ARTIGOS

Impacto da medicina protocolar tecnológica na experiência subjetiva de adoecimento


Impact of the technological protocol medicine on the subjective experience of illness
Glória Heloise Perez

RESUMO
Este artigo analisa as peculiaridades da nova experiência subjetiva de adoecimento, uma vez que a doença pode se revelar não como habitualmente, por meio de sinais corporais detectados pelo sujeito, mas por exames da medicina contemporânea, protocolar, tecnológica e mercantilizada. O conceito de doença desta medicina não se define em termos da experiência subjetiva de adoecimento, mas por estar fora dos parâmetros normais dos exames. O diagnóstico inesperado dado pela tecnologia, o contato com algo no corpo completamente estranho ao sujeito é uma experiência disruptiva e pode ser vivido como uma “intrusão”, na concepção winnicottiana. Remetido a uma condição de dependência, atualiza-se a relação mãe-bebê da história do sujeito. Há necessidade de um processo de integração psíquica dessa experiência, o trabalho da doença, que será atravessado pelos recursos simbólicos do sujeito, e pela sua relação com o outro, especialmente na relação com o médico e com os profissionais de saúde. Para tanto, faz-se necessário um profissional de saúde, em presença sensível, como uma “mãe suficientemente boa” winnicottiana. Contudo, na medicina contemporânea tecnológica, de múltiplas especialidades e atravessada pela ordem do consumo, oferece-se ao doente uma assistência conforme a lógica de produto de mercado, fragmentada e dessubjetivada. Isto pode, ao invés de favorecer o processo de integração psicossomática, promover uma nova experiência de intrusão e ser potencialmente traumática. A experiência subjetiva disruptiva de doença, revelada pela medicina protocolar tecnológica, inclui sofrimento psíquico, mas este não é contido pelo tratamento dado ao corpo por ela nomeado doente. Assim, a escuta do sujeito é uma necessidade no cuidado deste dito “doente” para haver o reequilíbrio psicossomático.

Palavras-chave: Adoecimento, Medicina Protocolar Tecnológica, Psicossomática Psicanalítica, Psicanálise.

ABSTRACT
This article analyzes the peculiarities of the new subjective experience of illness, since the disease can reveal itself, not as usual, from bodily signs detected by the subject, but by examinations of contemporary, protocol, technological and commercialized medicine. The concept of disease in this medicine is not defined in terms of the subjective experience of illness, but of being outside the normal parameters of the exams. The unexpected diagnosis given by technology, the contact with something in the body completely foreign to the subject is a disruptive experience and can be experienced as an “intrusion”, in the Winnicottian conception. Referred to a condition of dependence, the mother-baby relationship in the subject's history is updated. There is a need for a process of psychic integration, the work of the disease which will be crossed by the symbolic resources of the subject, and by his relationship with the other, especially in the relationship with the doctor and health professionals. For this, a professional caregiver is needed, in a sensitive presence, as a Winnicottian “good enough mother”. However, in contemporary technological medicine of multiple specialties and crossed by the order of consumption, the patient is offered assistance according to the logic of a market product, fragmented and de-subjectified, which may, instead of favoring the process of psychosomatic integration, promote a new intrusion experience and be potentially traumatic. The disruptive subjective experience of illness revealed by technological protocol medicine includes psychic suffering, but this is not contained by the treatment given to the body named sick by medicine. Thus, listening to the subject is a need in the care of this so-called “sick” in order to achieve psychosomatic rebalancing.

Keywords: Illness, Technological Protocol Medicine, Psychoanalitic Psychosomatics, Psychoanalysis.


 

Cultura contemporânea, subjetividade e adoecimento

 

Doença sem doente!

Vivemos na era do domínio do discurso da ciência, do avanço e da presença massiva da tecnologia e da sociedade de consumo, em que a vida se transformou, profunda e rapidamente, em muitos sentidos. Modificaram-se conceitos tão fundamentais como vida e morte, a forma como nascemos, vivemos, trabalhamos, como nos relacionamos com nosso corpo, com o outro e também como adoecemos (PEREZ, 2016).

Neste contexto cultural, a medicina está atravessada pela ciência, pela tecnologia e pela ordem do consumo, configurando-se como tecnológica, mercantilizada, baseada em evidências e protocolar. Esta configuração proporciona uma nova experiência subjetiva de adoecimento, uma vez que a doença pode se revelar não como habitualmente, por meio de sinais corporais detectados pelo sujeito, tais como dor, mal-estar, febre, desconforto físico, mas por resultados dos exames protocolares de rastreamento de doenças. O sujeito não se sente doente!

A tecnologia traz – com as imagens altamente definidas dos órgãos internos e com exames laboratoriais sofisticados que analisam seu funcionamento – a possibilidade de detectar uma doença antes que ela dê sinais perceptíveis ao sujeito. Assim, é a interpretação médica das imagens em alta definição e das sofisticadas análises clínicas laboratoriais dos exames protocolares que aponta a doença. Para o sujeito que se submete aos exames da medicina protocolar, é a palavra do médico – que diz que há doença e recomenda um tratamento – que sustenta, também, a crença de que há uma patologia em curso e a aceitação de submeter-se ao tratamento recomendado.

Podemos supor que seja profundamente perturbadora a experiência de ter uma doença revelada pela tecnologia dos exames e pela palavra do médico, e não por algo perceptível ao sujeito. Nesta situação, a tecnologia impõe ao sujeito uma linguagem estrangeira sobre seu corpo. A medicina diz que há doença, mas o sujeito não se sente doente; a experiência subjetiva não é de adoecimento.

O objetivo deste artigo é analisar as peculiaridades da experiência de adoecimento quando o diagnóstico da doença é realizado através da medicina protocolar tecnológica, e não com base em sinais corporais. Abordaremos aspectos do plano intrapsíquico, caracterizando os movimentos psíquicos, bem como do plano Intersubjetivo, considerando a relação com a equipe de saúde e com a medicina tecnológica.  

 

Ter uma doença sem nenhuma experiência de mal-estar é adoecimento? 

Esta questão nos remete a pensar sobre o conceito de saúde e doença que sustenta a concepção de adoecimento atual.

Ao longo da história, alternaram-se várias concepções de saúde e doença, diferenciando-se em função do conceito de corpo e ser humano em que se fundamentaram.

Na Antiguidade, para a medicina mágico-religiosa, a doença era entendida como algo resultante de transgressões aos deuses. Na Grécia Antiga, a medicina empírico-racional situava o corpo e as doenças no cenário das forças do universo, sendo as mesmas consideradas um fenômeno natural, como um desequilíbrio dos humores que correspondiam a elementos da natureza (água, terra, fogo e ar), e estava ligada também à história do doente, como apontava a teoria dos Humores de Hipócrates (VOLICH, 2010 [2000]; BARROS, 2002).

 

A natureza (physis), tanto no homem como fora dele, é harmonia e equilíbrio. A perturbação desse equilíbrio, dessa harmonia, é a doença. Nesse caso, a doença não está em alguma parte do homem. Está em todo o homem e é toda dele. As circunstâncias externas são ocasiões, e não causas.

[...] A doença não é somente desequilíbrio ou desarmonia; ela é também, e talvez sobretudo, o esforço que a natureza exerce no homem para obter um novo equilíbrio. A doença é uma reação generalizada com intenção de cura. O organismo desenvolve uma doença para se curar. (CANGUILHEM, 2019 [1943], p. 10)

 

Nas várias culturas daquela época e também na Idade Média, com o domínio do pensamento religioso do cristianismo, predominava a tendência de encarar o corpo como algo sagrado e intocável. Vesalius, em 1538, contestando a proibição, desde a Antiguidade, de dissecação do corpo humano, inaugurou, com seus estudos de anatomia, uma nova maneira de conhecê-lo e nele intervir (VOLICH, 2010 [2000]).

No Renascimento, o desenvolvimento das ciências naturais e o pensamento racionalista, inaugurado por Descartes, contribuíram para o estudo da realidade material do corpo, o desenvolvimento do paradigma mecanicista e a aplicação da matemática para a compreensão dos fenômenos da natureza, extrapolado também para o corpo humano. A doença é explicada pela interação mecânica das diferentes partes do organismo (VOLICH, 2010 [2000]; BARROS, 2002).

O modelo biomédico, no qual se fundamenta a medicina contemporânea, assenta-se na racionalidade científica moderna, que opera no princípio da correlação causa-efeito. Baseia-se em uma concepção mecanicista do corpo, segundo a qual este é concebido como algo puramente material, como uma máquina regulada por complexos equilíbrios enzimáticos. A doença configura-se como lesão ou mau funcionamento dos órgãos, sendo entendida como uma entidade objetiva, e não como uma experiência humana.

Como nos diz Martins (2004), o modelo cartesiano, que concebe corpo como máquina a ser consertada, parece ter como pressuposto uma máquina perfeita, em relação à qual se saberia que outra estaria defeituosa. Desconsidera, assim, que o corpo humano é um complexo vivo e singular.

 Desde a década de 1980, um outro paradigma foi incluído no modelo que sustenta a medicina contemporânea: a Medicina baseada em evidências. Esta preconiza que, na prática médica, a elaboração do diagnóstico, bem como a indicação da conduta terapêutica devem estar fundamentadas nas evidências sobre sua eficácia apontadas pelos resultados de pesquisas científicas, preferencialmente ensaios clínicos randomizados, publicados em periódicos especializados. Neste paradigma, surge o conceito fator de risco, definido como elemento que aumenta a probabilidade da ocorrência de uma doença ou de prejuízo à saúde (AVEZUM, 1998). Assim, com base nas evidências sobre os fatores de risco e na eficácia de tratamentos apontados nos estudos científicos, são criados protocolos, que fundamentam as condutas e os procedimentos médicos, bem como a prevenção de doenças.

Dessa maneira, a partir do paradigma da medicina protocolar, a clínica médica passa a operar com protocolos que incluem consultas médicas e solicitação de exames para sujeitos saudáveis. Esses protocolos, geralmente, são denominados de prevenção de doenças, pois incluem a análise da presença de fatores de risco para determinadas enfermidades. Contudo, muitos deles, embora denominados preventivos, na verdade são protocolos de rastreamento de doenças, para o seu diagnóstico precoce, como é o caso, frequentemente, na oncologia.

Um outro desdobramento da medicina tecnológica, protocolar, baseada em evidências é a medicina preditiva. O progresso extraordinário na compreensão da estrutura e da função dos genes humanos permite avaliar, no material genético, o risco de uma pessoa vir a ter determinadas doenças (RASKIN, 2017).

A medicina preditiva trabalha com a indicação de realização de procedimentos terapêuticos que possam evitar uma doença, que se pressupõe por parâmetros médicos, que o indivíduo tem alto risco de vir a ter. Um exemplo disto é a indicação de mastectomia para mulheres que tenham histórico familiar de câncer de mama e exame genético positivo para mutação de determinados genes.   

Assim, a medicina tecnológica da atualidade, protocolar e preditiva, propõe ao sujeito contemporâneo realizar exames para rastrear doenças, bem como tratar uma enfermidade que os exames dizem que ele tem alto risco de vir a ter, ou seja, uma possível futura moléstia.

Observa-se que, no modelo biomédico, a doença não é tratada como uma produção humana, mas como uma entidade objetiva, predominando uma abordagem nosográfica, e não biográfica, ou seja, de descrição da doença, e não do sujeito doente. Estar doente é definido por valores numéricos, por uma avaliação estatística. É ter um resultado de exame com valor fora da curva de distribuição normal dos parâmetros dos exames. Portanto, uma definição normativa.

Sob este paradigma, estar doente não está colocado em termos da experiência de doença, mas de não estar adequado à norma, de não se enquadrar nesta verdade externa ao sujeito. A experiência subjetiva de adoecimento não é considerada para estabelecer a definição e os parâmetros do que seja saúde ou doença. Prevalece a ideia da verdade cientifica que o médico revela ao paciente, sendo ele quem supostamente sabe a verdade sobre o corpo do paciente, sobre o “defeito” que deve ser corrigido.    

 

Sobre a medicina contemporânea

A medicina contemporânea está situada no contexto cultural da presença massiva da tecnologia e da sociedade de consumo.

A tecnologia revolucionou enormemente os procedimentos diagnósticos e terapêuticos da medicina. Oferece a possibilidade de obter imagens de alta definição de órgãos internos, análises laboratoriais dos fluidos corporais que avaliam o seu funcionamento, exames genéticos que estimam o risco de doenças, cirurgias robóticas e minimamente invasivas, intervenções à distância pela telemedicina. A inteligência artificial permite o acesso e o uso racional do volume imenso de informações médicas e de aplicativos, que possibilitam desde a monitoração à distância de sinais físicos e de comportamento até informações sobre a saúde de cada pessoa. Sem dúvida, um grande avanço em termos de funcionalidade. Tem-se a presença da máquina mediando a relação entre médico/profissional de saúde e paciente, o que a transforma. Configura-se a relação paciente x tecnologia x médico/profissional de saúde.

Outra característica da cultura contemporânea que deve ser analisada na sua relação com a medicina é o consumo (BARROS, 2002). Na ordem da cultura da sociedade de consumo, tudo tende a transformar-se em produto. E isto também se aplica à saúde e seus procedimentos. Intervenções médicas, exames, cirurgias, tratamentos, medicamentos, internações hospitalares, principalmente no âmbito privado, são oferecidos e apresentados ao paciente na perspectiva lógica do mercado de consumo, revestidos das particularidades de um produto. A relação entre médico e paciente fica transformada em uma relação de consumo, em que o cuidado da saúde do paciente perde o lugar de seu objeto exclusivo.

O cenário de trabalho, a relação com o ofício e a experiência de ser médico também foram completamente transformados. A prática médica se dava nos âmbitos do consultório privado e do hospital, quando havia necessidade de internação por emergência ou cirurgia eletiva. Hoje, o compromisso com a cura e a assistência ao paciente anda em paralelo com as necessidades de atender às demandas da sociedade de consumo. Assim, as consultas médicas, algo que, em princípio, é inerente à relação entre médico e paciente,  por meio das quais o paciente espera que o médico possa atender às suas demandas e expectativa de cura do seu mal-estar, estão subvertidas pela ordem de consumo. Paciente e médico estão inseridos em um complexo laboratorial, hospitalar e da indústria farmacêutica, que bombardeiam esse par com uma oferta enorme de produtos e pressão para o seu consumo. Como consequência, temos a desumanização da relação, com despersonalização e dessubjetivação tanto do paciente quanto do médico e dos profissionais de saúde. Neste caso, pode ser que nem paciente, nem médico e profissionais de saúde estejam como sujeitos nesta relação. Como aponta Gurfinkel (2001), as coisas (os produtos) tomam o lugar dos sujeitos. 

 

Sobre o sujeito da medicina protocolar: Quem procura encontra?”

O paciente da medicina protocolar é quem tem mais possibilidade de ter uma doença revelada pela tecnologia. Ele consulta o médico e realiza exames, cumprindo os protocolos de prevenção e rastreamento de doenças. Geralmente, também procura seguir as recomendações dos bons hábitos da vida saudável. Alimentação balanceada, atividade física, controle de estresse e tudo mais que é recomendado pelos profissionais de saúde para a prevenção de doenças, de acordo com as evidências das mais recentes pesquisas. Certamente, a adesão ao protocolo é induzida pelo objetivo de ter uma vida longa e com saúde, como é preconizado pela cultura de sua época.

Podemos dizer que os preceitos da medicina protocolar implicam em exercer uma certa vigilância sobre o funcionamento do corpo. O que mobilizaria o sujeito a aderir a uma proposta desta ordem de investimento narcísico e controle do próprio corpo e dos órgãos internos? Um recurso defensivo contra a angústia de morte e ao desamparo frente à finitude?

Por um lado, esta adesão pode ser a expressão de um movimento expansivo, no sentido de aumentar a potência de agir e viver, fazendo um uso criativo de algo que está disponível na cultura, com mediação psíquica, e não alienado e submisso ao discurso dominante da medicina. Por outro lado, a adesão ao protocolo pode se realizar como uma defesa maníaca contra o medo de ficar doente, de morrer.

A hipótese de um comportamento defensivo e alienado no cumprimento do protocolo médico pode se evidenciar pela surpresa com o diagnóstico, podendo denotar que fazer o exame estaria a serviço da necessidade de confirmação de que os órgãos estão funcionando bem, e não abrangeria a possibilidade do diagnóstico precoce de alguma doença.

Considerando a teoria winnicottiana sobre o transtorno psicossomático como expressão da “persistência de uma cisão na organização do ego do paciente” (WINNICOTT, 1994 [1964], p. 82), pensamos que a adesão aos protocolos médicos para prevenir doenças pode estar favorecida em sujeitos com falhas nos processos integrativos e, por consequência, com ausência de coesão na existência psicossomática.

Sujeitos com processo de personalização não satisfatório, que tiveram um comprometimento na conquista da existência psicossomática buscam pelo uso do corpo, chegar à integração de si mesmo num EU SOU, em termos da unidade do sujeito psicológico, de uma unidade pessoal que torna possível ou fornece um lugar para viver no mundo. (FULGENCIO, 2016, p. 94)

 

Dessa maneira, podemos pensar que a adesão ao protocolo médico para a prevenção e o rastreamento de doenças e o exame por profissionais de saúde que esta situação proporciona poderiam estar sustentados pela busca de um modo de integrar-se, de chegar a um si mesmo, como acontece no transtorno psicossomático, segundo Winnicott (1994 [1964]).

 

Nas doenças psicossomáticas de certo tipo há, na sintomatologia, uma insistência na interação da psique com o soma, sendo isso mantido como defesa contra a ameaça de perda da união psicossomática, ou contra alguma forma de despersonalização. (WINNICOTT, 1990 [1962], p. 60)

 

Doença revelada pela tecnologia: uma experiência de intrusão

Se, por um lado, a experiência de adoecimento é disruptiva, ter uma doença revelada pela tecnologia é vivido também como uma experiência de “intrusão”, conforme denomina Winnicott (2000 [1949]), aquilo que interrompe a continuidade do ser, de ter sido invadido por uma realidade para a qual não se estava preparado. Pois, parece que o que está diagnosticado é uma imagem alterada, e não um corpo vivido como doente, muito menos um sujeito adoecido. Como nos aponta Schwering (2021), as técnicas médicas focam em “objetos”, e não em “sujeitos”, clivagem alienante experimentada dolorosamente pelo paciente.

Knobloch (2013), baseada na teoria ferencziana, analisa que o discurso médico promove efeitos traumáticos, pois a linguagem do médico e a do sujeito são de naturezas diferentes. A linguagem da medicina precisa transmitir informações, tem uma tonalidade operatória, e a do sujeito tem a tarefa de nomear seus afetos, sua vivência como doente. Instala-se uma “confusão de línguas”, situação potencialmente traumática, como analisa Ferenczi (1992 [1932]).    

Impõe-se ao sujeito o trabalho de inscrever este dado da tecnologia no registro do humano, o que é necessário para lhe possibilitar apropriar-se do corpo nomeado doente. Isto é o que pode ser entendido pelo "processo de subjetivação do paciente" (SCHWERING, 2021, p. 18). Faz-se necessário um trabalho de integração psíquica, na relação com a tecnologia, dessa experiência que está sendo vivida no corpo, que é atravessado pelos recursos simbólicos do sujeito, bem como pela sua relação com o outro.

Schwering (2021) nos fala em "trabalho com a doença" como proposta por Pédinielli (1987):

“conjunto de procedimentos econômicos e significativos específicos que asseguram a transformação de danos orgânicos em dor psicológica e que permitem o reinvestimento libidinal".

[…] Tal como o "trabalho de sonho" proposto por Freud, o "trabalho da doença" deve conduzir a uma representação da doença e do corpo, permitindo assim uma apropriação imaginária e simbólica dos acontecimentos vividos pelo doente durante a doença e os tratamentos. (SCHWERING, 2021, p. 17)

 

O diagnóstico inesperado dado pela tecnologia, o contato com algo estranho no corpo, a perda da condição de saudável, ou seja, esta experiência disruptiva atualiza a relação mãe-bebê da história do sujeito, pois o remete a uma condição de dependência. Da mesma maneira que o bebê não sabe do que se trata ao sentir aquele desconforto quando, por exemplo, está com fome, sendo o ambiente que identificará e atenderá sua necessidade de alimentação, o sujeito, frente a esse diagnóstico tecnológico, também não sabe do que se trata, e a ajuda do médico será necessária para dar conta daquela realidade do corpo.

Assim, como descreve Winnicott, em sua teoria do desenvolvimento psíquico e da regressão (2000 [1954]), teremos, neste processo, a atualização de toda a sua história de cuidados, da presença devotada da mãe, do jogo de satisfação/insatisfação sincrônico das suas necessidades e do jogo ilusão/desilusão. Esta atualização determinará que o sujeito viva esta experiência de regressão a um estado de dependência como desamparo, com angústias de aniquilamento, impensáveis, pela falta de provisão ambiental precoce, ou, pelo contrário, com sentimento de confiança e esperança, de que, assim como anteriormente, ele será cuidado. Cabe lembrar, considerando a teoria winnicottiana, que a regressão à dependência vivida na condição de adoecimento e tratamento médico pode estar a serviço da

 

tendência de cura, […] representando a esperança do indivíduo […] de que certos aspectos do ambiente que falharam originalmente possam ser revividos, com o ambiente dessa vez tendo êxito ao invés de falhar na sua função de favorecer a tendência herdada do indivíduo de se desenvolver e amadurecer. (WINNICOTT, 1990 [1959-1964], p. 117)

 

Além disso, a qualidade da sua experiência precoce de provisão ambiental dirá também sobre os recursos simbólicos deste sujeito para fazer o trabalho de integração psíquica do que está sendo vivido no corpo, para dar um significado a esta experiência de adoecimento, trabalho de elaboração psíquica que se dará na relação com o outro (profissionais de saúde, familiares, amigos, outros doentes…). E, como se trata de uma experiência de regressão a um estado de dependência, o outro, particularmente o médico e os profissionais de saúde, mensageiros do estranho do corpo, da doença revelada pela tecnologia, terão um papel relevante. Eles deverão participar deste jogo de satisfação/insatisfação, ilusão/desilusão que se desenrola na situação de tratamento da doença. O médico e o profissional de saúde vão, assim como a mãe para o bebê, auxiliar no processo de integração dessa realidade dissociada, à medida que, com o seu olhar, o diagnóstico, os procedimentos, o cuidado que dispensam ao sujeito em tratamento, o ajudam a dar um nome e um contorno para isto que está dissociado, integrando-o.

Para isto, faz-se necessário um profissional de saúde em estado de preocupação materna primária, em presença sensível, que seja como uma mãe suficientemente boa (WINNICOTT, 1990 [1962]).  

O profissional de saúde

necessita estar em uma posição de reconhecimento de que o sofrimento humano veicula mensagens que necessitam ser significadas em uma experiência inter-humana. (SAFRA, 2018, p. 56)

 

O doente, nesse caso, precisa de atenção, aquela que possibilita estar frente ao outro e se deixar afetar por ele, ouvindo e respondendo. O ser humano necessita da linguagem solidária, o que requer tempo e atenção, fatores que curam o psiquismo humano, favorecendo também a cura do corpo. (SAFRA, 2018, p. 57)

 

No entanto, a medicina contemporânea das múltiplas especialidades, atravessada pela tecnologia e pela ordem do consumo na relação entre médico/profissional de saúde e paciente, apresenta características que desfavorecem este tipo de atitude desses profissionais frente ao paciente. Esta medicina oferece uma assistência fragmentada, em que vários profissionais estão envolvidos no processo de diagnóstico e intervenção, cada um cuidando de uma parte do corpo do paciente, de um aspecto da doença, realizando um segmento do tratamento, sem integração entre eles. Essa assistência fragmentada, muitas vezes, pode gerar no sujeito em tratamento uma experiência de não se sentir cuidado em suas necessidades. O tipo de contato dos profissionais de saúde com o sujeito em tratamento que esta medicina tecnológica, mercantilizada e fragmentada propicia pode, ao invés de favorecer o processo de integração psicossomática, promover uma nova experiência de intrusão e ser potencialmente traumática.

Como nos aponta Kupermann (2016),

o que confere o caráter traumático a uma experiência é sobretudo, o fracasso de seu testemunho frente a um outro que não está disponível e que, por meio de sua indiferença em relação à experiência de sofrimento, também o desautoriza, transformando o que antes era o indizível da dor em experiência inaudível ao outro por meio da indiferença deste último. (KUPERMANN, 2016, p. 16)

 

Kupermann (2016) analisa a situação do adoecimento e da relação com a equipe de saúde apoiado na Teoria do trauma de Ferenczi, observando nela três tempos. No primeiro, denominado o tempo do indizível, temos um doente em sofrimento, geralmente inesperado, vivendo um padecimento ainda sem nome, uma experiência de vulnerabilidade que demanda um sentido. No segundo, o tempo do testemunho, esse doente busca testemunhar seu sofrimento na presença sensível de um outro confiável. O terceiro tempo é aquele que ocorre quando este outro não está disponível para escutar, ou testemunhar, o sofrimento do adoecido, porque é remetido a um estado de impotência tão angustiante que transforma o indizível da dor do doente em inaudível. É o tempo da indiferença desautorizadora.

 

De fato, a indiferença do outro frente ao sofrimento do doente é traumatizante por impedir o suporte, o enquadre e o compartilhamento afetivo capaz de promover sentido às experiências vividas pelo sujeito em estado de sofrimento. (KUPERMANN, 2016, p. 16)

 

As necessidades terapêuticas do “doente” da medicina protocolar tecnológica

A medicina dispõe de uma gama enorme de recursos (anestésicos, medicamentos, procedimentos minimamente invasivos) que permitem que a doença e o tratamento possam ser vividos sem mal-estar, dor ou muito desconforto no plano corporal. No plano psíquico, esta experiência subjetiva é intensa e dolorosa, sofrida, disruptiva, vivida com ansiedade, angústia, medo, tristeza. Esta experiência psíquica de sofrimento é inescapável, e para ela não atuam o anestésico, nem o medicamento inibidor da dor, que operam tão bem para aliviar o sofrimento do corpo.

A maneira de lidar com a dor psíquica é fazendo o trabalho de elaboração psíquica, de integração daquilo que está sendo apontado como doença, de simbolização, de dar um significado e um sentido às experiências vividas pelo sujeito em estado de sofrimento. Este trabalho cabe ao sujeito e se dá na sua relação consigo mesmo e com o outro.

Nesse sentido, acrescentamos que a possibilidade de elaboração psíquica pode influenciar a própria evolução da doença. Pois a vivência sempre perturbadora – e para alguns traumática – de detecção do risco ou de uma doença em curso, revelada pela tecnologia, sem possibilidade de elaboração psíquica, pode levar ao caminho de uma desorganização psicossomática, ao invés da cura (VOLICH, 2000 [2010]).

Isto indica que esta experiência emocional e subjetiva de doença grave, revelada pela medicina tecnológica, requer tanto ou mais cuidado que o corpo. Pois o restabelecimento da saúde só se dará, efetivamente, se houver reequilíbrio psicossomático, de tal forma que este sujeito possa reconectar-se consigo mesmo, reapropriar-se de si, reencontrar efetivamente sua capacidade vital, a capacidade somatopsíquica ativa e criativa em relação à sua vida (MARTINS, 2004).

Cobrindo a lacuna da assistência médica na atenção à experiência subjetiva do doente, o atendimento psicológico, realizado em hospitais, tem sido um espaço para a escuta do sujeito dito “doente” pela medicina protocolar tecnológica (PEREZ, 2005; 2015).

No entanto, a assistência adequada às necessidades terapêuticas destes sujeitos demanda a presença sensível de todos os profissionais envolvidos em seus cuidados. Kupermann (2016) apresenta três tempos para o cuidado do doente: hospitalidade, empatia e saúde do cuidador. Assim, propõe ao profissional de saúde:

 

oferecer hospitalidade acolhendo o sofrimento do doente, por mais impactante que possa ser estar diante da dor do outro; ser afetado pelo paciente, e afetá-lo facilitando a produção de sentido para a experiência do adoecimento, do tratamento e dos seus destinos, cura ou agravamento, exercendo sua capacidade empática; dispor da sua própria saúde, de maneira a estar vivo nos confrontos cotidianos com a morbidez e a morte. (KUPERMANN, 2016, p. 18)

 

A escuta do sujeito: uma necessidade imperiosa no cuidado do “doente” da medicina tecnológica protocolar.


 


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ano - Nº 4 - 2022
publicação: 26/11/2022
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Autor(es)
• Glória Heloise Perez
Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae


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