer que não somos educados para encontrar algo que está além da realidade experienciada; a ciência se ocupa somente da obviedade da face desarmônica e das alterações funcionais. Casos como o do paciente que descrevi, que solicita um novo procedimento para ter de volta o que era considerado patológico, o prognatismo, são considerados casos isolados, e o paciente é responsabilizado pelo seu sofrimento. Não há escuta.

A metapsicologia nos permite pensar na ciência que está na demanda inconsciente que leva o paciente a mudar em definitivo sua identidade.

O analista não está, a meu ver, como coadjuvante neste cenário. Se falamos de um procedimento que está possivelmente a serviço da constituição de um eu, como a escuta do sujeito pode ser vista como algo complementar, ou só quando a medicina não encontra recursos?

Ouvir, elaborar, é auxiliá-lo a constituir-se. Isso não está presente na mesa cirúrgica, está no setting analítico.

 

Referências

BALINT, Michael. A falha básica: Aspectos terapêuticos da regressão. Porto Alegre: Artes Médicas,1993.

 

CÂMARA, Gabriel Ferreira. A formação do eu e o poder da psicanálise.Cogito, Salvador, v. 11, p. 20-25, out. 2010. Disponível em:<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-94792010000100004&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 29 set. 2019.

 

FERNANDES, Maria Helena. O corpo. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.

 

FONTES, Ivanise. A descoberta de si mesmo na visão da psicanálise do sensível. São Paulo: Ideias e Letras, 2017.

 

FREUD, Sigmund. O eu e id, "Autobiografia" e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

PESSOA, Fernando. O livro do desassossego. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.p. 154.



Por Que Não o Grupo?

A Psicanálise de Grupo Como Dispositivo no Tratamento de Pacientes com Queixas em Relação a Sobrepeso e Obesidade

 

Why Not As a Group?

Group Psychoanalysis in the Treatment of Patients with Complaints Related to Excess Weight and_Obesity

Juliana Farah [3] *

 

O Ma (間), enquanto possibilidade, associa-se ao "vazio", que, distinto de uma concepção ocidental cujo significado é o nada, é visto como algo do nível da potencialidade, que tudo pode conter, e, portanto, da possibilidade de geração do novo. É, por conseguinte, o vazio da disponibilidade de nascimento de algo novo e não da ausência e da morte. (OKANO, 2014)

Muitos dos pacientes com sobrepeso e obesidade apresentam um vazio muito diferente deste representado pelo 間 (Ma) japonês. Ao contrário da potência, do espaço no qual algo novo e transformador pode surgir, o vazio apresenta-se como mortífero, revelando ansiedades persecutórias e excessos não simbolizados do aparelho psíquico. Na ilusão de poder urgentemente preencher o vazio psíquico, esses pacientes usam o corpo como maneira de tentar dar conta daquilo que está fora do campo do representável.

Recalcati (2007) traz uma concepção interessante para pensarmos a obesidade e a questão do vazio. O autor faz uma diferenciação importante entre a falta - aquela fundante do sujeito, ligada ao sintoma - e o vazio - ligado à angústia e presente em sujeitos com significativas dificuldades de simbolização e representação. Ao propor uma clínica do vazio, diferenciando de uma clínica da falta, esse psicanalista italiano aponta para o uso do corpo como forma de dar destino àquilo que não está no registro do representável. Comer para preencher um vazio é uma forma corporal, em ato, de lidar com a ansiedade persecutória e com os excessos não simbolizados do aparelho psíquico.

Desse modo, ao tratar de pacientes com queixas em relação a sobrepeso e obesidade, lidamos com partes desses sujeitos que carecem de repertório simbólico. Em uma psicanálise clássica, esses núcleos dificilmente são - ou nem chegam a ser - acessados, pois a interpretação da e na transferência e o uso predominante das palavras são insuficientes. É aí, nesse campo, que os autores da psicanálise contemporânea, ao propor a articulação entre o intrapsíquico e o intersubjetivo, trazem importantes contribuições.

Minha experiência como psicanalista individual e de grupo me possibilitou testemunhar o quanto o dispositivo grupal é um espaço especialmente potente para que apareçam e sejam colocados em trabalho os aspectos não simbolizados da mente. Um aspecto que destaco do contexto grupal é a existência de transferências multilaterais. Essa pluralidade de transferências, ou o que Kaës (2011) denomina difração de transferências, incide sobre o(s) analista(s), os membros do grupo, o grupo e o fora do grupo, e possibilita o tratamento - não só intrapsiquicamente, mas nas relações - de sofrimentos psíquicos que estão relacionados aos vínculos, alianças e espaços psíquicos intersubjetivos. O processo associativo grupal se forma determinado por um eixo sincrônico, que coexiste com um eixo diacrônico, e por componentes intrapsíquicos, intersubjetivos e grupais.

O grupo mostra-se importante não apenas como fonte de identificações possíveis, mas como um espaço continente que vai aos poucos criando condições de estabelecer uma mediação entre dentro e fora, criando um envelope psíquico grupal que serve de referência para o envelope psíquico dos sujeitos membros do grupo. Os afetos negados, como a raiva e a tristeza, também podem ir ganhando continência e contorno, o que abre caminho para que sejam elaborados e ressignificados.

Algumas situações experienciadas em sessões de grupo me levaram a refletir acerca de questões relativas à fronteira, do Eu-pele e do envelope psíquico grupal. Em um grupo de tratamento das questões relacionadas à obesidade e aos excessos alimentares, é importante a constatação de que há um contato direto com a dimensão corporal: o corpo como representação e a dimensão de envelope do corpo e do grupo. Assim, as angústias de não ter forma, de ausência ou precariedade dos envelopes, ficam muito presentes e intensificadas.

O trabalho em coterapia se mostra especialmente potente nesses grupos, possibilitando o manejo, pela e na dupla de analistas, de elementos não simbolizados que aparecem no aparelho psíquico grupal. A análise intertransferencial, proposta por René Kaës, se faz, então, uma ferramenta fundamental para colocar em trabalho esses elementos. Deste modo, rêveries, associações, pensamentos e sensações da e na dupla analítica têm um importante lugar na análise dos grupos. Cito a seguir trechos do grupo que foi conduzido, em coterapia, ao longo de um ano como parte de minha pesquisa de mestrado (Farah, 2019).

Ivone chega para o grupo oito meses após ter feito uma cirurgia bariátrica. Sua presença nas sessões traz elementos que parecem vir com uma força maior por ela estar comendo muito menos do que comia antes da cirurgia. A fala em "conta-gotas" aponta para uma angústia profunda que não pode ser colocada em palavras. Seu corpo, magro e curvado para a frente, indica uma espécie de embotamento depressivo, e a compulsão por compras - além de comprar objetos de que não precisa e que não usa, Ivone compra todas as comidas que tem vontade de comer e leva para casa para que o marido coma - mostra uma tentativa constantemente frustrada de preencher um vazio. Ela traz na pele e no ato um deslocamento do "objeto-droga": diante do insuportável que seria encarar o vazio que antes acreditava poder preencher com comida, há um imperativo de tentar preenchê-lo de outra forma.

Raquel se refere ao fato de que o corpo gordo a protegia dos olhares dos "homens-gaviões", e Solange fala que ter engordado a livrou do ciúme excessivo do marido. Em ambas as situações, penso que há uma indicação da impossibilidade de lidar com as tensões provocadas pelo encontro com o outro, no qual o olhar deste outro sobre elas é excessivamente invasivo, e não há recursos suficientes para que isso seja trabalhado psiquicamente e, em consequência, possibilite uma mediação entre dentro e fora. Embora ambas as falas tragam uma referência à sexualidade, penso que não estamos tratando aqui de questões edípicas, da ordem do recalque, mas de questões arcaicas relativas à constituição psíquica, às dificuldades na formação do que Anzieu (2000) denomina Eu-pele e no Eu-psíquico que nele se apoia.

Selma conta uma experiência difícil que vive há vários anos, desde que recebeu um transplante de rim do marido. Os outros membros do grupo parecem reconhecer e legitimar o peso que Selma traz. O peso da dívida que fica pela doação do rim. Ao mesmo tempo, Solange tenta fechar a questão, não deixar espaço para a dor, para o não saber. Traz tentativas de dar soluções, sempre tentando dar resposta, fazendo perguntas que claramente tentam negar o sofrimento e encerrar a questão. Como em outras sessões, fala sem parar, transborda. Solange é porta-voz de uma fala que vai me parecendo um ato-sintoma, no sentido de tampar a angústia, como fazem com a comida. É como se entuchasse palavra, não podendo deixar lugar para o negativo.

Na análise da intertransferência aparece muitas vezes a vivência, nos corpos da dupla de analistas, de falta de fronteira, e é em nossa conversa após cada sessão que podemos ir colocando em palavras as sensações corporais e recuperando nossos contornos. Esse trabalho de elaboração feito na e pela dupla de analistas tem reverberações importantes nas sessões seguintes. É possível que, transferencialmente, a dupla de analistas funcione como objeto primário, ajudando o grupo a ganhar corpo e contorno, suportando atravessar momentos nos quais o envelope psíquico grupal, ainda pouco constituído, não é suficiente para mediar dentro e fora, eu e outro, sensações físicas e sensações psíquicas. Além disso, a função de prótese que o grupo exerce, isto é, o empréstimo que cada sujeito faz ao outro e ao grupo, e que o grupo faz a cada sujeito, de recursos que faltam a cada um, mostra-se fundamental para que lembranças esquecidas, traumas e pactos denegativos sejam colocados em movimento.

O descolamento da função de alimentação do ato de comer é algo que se faz marcante ao longo do processo desse tipo de grupo, e penso que vai sendo colocada no horizonte a possibilidade de se alimentar, isto é, de fazer uso da comida como alimento, e não como uma forma de tamponar o vazio. A quase inexistência, nas sessões iniciais dos grupos, de silêncios, de espaços vazios, pode ir dando lugar à possibilidade de atravessarmos juntos momentos de silêncios, de negatividade, de ausência de solução ou de resposta.

O encerramento do grupo foi vivido com algumas manifestações de resistência: "devia ser proibido dar alta de análise" (Joana); "pensei que hoje vocês iam propor para a gente se encontrar mais uma vez" (Ivone); "O grupo não devia acabar" (Solange). A angústia de separação aponta a abertura de um vazio que, por um lado, pode acionar o mecanismo de preenchimento nos moldes do ato-sintoma, mas, por outro, pode colocar no horizonte a possibilidade de enchê-lo com palavras ou, retomando nossa epígrafe, de viver algo do nível da potencialidade, que tudo pode vir a conter, e, portanto, da possibilidade de geração do novo.

 

Referências

ANZIEU, Didier. O Eu-pele. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000.

 

FARAH, Juliana F. S. Emagrecer é uma barra (de chocolate): a psicanálise de grupo no tratamento de pacientes com queixas em relação a sobrepeso e obesidade. 2019. 120 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica) - Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019. Disponível em: . Acesso em: 02 set. 2019.

 

KAËS, René. Um singular plural: a psicanálise à prova do grupo. São Paulo: Loyola, 2011.

 

OKANO, Michiko. Ma - a estética do "entre". Revista USP, São Paulo, n. 100, P.150-164, 2014. Disponível em: . Acesso em: 02 set. 2019.

 

RECALCATI, Massimo. Fame, sazietà e angoscia. Kainos: Rivista online di critica filosofica, 2007. Disponível em: . Acesso em: 02 set. 2019.


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ano - Nº 1 - 2019
publicação: 15-10-2019
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Autor(es)
• Maria Helena Fernandes
Psicanalista, doutora em Psicanálise e Psicopatologia pela Universidade de Paris VII, com pós-doutoramento pelo Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina (Unifesp), professora e supervisora do Curso de Psicanálise e professora colaboradora do Curso de Psicossomática do Instituto Sedes Sapientiae. Membro dos Departamentos de Psicanálise e de Psicossomática do mesmo instituto. Autora dos livros L’hypocondriedurêve etlesilencedesorganes: une clinique psychanalytiquedusomatique (PressesUniversitairesduSeptentrion, 1999);Corpo (Casa do Psicólogo, 2003); e Transtornos alimentares: anorexia e bulimia (Casa do Psicólogo, 2006).
E-mail: fernandes.mh@terra.com.br

• Ana Flávia Melo Galvão de Almeida
Cirurgiã bucomaxilofacial. Membro da Sociedade Brasileira de Cirurgia Bucomaxilofacial. Fellowship T.M.J. Surgery, N.Y. Especialista em Cuidados Integrativos pela Unifesp. Especialista em Psicossomática Psicanalítica pelo Instituto Sedes Sapientiae.Membro do Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae.
E-mail: afmga@uol.com.br

• Juliana Farah
Psicóloga, psicanalista e acompanhante terapêutica. Mestre em Psicologia Clínica pelo IP-USP e especialista em Terapia Familiar e de casal pela COGEAE da PUC-SP. Integrante do grupo de pesquisa CLIGIAP/USP (Clínica de Grupos e Instituições na Abordagem Psicanalítica)
E-mail: jujufsf@gmail.com


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