RESENHA

Maternidade e seus (des)encontros. FERRANTE, Elena. A filha perdida. Tradução Marcello Lino. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016

Shaienie Lima Longano


 

 “As coisas mais difíceis de falar são as que nós mesmos não conseguimos entender” (p. 6). Com esta frase tão instigante, Elena Ferrante inicia seu livro A filha perdida. Uma espécie de chamamento para uma experiência complexa e cheia de paradoxos: ser mãe, ser filha e ser mulher, instâncias que, por diversas vezes, apesar de estarem entrelaçadas, parecem não conseguir encontrar um ritmo coordenado entre si, ou um ritmo em que possam acontecer e permanecer juntas.

Durante a leitura do livro, acompanhamos Leda, uma professora universitária prestes a completar 48 anos, em sua viagem de férias para o litoral sul da Itália. Nos dias em que Leda permanece próxima do mar, ela sente todas as épocas de sua vida serem atraídas como um ímã e, junto com elas, um emaranhado de sentimentos amargos, dos quais, por muito tempo, procurou manter-se distante.

A cada página lida, temos a sensação de estar em uma sessão de análise, em que as camadas da vida psíquica vão sendo postas à mostra, e as fantasias mais temidas emergem, carregando consigo sentimentos alternados e, muitas vezes, contrastantes. Dentre tais fantasias, está a identificação de Leda com sua própria mãe. Durante toda a vida, ela planejou ser diferente, distanciar-se das violências e do cuidado baseado em ameaças. No entanto, apesar de todo o seu trabalho para diferenciar-se da mãe, constantemente deparava-se com ela.

São as situações mais rotineiras vividas e presenciadas por Leda nos dias que passou na praia que a transportam para experiências das quais fugia há anos. E, junto com Leda, cresce em nós um turbilhão de sentimentos que parece emergir a cada lembrança.

Leda tem duas filhas já adultas, que, no momento, moram com o pai em outro continente. E estar longe das filhas lhe conferia a sensação de não ser mais um peso para si mesma. Pois, apesar de amá-las, tornar-se mãe marcou-a profundamente, mudando sua forma de estar no mundo.

Segundo Correia (1998), a maternidade traz mudanças profundas, para além das questões biológicas. É um período em que há uma transformação da mulher quanto às suas experiências e sua relação com o mundo. Um período em que a mulher direciona sua atenção aos cuidados com o bebê, a fim de adaptar-se às necessidades do filho (WINNICOTT, 2000 [1956]).

E todas essas mudanças implicam em perdas (IACONELLI, 2019). Bancar o desejo de ser mãe é aceitar a falta. Desta maneira, desejo e falta serão inseparáveis e indispensáveis para que o filho possa subjetivar-se e conquistar um lugar nos sonhos do outro (LAJONQUIÈRE, 2010).

Há um jogo na história, permeado por paradoxos insolucionáveis. Vemos Leda, mulher cheia de anseio pela realização pessoal e profissional, em busca de sentir-se viva, mas que, em meio à maternidade, se encontra no estado de despedaçamento, engolida e consumida pelos cuidados maternos.

“Fui muito infeliz naqueles anos. Não conseguia mais estar, brincava sem alegria, sentia meu corpo inanimado, sem desejos” (p. 58). A maternidade de Leda se assemelha à de tantas mulheres. Geralmente, sentem-se sós e esgotadas pela falta de vínculos fortes e de uma rede de apoio que proporcione suporte e ajuda no enfrentamento das inúmeras situações adversas.

Badinter, em seu livro Um amor conquistado: o mito do amor materno (1985), discute sobre o ideal da mãe perfeita construído pela sociedade, que coloca a mulher como imprescindível e indispensável na criação dos filhos, quase insubstituível. Diante dessa construção social, a mulher depara-se com modelos preestabelecidos de maternidade, que se distanciam da realidade vivenciada. Com isso, culpa-se por não corresponder aos ideais normativos. No entanto, quem determina o que é ser uma boa mãe? Quem dita as regras? Qual é o preço que se paga para atingir esse lugar idealizado?

É diante da busca por ser a “boa mãe” que muitas mulheres se apagam. Deixam de lado seus sentimentos, seus sonhos, em prol do cuidado e da dedicação aos filhos, que nunca serão conformes àqueles impostos pela sociedade. Muitas sentem-se presas a essa função, em uma busca insaciável, acompanhada de muito sofrimento, por cumprir com perfeição o papel de cuidadora. Condenam-se moralmente por não conseguir viver a maternidade apregoada e difundida na sociedade. Estar vivendo uma maternidade diferente da que lhe é imposta e dita como normal a responsabiliza totalmente, condenando-a como péssima mãe (BADINTER, 1985).

Não há espaço para a complexidade e a pluralidade da maternidade. Assim, muitos sentimentos são negados, não legitimados, podendo aumentar ainda mais a sensação de deslocamento e “despedaçamento”, como escreve Elena Ferrante.

Desta maneira, ao colocar a mulher em um lugar central nos cuidados com os filhos, ficam isentos de responsabilidade aqueles que fazem parte de sua rede familiar. Essa importância extrema do lugar da mulher na família geralmente é acompanhada por certo aprisionamento e controle de suas vidas. Enquanto isso, ao pai é conferido um lugar sem muitas cobranças, o que lhe permite, em muitas das vezes, manter a vida sem muitas alterações.

Segundo Zanatta, Pereira e Alves (2017), o apoio paterno não se restringe apenas à divisão de tarefas, mas também ao envolvimento emocional. Como a mãe, o pai também deve ocupar um lugar de prontidão e sensibilidade às necessidades dos filhos, podendo se deparar com a falta e com as perdas. Enquanto Leda abria mão de seus desejos como mulher, de seus projetos profissionais, “o pai corria mundo afora, uma oportunidade atrás da outra” (p. 45).

E, nesta destoante relação, Leda entregava-se por completo na maternidade, enquanto o pai das crianças conseguia manter certo distanciamento, que lhe permitia seguir com seus projetos e desejos próprios. Simone de Beauvoir resume essa relação, tão comum na sociedade, do seguinte modo: “enquanto o homem dá a sua atividade, a mulher dá a sua pessoa” (2016, p. 306).

Há uma diferença gigantesca no envolvimento e na entrega em relação aos cuidados dos filhos. Quantas mulheres conhecemos que, diante da maternidade, são consumidas pelas demandas em relação aos cuidados dos filhos?

Uma mulher em busca de si mesma, cheia de talento, mas que precisava entender quem era. Suspiramos diante da possibilidade de alguém enxergá-la no meio do caos, da crise. Alguém que pudesse citar seu nome e conferir a potência que ela mesma gostaria de ter, sem ser reduzida a uma função.

Sem nos desvencilharmos da Leda mulher, somos enlaçados pela Leda mãe e pela Leda filha. Na praia, diante de uma família muito barulhenta e com uma cordialidade prepotente, Leda sente de forma muito vívida os vínculos que a sufocaram durante sua infância e sua vida. Aquela família trouxe à tona seu tempo, sua própria vida pantanosa, da qual tinha fugido quando garota, mas agora parecia estar viva dentro dela.

Assim, aquela professora universitária, cheia de habilidades, transforma-se em uma menina, que se depara com o próprio desamparo. Perdida na praia. E, em um ato obscuro, em um impulso irrefletido, rouba uma boneca abandonada na areia.

Leda leva a boneca para casa e, ao cuidar dela, parece remediar um dano, que antes parecia irreparável. E as coisas mais obscuras que, em silêncio, escondia parecem surgir enquanto cuida daquela boneca. Como se reencontrasse aquilo que encobriu durante a vida.

“Uma mãe não é nada além de uma filha que brinca” (p. 152). Leda filha e Leda mãe se fundem. É nos cuidados com a boneca que Leda vai podendo ver o quanto foi consumida pela maternidade, ofuscada, conservando pouco de si por investir muito nas filhas. Lutou bravamente para proporcionar vivências importantes para as filhas, que contribuíssem para sua constituição como pessoas maduras, no entanto, foi se enxergando cada vez menos. Até o momento em que se afastar pareceu urgente.

Na maternidade, podem ser observadas algumas mudanças na organização da vida psíquica. Segundo Stern (1997), citado por Schechter e Perelson (2017), a tríade entre a mulher, sua mãe e seu pai é substituída por mãe, mãe da mãe e bebê. Nesta nova organização, a mulher aproxima-se de sua mãe, uma espécie de retorno ao vínculo primário vivido com a mãe, sendo capaz de trazer de volta elementos há muito tempo recalcados.

Elementos esses como feridas narcísicas antigas, traumas, herança transgeracional e tudo o que abrange a relação mãe-filha. Agora, a filha, enquanto mãe, revive o vínculo. Piera Aulagnier (1999) diferencia o desejo de ter um filho do desejo de maternidade. Para a autora, o desejo de maternidade está atrelado à tentativa de retorno à relação vivida com a própria mãe no início da vida, onde ainda não há diferenciação.

Em meio à maternidade, Leda se vê como a filha que foi, com medo de a mãe desaparecer. Uma mãe tão diferente e ao mesmo tempo igual a si mesma. Ela, uma filha em busca de encontrar uma mãe que pudesse entender suas necessidades e que pudesse ser como um espelho, no qual pudesse se reconhecer. Cuidando da boneca, Leda se vê como filha, que viveu uma infância cheia de violências contidas, porém reais.

Segundo Winnicott (2019 [1967]), o rosto da mãe é um precursor do espelho, contribuindo para a constituição do Eu do bebê. Assim, se a mãe tem dificuldade de espelhar o self infantil por meio do seu olhar, refletindo a si mesma, e não a ele, o bebê terá dificuldade de se encontrar em seu rosto. A relação da mãe e da filha pode se configurar em uma identificação narcísica (FREUD, 2006 [1933]).

Deste modo, a filha provoca na mãe uma identificação mais maciça, levando a serem projetadas as aspirações e frustrações da mãe (SCHECHTER e PERELSON, 2017). Ou seja, a mãe coloca a filha como continuidade de si mesma, e, assim, a filha não encontra espaço para a construção de sua própria condição feminina. Na maternidade, há uma convocação para um processo de elaboração de separação em relação à mãe, do qual nascem um filho ou filha e uma nova mãe.

Leda teve uma mãe que foi profundamente marcada pela maternidade em um contexto permeado de violências. Alguém que, como forma de sobrevivência, buscou se diferenciar do meio que a cercava, mas fracassou a cada tentativa. Sua mãe, provavelmente, tinha um sonho para além de ser mãe e, frustrada, dirigia aos filhos ameaças de ir embora. Ameaças estas que nunca se concretizaram, mas despertaram em Leda o anseio de ser diferente, de planejar não ser como ela. Leda sofre pela mãe. Talvez por vê-la presa na maternidade, despejando nela toda a sua frustração.

Somos tocados por essa filha que se depara com o desamparo, que se perde e anseia por ser encontrada. Somos tocados pela mulher que busca encontrar sua identidade para além da maternidade, exausta pelo excesso de demandas que não pode mais suportar. Mas, ao mesmo tempo, em determinados momentos, deparamo-nos com um sentimento de raiva da mulher que há pouco admirávamos. Uma mulher que nega um pedido da filha para beijar seu dedo machucado e, em seguida, abandona as filhas para viver e atender às suas próprias necessidades. Uma mulher que rouba uma boneca e assiste o sofrimento da criança que a perdeu.

No entanto, aquela mulher é aquela menina. A mãe é a filha. Não é possível separá-las. Estão emaranhadas, buscando ocupar um lugar no mundo, e, como escreveu Gilberto Safra, “Ocupar um lugar no mundo é ocupar um lugar na vida do outro” (2005, p. 185).

O livro A filha perdida é denso e profundo. Capaz de nos fazer entrar em contato com as ambivalências e complexidades da maternidade. De nos fazer questionar o nosso processo de diferenciação dos nossos cuidadores e encontrar nosso lugar no mundo. De nos fazer sentir vivos, donos da própria vida. E, por diversas vezes, para viver, é necessário morrer. Perder-se para encontrar-se. Morrer para germinar! Como canta Gilberto Gil: “o amor da gente é como um grão. Uma semente de ilusão. Tem que morrer pra germinar. Plantar n’algum lugar”.


 


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ano - Nº 4 - 2022
publicação: 26/11/2022
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Autor(es)
• Shaienie Lima Longano
Universidade Ibirapuera

 Psicóloga clínica; psicanalista em formação no curso Psicanálise com Crianças do Instituto Sedes Sapientiae. Pós-graduada em Psicanálise, Perinatalidade e Parentalidade pelo Instituto Gerar e em Psicologia Jurídica pelo Instituto Paulista de Estudos Bioéticos e Jurídicos – IPEBJ. Professora assistente especialista do curso de Psicologia da Universidade Ibirapuera. Autora do capítulo “Você vem comigo? Fragmentos do fazer clínico remoto com uma criança em processo de adoção”, do livro Psicanálise com crianças em tempos de pandemia: desafios e proposições para a clínica online, organizado por Marília Velano, Eduardo Almeida Prado, Patrícia Delgini e Claúdia Vannozzi Brito, publicado em 2021, pela Editora Artes & Ecos. Email: shaienielima@gmail.com

Referências bibliográficas

AULAGNIER, P. Nascimento de um corpo, origem de uma história. Revista Latino-americana de Psicopatologia Fundamental, v. II, n. 3, p. 9-45, 1999.

BADINTER, E. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

BEAUVOIR, S. O segundo sexo: fatos e mitos. Tradução de Sérgio Milliet. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.

CORREIA, M. de J. Sobre a maternidade. Análise Psicológica, v. 3, n. 16, p. 365-371, 1998. Disponível em: https://core.ac.uk/. Acesso em: 2 nov. 2022.

FREUD, S. (1933). Conferência XXXIII: Feminilidade. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 2006. v. XXII.

GIL, G. Drão. Warner Music Brasil Ltda. 1982.

IACONELLI, V. Criar filhos no século XXI. São Paulo: Contexto, 2019.

LAJONQUIÈRE, L. de. Figuras do infantil: A psicanálise na vida cotidiana com as crianças. Rio de Janeiro: Vozes, 2010.

SAFRA, G. A face estética do self: teoria e clínica. Aparecida, SP/São Paulo: Ideias & Letras/Unimarco Editora, 2005.

SCHECHTER, L. M.; PERELSON, S. Separar-se da mãe para tornar-se mãe: a criação do espaço de concepção. Psicologia Clínica, v. 29, n. 3, p. 403-427, 2017.

WINNICOTT, D. W. (1956). A preocupação materna primária. In: WINNICOTT, D. W.  Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago, 2000.

WINNICOTT, D. W. (1967). O papel de espelho da mãe e da família no desenvolvimento infantil. In: WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. São Paulo: Editora Ubu, 2019.

ZANATTA, E., PEREIRA, C. R. R.; ALVES, A. P. A experiência da maternidade pela primeira vez: as mudanças vivenciadas no tornar-se mãe. Pesquisas e Práticas Psicossociais, São João del Rei, v. 12, n. 3, set.-dez. 2017. Disponível em: https://periodicos.ufsj.edu.br/. Acesso em: 2 nov. 2022.


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