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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    20 Abril de 2012  
 
 
O MUNDO, HOJE

O DILEMA DO PSICANALISTA DIANTE DO “PSICO-SOCIAL”


MIRA WAJNTAL [1]
 
 
Nos anos 80, quando estudante, comecei a trabalhar com pacientes psicóticos. Visitava os manicômios, grandes pavilhões nos quais indivíduos se amontoavam, entre aventais, delírios e o ócio. A perda de identidade, um mundo atemporal eram a vitrine da realidade dos serviços de “Saúde Mental”. Naquela ocasião iniciava-se todo o movimento da luta anti-manicomial.

Trinta anos depois, venho a retomar o trabalho com a mesma população. Qual não foi a minha surpresa diante do fato de que o antigo cenário de clausura havia se revertido! Hoje há uma série de locais onde a loucura pode e deve circular: bares, cordão carnavalesco, feiras, parada louca2 etc. Como qualquer outro grupo social que reivindica e se identifica por um marca, característica ou mesmo pelo sentimento de exclusão, passa a ter seus corredores próprios de circulação e suas grifes. Esta circulação trouxe ganhos efetivos, principalmente quanto à qualidade de vida, respeito e cidadania dos sujeitos portadores de grande sofrimento psíquico. A maioria deles está orientada no tempo, tem identidade, não está mais camuflada em uma massa amorfa de doentes, sem história. Pode-se dizer que este foi o grande ganho desta luta.

Ganhar o espaço social, viver sem os muros, sem dúvida, disponibilizou uma série de inscrições das quais os chamados “pacientes psiquiátricos” se viam até então privados. Mas vemos que algo ainda continua a mancar. Embora já contemos com uma variedade de excelentes projetos disponíveis na tentativa de resgatar os indivíduos de sua clausura subjetiva, inserindo-os em contexto em que possam circular socialmente ou se engajarem em um projeto de produção/trabalho, raramente vemos os mesmos se apropriarem, tornarem-se agentes da ação. Muitas vezes acabam aderindo aos projetos identificados com os ideais das equipes proponentes, causando a impressão de que, sem a presença desejante do técnico, facilmente se agarrariam aos velhos e antigos sintomas e retornariam ao isolamento.

Ora, se partimos do pressuposto de que o ofício do psicanalista é fazer o sujeito se deparar com seu próprio estilo, refletir sobre ele, e quiçá escolher mantê-lo ou mudá-lo, o dilema sobre esta prática imediatamente se impõe. Principalmente frente ao discurso de vitimização do paciente, que permeia os projetos oferecidos pela Saúde. É claro que este discurso tem suas bases na realidade histórica, mas questiono em que medida este discurso pode potencializar uma nova forma de aprisionamento, no qual o paciente se veja sempre como um dependente da concessão do desejo de outrem, de alguém que lhes diga como fazer, como subsistir. Os pacientes passam a ser demandantes de amor daqueles que deveriam ser apenas promotores de sua socialização. Tratamento e benefícios ficam enredados de forma indissolúvel.

Ao lado disto, as práticas que valorizam a escuta do mundo anímico - que nem sempre é permeado de bons ideais, mas de horrores - vem sendo identificada como patologizante e aliada da antiga política de encarceramento. Poder lidar com estes conteúdos não significa circunscrever a psicose na patologia, mas procurar suas possíveis janelas de saída. Mas a interpretação ou a construção através da escuta vem sendo desvalorizada e combatida como se isto fosse contra o lugar de cidadania conquistado. Seria violência interpretar ou escutar? Afinal, a quem pertence o processo mórbido? Ao sujeito? À família? Ao Estado?

Curiosamente, a mesma confusão é feita quanto à consulta e à prescrição do médico psiquiatra. Isto vem gerando uma falsa guerra entre escolas clínicas, aonde as partes sempre se julgam “corretas”, com a incrível missão de suprimir o diferente. Os distintos saberes não se abrem a um debate ético, a partir de suas diferenças, com a perspectiva de construir outro saber que reconheça exatamente a particularidade, limites e alcances de cada área de estudo. Aquilo que deveria ser um campo de produção do conhecimento passa a ser campo de ideologia.

Estes dilemas estão presente no cotidiano de muitos profissionais que, sob duras condições, exercem seus ofícios. Lado um tanto sombrio que muitas vezes permeia as discussões sobre as políticas públicas, mas raramente é explicitado ou levado em conta. Creio que estes aspectos podem enriquecer o debate sobre a constante proposição de reformas que o sistema de saúde público vem sofrendo. Pois frequentemente, com o objetivo de sanar alguns aspectos que todo projeto inevitavelmente irá apresentar no decorrer do tempo, procura-se suprimir um modelo sem uma avaliação correta das falhas e benefícios. Desta forma, novas propostas surgem uma atrás da outra, fazendo com que os serviços sejam constantemente articulados e desarticulados, sem acumular ou levar em conta as experiências anteriores. Ou seja, nossa Saúde Pública fica sem registro, memória ou história.

BIBLIOGRAFIA
DUNKER, Christian Ingo Lenz  e  KYRILLOS NETO, Fuad.  “Sobre a retórica da exclusão: a incidência do discurso ideológico em serviços substitutivos de cuidado a psicóticos”.  Psicol. cienc. prof. [online]. 2004, vol.24, n.1
Disponível em:. ISSN 1414-9893.

FENDRIK, S. & JERUSALINSKY, A. (orgs). O livro negro da psicopatologia contemporânea. São Paulo: Via Lettera, 2001.

 

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[1] Psicanalista, atende em consultório. Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP, Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Participou da equipe fundadora do Hospital-Dia Infantil da Mooca e do CAPS infantil da Mooca por 14 anos. Autora do livro Uma Clínica para a Construção do Corpo (Via Lettera, 2004) e organizadora do livro: Clínica com crianças: enlaces e desenlaces (Casa do Psicólogo, 2008).

[2] O “Orgulho Louco” surgiu em Londres ao final do século XX como um movimento de usuários de serviços de Saúde Mental e seus aliados. No Brasil, a “Parada do Orgulho Louco” é realizada anualmente, desde 2007, pelo Movimento Antimanicomial.



 
 
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