ÁGORA
TEMA

Em busca da violência



Dei este título à guisa de paródia, pois a violência não precisa de busca nem de apreensão. A cada três minutos, uma mulher é estuprada, outra é espancada, filicídios, parricídios, nações extintas por guerras intestinas... A violência circula por toda parte, livremente.

Entretanto, Dejours (2019a) consegue capturá-la, e nos convida a pensar sobre alguns circuitos psíquicos nos quais a violência se apresenta. Ele nos lança a pergunta: a violência é humana? E nos responde: sim, e desmedida; faz parte do sexual no que diz respeito, principalmente, à fantasia. Ela também é ilimitada; a violência humana pode ir muito além dos comportamentos instintivos dos animais. O animal mata para saciar uma necessidade básica, a fome, o homem, não; antes de violentar sua vítima, ele é capaz de impor a ela todo tipo de crueldade consentida, em um pacto velado entre os dois. Por isso mesmo, a violência, segundo ele, não se liga ao instintivo, e muito menos a uma pulsão de morte com raiz nos instintos.

Dejours (2019a) propõe um arranjo teórico, em um topus, chamado por ele de “terceira tópica”, em que a violência e seus efeitos ficam dispostos, de maneira clara, como itens relevantes de sua teoria da clivagem. Há quem diga que, se a primeira e a segunda tópica de Freud versaram sobre o desejo e a sexualidade, a terceira tópica é aquela que tem na violência seu centro de interesse.

A clivagem não me foi apresentada por Dejours. Há muitos anos, ela já era trabalhada pela escola inglesa, sob o nome de splitting, que acontecia por ingerência da selvagem pulsão de morte instintiva. Esse mecanismo de splitting ficava marginalizado da teoria freudiana, que reconhecia apenas como mecanismos tópicos o recalque e a cisão do ego (que funcionava apenas na perversão, quando da diferença anatômica dos sexos). Entendia-se também que o splitting era convocado na vigência de conteúdos psíquicos que a mente não podia tramitar, devido à sua violência. A clínica poderia facilitar e promover essa tramitação, mas o corpo teórico do conhecimento psicanalítico vigente mostrava-se remendado, de modo a dificultar a organização da experiência clínica.

Portanto, quando Dejours (2019a) nos presenteia com a terceira tópica, ele preenche um degrau do conhecimento que resvalava. Teoria muito viva, tem no corpo seu principal protagonista, aliás, em dois corpos: o corpo biológico e o corpo erógeno. O corpo biológico e o corpo erógeno não são apenas conceitos, mas pertencem a duas realidades distintas que vão sendo engendradas, reconstruídas e confirmadas ao longo da vida, em um processo que não é definitivo nem natural. Tão logo o corpo erógeno vai se descolando do corpo biológico, através do que ele chama de subversão libidinal (subversão libidinal das funções biológicas em proveito da economia erótica), transfere-se vida afetiva ao erogeneizar o corpo biológico. No entanto, o processo deixa zonas que não foram investidas com libido. Compreende-se que, na origem do corpo erótico, ou erógeno, se estabelece também a origem da subjetivação, lugar de escolha de vivenciar a subjetividade em si.

Não obstante, a violência dos pais se impõe. Presentes nos cuidados com o corpo da criança e em seus manuseios de higiene, os pais ou cuidadores exercem suas fantasias sobre o pequeno ser, que, siderado no embalo excitatório, é levado a romper sua capacidade de pensar, simultânea à clivagem do inconsciente. De um lado, apresentam-se o inconsciente recalcado, com recalque originário, e seus possíveis retornos ao se fazer conhecer através do pré-consciente. De outro lado, o inconsciente chamado por ele de amencial (“sem mente”, segundo uso de Meynert), aquele que foi clivado devido à violência dos pais contra o pensamento da criança. O que for da ordem do não pensado, da violência parental, vai para o inconsciente amencial, também conhecido por proscrito. Este contém o material proscrito pela mente, ou seja, as cristalizações do apego parental e as zonas não irrigadas pela subversão libidinal. Estes dois inconscientes funcionam de forma independente um do outro e não se comunicam.

A partir desses dois inconscientes, Dejours dá início a sua elegante teorização. Ao construir a terceira tópica, ele procura mostrar quais as limitações da sedução generalizada proposta por Laplanche (apud DEJOURS, 2019b, p. 192). Segundo ele, a sedução pode se deparar com obstáculos cujo resultado será a clivagem do inconsciente. Entretanto, ele não deixa de ressaltar que a teoria da sedução generalizada continua como o caminho da subjetivação. Toma o mecanismo da recusa – do alemão Verleugnung e o estende para o funcionamento de todas as estruturas mentais.

A Verleugnung representa a parte de maior sensibilidade do inconsciente em contato com a realidade. O que está em jogo é sua transposição, correspondente à recusa da realidade perceptiva afetiva, quando o psiquismo reage com descompensações violentas. Estas são evidenciadas na tópica do psicopata, do psicótico e daquele que apresenta somatizações quando há o encontro com a realidade traumática. Nem mesmo o neurótico está livre de ser acometido por algum sintoma, pois também o seu inconsciente se clivou, apesar de gozar de outros recursos em sua distribuição de instâncias psíquicas.

Entretanto, a violência de maior vulto é aquela que se manifesta contra si mesmo, uma espécie de apagamento do que Laplanche chama de “interesses do eu”, que se assentam naquelas zonas não investidas do inconsciente recalcado. Nesse momento, Dejours é fiel às suas origens de psicossomatista da Escola de Paris e à concepção que esses teóricos têm em relação à depressão essencial. Tanto para os psicossomatistas como para Dejours, o corpo desencarnado revelado pela depressão essencial consiste na maior violência ao ser humano. Lembra-nos, ainda, que os não neuróticos podem funcionar, na maior parte do tempo, em estado de compensação. Assim sendo, cada estrutura nosológica não é fixa, devido à mobilidade das barreiras das instâncias, que levam a um intercâmbio de suas diferentes tópicas.

De fato, as manifestações patológicas resultam da estimulação do inconsciente amencial e de sua violência. Por isso é que a clivagem estudada na terceira tópica pode responder por que um homem pode, ao mesmo tempo, ser um homem comum e um torturador. E ela responde de forma afirmativa: pode estar presente em qualquer ser humano, independentemente de sua estrutura mental, e não só no perverso organizado.   

Dejours (2019a) confere um destaque especial à pulsão de dominação, presente no par dominador-submetido, que representa a forma central de controle sobre as descompensações e a estabilidade da clivagem e da arquitetura da terceira tópica. Este par apresenta a participação dos dois inconscientes em seu processo psicodinâmico, através do papel exercido pelo dominador. Por um lado, o componente tirânico do inconsciente amencial fica presente, com a proscrição do pensamento e sua origem no apego, e, por outro lado, intervém o componente violento secundário, próprio do inconsciente sexual e de sua origem na sexualidade infantil. Dejours (2019a) considera a pulsão de dominação como a forma específica de o instintual perdurar no adulto, em uma demonstração clara de que não houve a subversão libidinal da função do apego. O submetido consente em sofrer a dominação pelos benefícios deste consentimento ao apego, que é a parte do dominador em jogo na relação.

No caso que apresento, a relação de dominação é exercida pela mãe de uma jovem adolescente, que se submete totalmente a seus desígnios. A adolescente não pode crescer em sua análise: seria fazer a ruptura da relação de submissão que tem com a mãe e tirá-la de sua função tirânica de dominadora.

Ao mesmo tempo, acompanharemos um sonho da analista que ajuda no caminhar de um momento do processo analítico. A perlaboração através do sonho é impossível nesse momento da análise desta paciente com escassas representações mentais. Portanto, concordo com Dejours quanto à perlaboração através de sonhos como saída terapêutica quando a análise já caminhou muito. Quanto às interpretações verbais, devem ser cuidadosas, porquanto o paciente não atinge o teor das palavras; quando Dejours (2019a) toca nesse ponto, faz total sentido para mim.

Acredito que, durante o trabalho de análise, nós, analistas, como em um sonho, trabalhamos contendo, recebendo de nossos analisandos material de carga energética violenta, desligada, como se fosse essa a forma de colocar esse material em latência em nosso pré-consciente, até o analisando ter condições de recebê-lo de volta.

Em uma sessão, Mari, em surto psicótico, escreveu na lousa garranchos sem nenhum sentido. Sua condição mental encontrava-se fragilizada, pelo lugar de submissão ao papel de domínio de sua mãe, por seu lugar de filha não desejada (sua mãe cedeu ao “direito de maternidade”), por vômitos recorrentes durante os dois primeiros anos de vida. Estes são alguns dados que sugerem o fato de Mari não ter recebido de seus pais um endereçamento de mensagem provindo da sedução estruturante da sexualidade, e, com isso, a violência da interrupção a seu pensamento pairava através do peso sem representação que inundava suas sessões. Sua mãe é contra, apesar de concordar que Mari tem que fazer análise e de ser ela mesma que a leva ao consultório da analista. A analista saiu extenuada da sessão em que não só garranchos invadiram a sala, mas também palavrões, peidos e arrotos. Nessa mesma noite, a analista teve insônia, acompanhada de forte ansiedade. Pôs-se a folhear, a esmo, anotações de viagem. Eis que deparou com uma pintura de P. Rego, cujo título é Salazar a vomitar a pátria. Ficou sobressaltada, e as associações foram lhe servindo de pista para decifrar o enigma. Pátria significa ‘a mãe’, então Mari estaria vomitando a mãe? Foi se acalmando e adormeceu tranquila. Nas sessões subsequentes, a analista sentiu-se confiante para receber sua paciente. Sua capacidade sensível tinha sido guindada para outras associações, que chegaram para ajudar Mari em seu trabalho analítico.

 


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ano - Nº 4 - 2022
publicação: 26/11/2022
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Autor(es)
• Eliana Rache
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

 Psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Psicanalista de crianças e adolescentes da IPA – International Psychoanalytical Association, com formação na Asociación Psicoanalítica Argentina. Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Membro da Escola de Psicossomática Psicanalítica de Paris.

Referências bibliográficas

DEJOURS, C. Primeiro, o corpo: corpo biológico, corpo erótico e senso moral. Tradução Vanise Dresch. Porto Alegre: Dublinense, 2019a.

DEJOURS, C. Psicossomática e teoria do corpo. São Paulo: Blucher, 2019b.


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