ARTIGOS

O intercruzamento entre psicose e somatose: perspectivas metapsicológicas e clínicas


The intersection between psychosis and somatosis: metapsychological and clinical perspectives
Françoise Chaine

RESUMO
A autora propõe uma leitura metapsicológica do funcionamento mental de pacientes cujo quadro clínico oscila entre momentos psicóticos e de sintomatologia somática, apoiando-se em teorias da Escola Psicossomática de Paris. De acordo com as capacidades de intricação do eu, as perdas são abordadas sob as modalidades de luto, melancolia, desorganização psicótica ou somatização. No último caso, a depressão essencial é seguida da entrada na vida operatória. Uma vinheta clínica ilustra esse desenvolvimento teórico.

Palavras-chave: Traumatismo, Luto, Melancolia, Depressão essencial, Vida operatória.

ABSTRACT
The author proposes a metapsychological reading of the mental functioning of patients whose clinical picture oscillates between psychotic moments and somatic symptomatology, based on theories of the Psychosomatic School of Paris. According to the intricacy capabilities of the self, losses are addressed under the modalities of mourning, melancholy, psychotic disorganization or somatization. In the latter case, essential depression is followed by entry into operative life. A clinical vignette illustrates this theoretical development.

Keywords: Trauma, Mourning, Melancholy, Essential depression, Operative life.


Em nossa prática em psicossomática, regularmente encontramos pacientes cujo funcionamento mental se situa no imenso território entre psicose e somatose, no qual, ainda que o fator genético seja importante, as vicissitudes do desenvolvimento precoce ocupam um lugar que não é negligenciável. Conforme escreve Rosenberg, “existe um intercruzamento entre psicose e somatose na vida de certos pacientes, e é necessário estudar o que os conduz a seguir um caminho ou o outro” (2001, p. 211).

Quando falamos de psicose em psicanálise, não fazemos referência a um diagnóstico psiquiátrico, especificamente, como no caso da esquizofrenia, mas a um modo de funcionamento mental. No âmbito do funcionamento psicótico, distinguiremos, aqui, a psicose que evolui por crises agudas, como a melancolia, e a psicose delirante crônica.

Segundo Pierre Marty, qualificaríamos como situação traumática

 

a ultrapassagem das possibilidades de adaptação do aparelho mental, rompendo a continuidade de um certo estado de estabilidade psicoafetiva do adulto, em razão da perda, real ou imaginária, de um objeto, de uma função ou de uma relação afetivamente investida.[1]

Os traumatismos levam ao risco da desorganização dos aparelhos funcionais por eles atingidos. A desorganização tende a se estender no sentido inverso ao do desenvolvimento caso não encontre um sistema capaz de contê-la: primeiramente, é o aparelho mental que tenta negociar essa variação de excitações nele próprio e, quando ele não consegue bloquear, tamponar ou moderar essa onda de desorganização, o aparelho somático.[2]

 

Diante de uma perda, o sujeito deve efetuar um trabalho de luto. O luto a ser feito é consciente, e o sujeito sabe, de maneira geral, o que foi perdido e qual era o seu valor. A perda é de natureza objetal, e o clima é de respeito à realidade.

Levar o trabalho de luto a seu termo demanda que o eu seja capaz de um alto nível de energia de investimento, para que, obedecendo ao princípio de realidade, tenha condições de desvincular cada lembrança do objeto perdido, uma após a outra, assim como a libido nele depositada.

Ao final, o eu ainda encontra recursos narcísicos para permanecer na vida diante do objeto morto. O trabalho de luto encontra, portanto, uma solução narcísica.

Isso implica um trabalho psíquico suficientemente bem constituído nos planos tópico e dinâmico, ou seja, um eu forte, capaz de conservar durante um longo período as suas funções de ligação da destrutividade deixada livre diante dos traumatismos da vida do sujeito.

Essas capacidades, designadas por Rosenberg (2001) como “núcleo masoquista erógeno primário”, representam os esforços defensivos constantes do eu para sua própria autoconservação e para manter a sua unidade. Isso ocorre, de um lado, por meio da ligação da pulsão de morte (a qual, a partir do isso, constitui o eu, mas também apresenta uma tendência a despedaçá-lo) e, de outro, da libido narcísica advinda do cuidado materno, que defende a sua unidade.

Essa solidez intricada do eu depende das capacidades de intricação do objeto, ou seja, da qualidade libidinal do objeto (objetalização).

Quando a perda narcísica é muito forte e/ou incide sobre um eu já fragilizado pelas feridas narcísicas mais precoces, o eu é colocado em perigo por conta dessa hemorragia libidinal, não possuindo os recursos econômicos (libidinais) para executar um trabalho de luto neurótico normal. A angústia sinal de alarme, responsável por apontar que a unidade do eu está em perigo, pode ser forte.

Rosenberg (2001) identifica as três soluções que se oferecem ao sujeito, de acordo com suas capacidades de investimento (intricantes) e com o limite da sua tolerância à angústia.

A organização psíquica que tem uma predisposição a um acesso melancólico é caracterizada pela fragilidade narcísica e pela violência de seu sadismo.

Nesse contexto, o objeto é investido narcisicamente: o eu investe a si próprio por meio de seu objeto, ou de sua impossibilidade em perdê-lo.

Contrariamente ao processo de luto, a perda do objeto é inconsciente, pois ela é alvo de uma regressão: o sujeito ignora o que foi perdido. Diante dessa ameaça inconsciente, o eu se debate em um trabalho longo e doloroso, frequentemente qualificado como uma “tortura”, para tamponar esse aumento de destrutividade interna desintricada. A questão que se coloca é a de poder manter ou não o acúmulo de destrutividade livre no aparelho psíquico, ou seja, que o eu ainda tenha recursos econômicos-libidinais (mesmo que muito custosos) para poder ligá-la. Encurralado entre a impossibilidade de desinvestir o objeto e de continuar a investi-lo, o eu busca uma terceira via para, apesar de tudo, manter um objeto interno e minimizar a perda. Para interromper a inundação pela destrutividade, ele “bombeia” todas as reservas de libido narcísica do aparelho psíquico, indo até os limites da autoconservação.

Enquanto o eu se “desfaz” progressivamente da libido até se esvaziar para neutralizar o efeito destrutivo do traumatismo, o processo encontra uma parada nas fixações orais canibalísticas do sujeito, fixações narcísicas desenvolvimentais do aparelho psíquico (vinculadas aos seus traços sádicos preexistentes: estado sádico oral e início do conflito de ambivalência, no qual a libido ameaça o objeto de destruição por devoramento).

A organização se interrompe, e a reorganização opera em torno desse mecanismo de identificação ao objeto perdido.

Nesse contexto, o conflito em questão é um conflito de ambivalência: existe uma luta inconsciente ódio/amor para desinvestir/guardar o objeto. O objeto melancólico é um objeto desintricado (idealização/ódio). Graças à identificação narcísica, o objeto perdido pode ser abandonado, mas o amor por ele pode ser conservado. Por outro lado, o ódio pelo objeto com satisfação sádica retorna contra a própria pessoa: autossadismo, verdadeira tortura que o melancólico deve aceitar para poder, ao final, sentir-se melhor, superior ao objeto perdido que foi desinvestido e abandonado.

Em um aparelho psíquico bem constituído do ponto de vista tópico, durante todo esse ciclo, o supereu (onde fica alojada a destrutividade) se enfurece contra o eu (onde fica alojada a libido narcísica).

Se o eu sobrevive a essa crise de desintricação (ou seja, se a quantidade de pulsão de morte desintricada não destruir todas as reservas libidinais narcísicas), o que nem sempre é o caso, o eu reintrica a destrutividade e transforma o autossadismo em masoquismo moral do eu (sentimento inconsciente de culpabilidade, necessidade inconsciente de punição), investindo um novo objeto do mesmo modo.

Segundo Rosenberg (2001), a segunda solução, psicótica crônica, é baseada em dois mecanismos: a recusa[3] e a reconstrução.

Para esses pacientes, a desintricação pulsional não é uma crise, mas um estado crônico. Assim, a unidade narcísica do eu é permanentemente ameaçada, e a angústia é significativa.

A resposta psicótica é a clivagem do eu, que satisfaz a pulsão de morte sem colocar em questão a existência do eu, visto que, apesar dessa deformação, uma unidade residual segue subsistindo.

 

Confrontado a uma excitação intensa diante de um objeto sobreinvestido, o eu do psicótico delirante crônico se cliva e se defende pela recusa desse objeto, que se torna muito excitante por conta da desintricação pulsional que ele carrega. De um lado, a libido desintricada que se acumula é responsável pelo ruído e pelo furor do psicótico, como resultado da excitação que o acompanha. De outro, de forma menos espetacular, a pulsão de morte se torna cada vez mais ameaçadora para o sujeito. (ROSENBERG, 2001, p. 116)

 

Aquilo que vemos e sentimos diante do psicótico é a excitação. Mas ela não é a principal fonte de angústia para o paciente. A ameaça real, que faz transbordar a angústia e sobre a qual incide a recusa, é a destrutividade, ou seja, a castração.

Paralelamente, há reconstrução e, portanto, religação dessa destrutividade em um novo objeto, o objeto delirante. Mesmo que isso possa ser muito angustiante, o psicótico não é obrigado a recusá-lo. Ele o criou de maneira a poder viver com ele. É um objeto de alto valor narcísico.

Conforme vimos, o melancólico e o psicótico delirante compartilham um investimento narcísico do objeto em decorrência da destrutividade que emana de seu objeto desintricado. Porém, a diferença está no fato de que o melancólico esvazia o seu eu bem investido narcisicamente (portanto forte) até o limite para conservar o seu objeto, que corre perigo. Uma vez passada a crise, graças à existência de fixações portadoras de um acréscimo de libido, recupera-se na sequência um masoquismo objetal; enquanto o psicótico pode deformar seu eu graças à clivagem-recusa (que também é custosa em termos de libido narcísica) e ainda utilizar libido para criar e conservar um novo objeto.

A terceira solução, somática, corresponde a uma “irradiação” traumática muito mais severa, de um psiquismo muito mais frágil. Aparentemente, tudo está calmo, em uma relação com o real que permanece conservada: pouca ou nenhuma angústia, ausência de dor psíquica e de projeção. Contrariamente ao luto ou à melancolia, superficialmente, o interesse pelo mundo parece até mesmo ter sido conservado. Mas a principal diferença consiste na grande rigidez e na precariedade do eu que se constituiu no curso do desenvolvimento. O núcleo masoquista erógeno primário, determinante na constituição do narcisismo primário e, portanto, nas reservas de libido narcísica ulteriores, é gravemente deficitário. As capacidades intricantes do eu são frágeis, impedindo-o, assim, de um número significativo de operações psíquicas custosas, mas indispensáveis ao funcionamento bem mentalizado, seja neurótico ou psicótico.

A origem dessa carência de investimento do eu é precoce. Evocamos frequentemente a noção de prematuridade do eu, proposta por Michel Fain (1991): o eu frágil e ainda inacabado da criança é submetido a uma clivagem entre regressão e progressão traumática, em um contexto de “confusão de línguas”, que é caro a Ferenczi (1982 [1932]). Constitui-se, então, uma formação que é perigosa, por sua carga de negatividade: o eu ideal, guardião dessa amputação primitiva ligada ao vínculo distorcido ao cuidado materno.

Mais tarde, esse eu ferido é cicatrizado na superfície, atrelado a um imperativo de conformidade e de progrediência forçada (narcisismo fálico). Assim, existe a mesma regressão intranarcísica ao polo autoconservador que há na melancolia, mas esse eu não possui os mesmos meios de uma fixação-reorganização sobre a base de componentes eróticos (não há um patamar[4] que interrompa a desorganização). Ele também não possui os meios para sacrificar-se como o psicótico. Tudo se passa como se, para garantir a sobrevivência e reduzir a excitação crescente ligada à desintricação pulsional, o eu reagisse com um retorno às defesas primárias, que culminaram na constituição de sua prematuridade pseudoadaptativa da infância. Green (2010) fala da “interiorização do negativo”; Delourmel (2019)[5] fala de “politique de gribouille[6] do eu: apagar o sentimento de dor psíquica apagando o aparelho que permite a experimentação.

Nesse eu esvaziado de reservas libidinais objetais e narcísicas, a ligação não pode desintoxicar o excesso de pulsão de morte. Ele será utilizado de um modo autocalmante: a destrutividade ataca as funções capitais do aparelho psíquico até atingir o despedaçamento funcional, ou seja, a desorganização de todas as funções psíquicas e somáticas. Todas as funções psíquicas (sobretudo a projeção, uma das primeiras a aparecer ao longo do desenvolvimento) se desfazem progressivamente. O derradeiro objeto que o eu encontra após esse trabalho de autoamputação pela desobjetalização é o próprio corpo do sujeito.

Clinicamente, trata-se da depressão essencial seguida da vida operatória. Após a instalação desse registro de funcionamento, a angústia desaparece, pois a ameaça direta que pairava sobre o eu desaparece.

Diferentemente do psicótico crônico, não existe nem ruído e nem furor na superfície, mas uma calma “plana”; enquanto progride silenciosamente, a destrutividade despulsionalizada ataca o corpo sem se expressar psiquicamente, por conta da ausência de capital libidinal de ligação.

Em resumo, existe um intercruzamento entre psicose, melancolia e somatização.  Tanto na melancolia quanto na depressão essencial, existe uma drenagem narcísica do eu (regressão intranarcísica, que vai até o polo autoconservador), enquanto o psicótico crônico conserva, graças à recusa, fortes meios econômicos destinados a garantir a manutenção de uma deformação custosa de seu eu. No entanto, o eu melancólico encontra um patamar de fixação, sendo capaz de efetuar uma regressão libidinal que permite uma reorganização intricadora sadomasoquista. O deprimido essencial não dispõe de um patamar de fixação libidinal capaz de interromper a desorganização por meio de uma reintricação libidinal. A desorganização é transposta para o soma. O corpo passa a substituir o psiquismo deficitário, oferecendo uma derradeira tentativa de reobjetalização.

Claude Smadja (2013) fala de solução somática, pois todo esse processo de autodestruição teria como objetivo, em última instância, poupar o psiquismo (que foi mutilado pelas condições de seu modo de constituição precoce) da vivência da dor.

O melancólico se encontra entre o psicótico delirante e o deprimido essencial, devido à sua preocupação fundamental em conservar o objeto. Contudo, ele está mais próximo do psicótico, visto que, por conta de condições mais fastas, sua libido narcísica não o abandona jamais: existem patamares de fixação, fontes complementares de libido narcísica (e não de desobjetalização). Inversamente, o deprimido essencial é compelido a deixar o objeto (desobjetalização) para repatriar toda a sua libido narcísica em seu eu frágil, incapaz de se deformar e sob ameaça de desaparecimento.

É evidente que a clivagem psicótica nem sempre basta para responder à destrutividade advinda da desintricação pulsional, e o eu do psicótico pode recorrer à somatização como solução alternativa.

Os pacientes somatizadores também podem apresentar passagens psicóticas agudas, habitualmente melancólicas.

Tentemos agora realizar uma leitura psicossomática do material de um paciente cujo funcionamento psíquico complexo me parece elucidar esse momento de intercruzamento, no qual o funcionamento mental do sujeito balança entre psicose e somatose.

Trata-se de um homem, por volta dos 60 anos de idade, acadêmico e pesquisador reconhecido, o qual eu encontro em uma situação de relativa urgência por conta de um estado de agitação ansiosa significativa, que evolui há diversas semanas. Isso ocorre após a instalação insidiosa de uma constipação dolorosa, precedida de uma fissura anal. No entanto, as coisas se complexificaram devido às pesadas sequelas de um antigo AVC apresentadas por esse homem. Sua esposa, que o acompanha, parece esgotada.

Inicialmente, é com o seu corpo que eu me deparo: um corpo atormentado, magro e retorcido, evidentemente dolorido. Ao mesmo tempo, sua expressão quase alucinada evoca a loucura em suas representações mais cruas, e eu me preocupo quanto à possibilidade real dessa entrevista.

Entretanto, para minha grande surpresa, eu me deixo levar pelo ritmo sincopado de suas palavras e me permito servir de apoio para que ele compartilhe elementos de sua história, sendo invadida por sua carga afetiva massiva. Longe de me sentir desencorajada ou mantida à distância, sou literalmente cativada, e até mesmo aspirada, por aquilo que as suas ideias parcimoniosas me permitem vislumbrar de seu funcionamento.

Na sequência imediata de nossos dois primeiros encontros e pouco antes do terceiro, a constipação se transforma em diarreia incoercível. Ele tem um acesso francamente melancólico e deve ser hospitalizado por diversos meses. Sua fixação nas dores físicas parece ser requalificada, ao menos transitoriamente, como dor moral. Tratamento difícil, que dura muitos anos, entravado pela sua deficiência motora severa, diante da qual tive o sentimento frequente de assistir impotente a um combate épico entre melancolia e somatização, sem que nenhum desses dois processos se sobrepusesse longamente ao outro.

Do material desse paciente, eu retenho, inicialmente, lembranças sensoriais transmitidas da infância, clivadas entre a doçura da vida no interior da casa de sua família e a violência e o perigo do exterior. Nesse mundo colonial perdido,[7] os filhos são criados por empregadas domésticas e os pais permanecem ocupados com outras coisas. O paciente se lembra de ter sido uma criança doce e fácil, precoce e solitária. Paradoxalmente, ele também se lembra de ter tido o seu despertar intelectual e o seu sucesso formal constantemente vigiados pela mãe. O retorno à França na adolescência não é associado a afetos pessoais penosos. Eu escuto uma espécie de “descorporificação”; o paciente se torna “uma cabeça” em uma prestigiada escola, e a textura sensorial das lembranças desaparece completamente. Ao seu redor, o mundo dos objetos permanece clivado: de um lado, o desinvestimento, e, do outro, a sexualização. Enquanto jovem adulto, ele parece atravessar os anos como um equilibrista em uma corda bamba, posicionada acima do real. Inicia-se um vício pelo cinema, e, até o momento presente, ele assiste a pelo menos dois filmes por dia. Suas capacidades sublimatórias são fortes nos campos social e literário, mas sempre à margem, descoladas de seus colegas. O encontro com sua esposa, uma espécie de duplo, é sentido como algo evidente. Ele funda uma família, criando uma superfície adaptativa, sem que jamais saia da caverna dos sobreinvestimentos intelectuais.

Muitos anos depois, esse desligamento afetivo provoca uma crise conjugal. No dia seguinte ao que a esposa anuncia o seu desejo de deixá-lo, ele tem um AVC grave, exigindo meses de reanimação e de reabilitação, durante os quais ortofonistas e fisioterapeutas são investidos como mães auxiliares, restabelecendo seu contato com o próprio corpo.

Posteriormente, compreendo o quanto esses primeiros tempos que sucederam ao AVC não foram anos de depressão. Inversamente, eles reativaram a sua curiosidade apaixonada de pesquisador diante de um renascimento, o que testemunha a força da recusa diante da sua deficiência.

Em momentos que me parecem quase maníacos, ele se descobre mais potente quanto ao seu corpo e à sua mente quando comparado ao período anterior ao acidente, em um priapismo que o deleita. O desejo de escrever é persistente.

Esse período de euforia dura diversos anos, até o aparecimento da fissura anal. Essa nova somatização coincide com o momento no qual seus esforços de reabilitação esbarram no rochedo do biológico. A castração se impõe proporcionalmente ao território corporal perdido. A fissura anal inaugura o início de um regime de angústia e dor. A dor física se apodera dele e não o abandona: obcecante, ela tem um aspecto quase delirante. Toda a sua vida psíquica é contraída em seu trânsito intestinal. Ao longo da terapia, a constipação crônica, uma espécie de pênis anal que o mantinha agitado em nossos primeiros encontros, desapareceu e deu lugar a momentos subdelirantes, de diarreias profusas, com sentimento de perda da integridade corporal, em alternância com momentos mais calmos, de questionamento quanto à sua potência sexual.

Como questionar o intercruzamento entre psicose e somatose nesse paciente, com base nas considerações metapsicológicas evocadas na primeira parte do texto? E, acima de tudo, o que poderíamos dizer de sua estrutura mental, da natureza das suas defesas e da força do seu eu?

Parece-me que ele sempre funcionou de modo psicótico ou, talvez, neurótico de caráter com traços psicóticos.

Por que seguir a segunda proposição? Talvez devido à existência de um certo grau de clivagem do eu, de recusa do real e da castração antes de seu AVC. Não parecem ter existido elementos projetivos, de ruído ou de furor, que evocariam uma sobrecarga de excitação libidinal desintricada psicótica.

Pelo contrário, a ausência desses traços habitualmente salientes em uma organização psicótica bem-sucedida nos direciona a uma organização de caráter não tão bem mentalizada e, portanto, menos sólida que uma organização correspondente bem constituída.

Tanto o investimento homossexual de grandes autores da literatura quanto a prevalência da analidade poderiam desembocar em uma psicose paranoica, a qual o paciente justamente não teve libido suficiente para organizar.

Com efeito, parece que o Sr. M. não pôde encontrar em si as disposições psíquicas necessárias e suficientes para migrar efetivamente para a loucura, principalmente no momento do AVC.

A via psicótica poderia tê-lo levado ao recurso ao ato no lugar do trabalho de representação vinculado ao objeto: matar a sua esposa para eliminar a prova definitiva de que ele havia sido amado, demonstrando, assim, a sua própria não existência, em uma amalgamação[8] simbiótica sujeito-objeto.

Nesse contexto, poderíamos considerar a sua paixão por cinema como uma figuração dessa amalgamação impossível, ao mesmo tempo desejada e temida? Interior/exterior, ver/ser visto ou perfurar a tela, ser o filho e a mãe.

Entretanto, diante do aumento incontrolável da destrutividade ligada à ameaça de perda da sua esposa, não há fantasias. É a via somática que se abre como solução: recorrer ao ato por meio de seu corpo para evitar a catástrofe psicótica.

Por fim, seu eu parece ter se atrelado a um imperativo de conformidade originado na infância, respeitando a prova de realidade e um sentimento de identidade estável em detrimento do soma. Não há meios para um franco delírio paranoico ou para um acesso melancólico. Não há sentimento de angústia ou dor moral a serem contidos na arena psíquica. Vinculado à sua história precoce, esse imperativo de conformidade evoca a constituição da prematuridade do eu, com clivagem intranarcísica, e de um eu ideal forte.

Tomado pelo imperativo de completude narcísica de sua mãe, podemos imaginar que ele tenha recebido uma mensagem de negação da sua vida psíquica individual, em uma situação econômica além do princípio do prazer. Dessa forma, esse estado de submissão não é masoquista. A vigilância materna à qual ele foi submetido deve ter assumido, ocasionalmente, uma qualidade e uma vivacidade quase alucinatórias.

Os traços da força desse investimento, sem dúvida, se impuseram a mim, por meio do meu sentimento contratransferencial de ser depositária forçada, em meu próprio psiquismo, de algo da ordem do ideal do paciente.

Essa vigilância materna é responsável por aquilo que Claude Smadja[9] designa como a “loucura identitária” do paciente: seu funcionamento psíquico precoce é marcado por uma espécie de exclusão subjetiva, que o levou a “cortar-se em dois” diante de toda fonte de angústia em potencial: de um lado, uma mente pura, provida de um corpo virtual, movendo-se em duas dimensões e esboçando um conjunto de condutas aparentemente estáveis e sólidas, levando-nos a pensar em um eu potente e um supereu forte; de outro, um isso irrepresentável, que retorna às suas fontes somáticas e conserva o seu valor energético.

E após o AVC? Qual estatuto psíquico deve ser atribuído a esse problema de constipação que se tornou esvaziamento anal?

O AVC parece ter permitido um período de vivência subjetiva de franca melhora, por meio da instalação de um funcionamento mais claramente psicótico. Sem dúvidas, a somatização, que apareceu brutalmente, como costuma ocorrer nas estruturas psicóticas, aliviou essa sobrecarga ao despulsionalizar uma parte da pulsão de morte, derivada em direção ao corpo, permitindo ao paciente uma mentalização melhor no registro da psicose do que no registro do caráter.

A agitação ansiosa referente à constipação provavelmente aponta para a recrudescência de um perigo para a unidade do eu. A recusa da castração e da realidade parece ter se instalado a ponto de interromper o progresso e a aparição da fissura anal. Mas, dessa vez, a perda de objeto é inexorável. O próprio corpo, que havia se tornado um objeto refúgio, também começa a vacilar.

Coloca-se a questão do acesso melancólico: para esse paciente, não é viável renunciar ao derradeiro investimento narcísico que representa o seu corpo em reabilitação, sempre capaz de performar.

No entanto, apesar da provável existência de um sadismo massivamente reprimido na infância, que foi reencontrado no decorrer das sessões, ele não parece possuir os recursos libidinais para uma reorganização sadomasoquista objetal, sinalizando o sucesso do acesso melancólico.

Assim, o quadro apresentado é incompleto, situado entre uma negação de órgão do tipo Cottard (negação do aparelho psíquico, como se tudo o que entrasse saísse em algum momento, sem nenhum filtro psíquico) e uma crença delirante setorizada quanto à potência sem limites de seu intestino. Não parece se tratar de uma somatização propriamente dita.

Concluindo: o funcionamento mental desse paciente propõe uma ilustração do vasto e complexo campo metapsicológico qualificado como “intercruzamento” entre psicose e somatose. Anteriormente ao AVC, observamos uma neurose de caráter com traços psicóticos, com uma organização instável, tendo como base uma imago materna ameaçadora. Para se libertar dela, houve um sobreinvestimento homossexual do pensamento de grandes autores da literatura, sobrepondo-se à imago paterna.

A ameaça de separação do objeto narcísico fundamental, a sua esposa, interrompe brutalmente esse equilíbrio mal mentalizado com a psicose. O acréscimo da destrutividade o desorganiza somaticamente e, paradoxalmente, o alivia, evitando a confrontação com sua dor psíquica.

O funcionamento psicótico retoma mais claramente o seu trajeto após o AVC. O nível de destrutividade livre no eu, que havia sido, por conta da somatização, “artificialmente” reduzido, encontra um limite em um real irrefutável: a interrupção da sua recuperação.

 A fissura anal, uma nova somatização mais funcional, introduz o paciente à economia da dor, visto que ele, provavelmente, não possui os meios libidinais para a dor moral melancólica, e a dor física cumpre esse papel.

Em seu mundo, que atualmente está desmentalizado demais para que seja possível escolher entre psicose e melancolia, uma última parte erógena de seu corpo parece ter sido conservada: o intestino, que continua recusando a castração e luta contra a secagem operatória.



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ano - Nº 4 - 2022
publicação: 26/11/2022
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Autor(es)
• Françoise Chaine
Sociedade Psicanalítica de Paris e Instituto de Psicossomática de Paris

Psiquiatra e psicanalista. Membro aderente da Sociedade Psicanalítica de Paris. Membro e médica chefe do Instituto de Psicossomática Pierre Marty (IPSO-Paris).

Notas

Tradução: Pedro Marky-Sobral

[1] Texto citado por Claude Smadja em um seminário realizado no IPSO-Paris.

[2] Texto citado por Claude Smadja em um seminário realizado no IPSO-Paris.

[3] Nota de tradução: Optamos por traduzir déni como “recusa”.

[4] Nota de tradução: Optamos por traduzir palier de fixation como “patamar de fixação”.

[5] Comunicação oral no seminário “Psicanálise e Ciência”, em 2019, em Paris.

[6] Nota de tradução: Uma medida que conduz àquilo que se pretende evitar.

[7] Nota de tradução: Trata-se de um paciente que vivia em um dos departamentos e territórios ultramarinos da França.

[8] Nota de tradução: No original, téléscopage, que também pode significar “sobreposição” ou “colisão”.

[9] Em comunicação pessoal 

  

Referências bibliográficas

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