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Afinidade entre Ferenczi e Dejours



O conteúdo do texto disparador para esse debate, no qual são apresentadas, resumidamente, algumas concepções relevantes de Christophe Dejours, inicia-se perguntando como um sujeito violado pode passar da condição de vítima para a de carrasco, e nos convoca a problematizar as situações de violência, bem como a refletir sobre o trabalho de perlaboração dos sonhos. Como essas interrogações e questões foram também objetos privilegiados das pesquisas e construções de Sándor Ferenczi (1873-1933), autor de cujas ideias tenho me aproximado e apreciado muito, escolhi para realizar a discussão solicitada dirigir, inicialmente, meu olhar para o fator das heranças e das transferências entre os autores, tentando traçar uma área em que se dê o encontro das ideias de ambos. Para terminar, apresento a teoria sobre o trauma tal como foi problematizada por Ferenczi em seus textos finais.

De fato, são notáveis as afinidades entre a metapsicologia da terceira tópica de Christophe Dejours, com seu inconsciente amencial, constituída em articulação com a teoria da sedução generalizada de Jean Laplanche, e algumas das mais difundidas teorizações de Sándor Ferenczi sobre o campo do traumático e seus conceitos centrais, como a confusão de línguas, o choque, a identificação ao agressor, a incorporação da culpa, a submissão, a clivagem e outras.

Juliana Bacarat (2017), em sua tese de doutorado, na qual elabora um diálogo entre Jean Laplanche e Sándor Ferenczi, com base em um estudo exatamente sobre seus pontos de contato e heranças em comum, aponta como o mais contemporâneo dele se serviu do mais antigo para a construção de algumas teorias e conceitos, confirmando minha impressão. Neste trabalho, a autora aponta como Laplanche, que trabalhou, entre os anos 1970 e 2000, em uma França dividida sob o domínio de Lacan, acaba por assentar sua consagrada teoria da sedução generalizada sobre um duplo pilar: o da teoria da sedução, de Freud, e o das teorizações sobre o trauma, de Ferenczi, principalmente as ideias contidas no clássico e mais conhecido texto “Confusão de línguas entre os adultos e a criança. A linguagem da ternura e da paixão” (1992a [1933]). Nesse sentido, embora saibamos que o pensamento de Dejours é fortemente embasado na tradição laplanchiana, certamente Ferenczi está presente, se não direta, indiretamente, através de Laplanche. De fato, é preciso conhecer as heranças subjetivas e metapsicológicas que circulam, engendram e inspiram as produções da família psicanalítica, posto que as condições de possibilidade para a criação do novo e das novas ideias vêm com a anterioridade que caracteriza as tradições, em um movimento sinuoso de progressão e regressão. Vamos a ele.

Sándor Ferenczi foi um médico húngaro, que se tornou psicanalista e o principal interlocutor de Freud, tendo trabalhado grande parte de seu tempo produtivo em defesa e pela continuidade das teorias do fundador da psicanálise. De 1928 até falecer, cinco anos depois, iniciou um período muito produtivo e de grande envergadura sobre a teoria do trauma e correlatas modificações na técnica, que compõem a última fase de seus escritos. Nela, desenvolve um arcabouço teórico e clínico que versa sobre o tratamento violento e mesmo cruel dos adultos sobre a criança, figurabilizando três cenas emblemáticas: o amor apaixonado, as punições excessivas e o terrorismo do sofrimento. Na qualidade de primeiro “ambientalista”, como alguns autores gostam de chamá-lo, voltou sua atenção para a família da criança, enfatizando assim a dimensão exógena do elemento traumatizador, que fora descartada por Freud quando substituiu o trauma da sedução pelo trauma da fantasia. Portanto, nesse movimento regressivo no interior da teoria, ele recupera a figura do agressor enlouquecido, que viola a criança quando impõe a ela uma intensidade de afetos de amor e de ódio muito além do que ela quer receber ou consegue entender. “Análise de crianças com adultos”, de 1931, e o já mencionado “Confusão de línguas entre os adultos e a criança. A linguagem da paixão e da ternura”, de 1933, são os dois trabalhos mais eloquentes sobre a dimensão da violência sexual e sádica no campo da educação e das interações entre a criança, seus pais e substitutos cuidadores.

Por diversas razões, que não apresentaremos aqui, por ultrapassarem o escopo deste espaço, Ferenczi foi posto em descrédito pelo poder político e institucional psicanalítico, já perto de falecer, e reabilitado a partir da década de 1980 pelo movimento conhecido por “renascimento” responsável, não apenas pela tradução de seus textos para vários idiomas, como também por difundir reflexões acerca dos desafios, para a psicanálise contemporânea, impostos pelo tratamento de pacientes graves, que solicitavam do psicanalista uma presença sensível, de modo a permitir que o encontro afetivo atingisse núcleos clivados do psiquismo (KUPERMANN, 2019).

Sándor Ferenczi e Jean Laplanche são, portanto, dois autores nascidos e criados em momentos históricos distintos, em países distintos e mobilizados por batalhas distintas no campo psicanalítico. Em comum na obra dos dois é o destaque dado para a questão da onipresente dissimetria que governa a relação entre adultos e crianças, no interior de cujo campo encontramos as polaridades de atividade e passividade, autonomia e dependência, onipotência e impotência, escolha e condição, liberdade e imobilidade, e por aí afora. Isto é, tudo se passa dessa maneira dissimétrica e desigual entre as partes, porque a criança nasce prematura e incapaz física e psiquicamente, precisando ser cuidada pelo outro. Assim, não só para não morrer, mas para não morrer só, obtém do outro a senha de acesso à entrada para o universo dos humanos. Um código cifrado que o adulto encarregado de cuidar transmite através de suas interações e contato. Em outras palavras, as mensagens enigmáticas, como nomeou Laplanche, que transbordam do inconsciente do adulto e que na criança são implantadas. Obra arriscada, diria o pequeno infans, se pudesse falar, mas necessária para a construção do narcisismo que o manterá vivo – ainda que vulnerável e muitas vezes submisso àquele que dele se encarrega no amor, nos cuidados, na educação.

A seguir, a cena mítica traumática pensada por Ferenczi a partir da escuta de seus pacientes. Uma criança e um adulto brincam ternamente e se amam. Mas o adulto, esquecido da criança que foi, reage ao amor ingênuo com intensidade genital, apaixonada e culpada ao mesmo tempo. Após o ocorrido, nega seu ato para si e para a criança violada, que, desentendida, busca em um terceiro uma explicação, um reconhecimento do vivido, um sentido para o evento violento, sexual ou sádico. Mas ali, no espaço terciário para mediação de sua dor, onde a criança deveria encontrar validação, ela encontra descaso, desqualificação ou desmentido. Pela segunda vez, portanto, ela fica no vácuo e, impedida de reintrojetar o vínculo de confiança que poderia lhe conferir coesão e algum sentido à experiência, identifica-se ao agressor para não perder seu amor, incorporando a culpa e o remorso que ele recusou como seus. Assim, salvando-o de morrer de vergonha, a criança pode então acreditar que não está só e nem foi por ele abandonada. Nesta díade, quando a confiança da criança no adulto é usurpada, dá-se no mais indefeso a quebra maior, conhecida pelo conceito de clivagem. O pensamento paralisa e o corpo se anestesia nessa vivência desestruturante, de um caos sem fim. É o choque, por onde se abre o inconsciente amencial, como talhadura ou enclave que atravessa o pequeno infans de cima a baixo. Dividida em uma parte culpada e outra inocente, sua confiança no testemunho de seus próprios sentidos está desfeita. Tornou-se sabida, podendo se adiantar ao outro, pois consegue adivinhar seu menor temor, anseio ou aspiração. Protege-se, então, do perigo que representam os adultos descontrolados, pois agora sabe identificar-se por completo com eles. Um psiquismo assim, “feito às pressas” e formado apenas por id e superego, não possui as funções egoicas da mediação. Restam a submissão e a subserviência ao objeto idealizado e tirânico, incorporado ao superego.

Atualmente, muito se tem pensado e escrito sobre a clínica com pacientes de feitio mais delicado, aqueles que carregam marcas traumáticas e que se mostram mais frágeis do ponto de vista de sua construção narcísica, ameaçados por um superego cruel e inábil. Sem expressividade simbólica possível, apresentam corpos afetados ali onde um eu sexual nunca foi subvertido (DEJOURS, 1991). Deixá-lo nascer e “mimá-lo” um pouco, mantendo, no entanto, sempre teso o arco da conversa: eis a tarefa do analista-obstetra-receptor-espelho que, com tato e sensibilidade – para não reproduzir no processo analítico a posição do agressor –, ajudará a criança no paciente a descobrir seu jeito de brincar, seu dom de sonhar, sua potência para integrar-se. Isto, na prática, significa dizer que o espaço analítico é a oportunidade de reviver na transferência o circuito do trauma junto a um outro que oferta uma escuta testemunhal a um testemunho exilado que procura seu lugar. O sonho segue sendo uma via régia para o inconsciente sexual e sua função traumatolítica (FERENCZI, 1992b [1933]), uma tentativa de levar impressões sensíveis traumáticas a uma resolução e a um domínio psíquico melhores. Perlaboração.


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ano - Nº 4 - 2022
publicação: 26/11/2022
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Autor(es)
• Maria Elisa Pessoa Labaki
Departamento de Psicossomática e de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

 Psicanalista. Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Membro do Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae. Membro do Conselho Editorial da revista trama, e professora da especialização em Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae. Membro do Departamento de Psicanálise do mesmo instituto. Coautora de Psicossoma V (São Paulo: Casa do Psicólogo, 2014) e Psicanálise e Psicossomática, casos clínicos, construções (São Paulo: Escuta, 2015). Autora de Morte, da coleção Clínica Psicanalítica (São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001).

Referências bibliográficas

BACARAT, J. Do trauma de sedução à sedução traumática. Diálogos entre Sándor Ferenczi e Jean Laplanche. 2017. Tese (Doutorado em Psicologia e Sociedade) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista (Unesp), Assis, 2017.

DEJOURS, C. Repressão e subversão em psicossomática: pesquisas psicanalíticas sobre o corpo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.

FERENCZI, S. (1931). Análise de crianças com adultos. In: FERENCZI, S. Obras completas. São Paulo: Martins Fontes, 1992. v. IV.

FERENCZI, S. (1933). Confusão de línguas entre os adultos e a criança. A linguagem da ternura e da paixão. In: FERENCZI, S. Obras completas. São Paulo: Martins Fontes, 1992a. v. IV.

FERENCZI, S. (1933). Reflexões sobre o trauma. In: FERENCZI, S. Obras completas. São Paulo: Martins Fontes, 1992b. v. IV.

KUPERMANN, D. Por que Ferenczi? São Paulo: Zagodoni, 2019.

 


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