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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    20 Abril de 2012  
 
 
O MUNDO, HOJE

O LUGAR DO PSICANALISTA EM UM CAPS DE OS


DANIEL LIRIO  [1]

 

Na última década, a atenção à Saúde Mental no Brasil tem passado por intensas mudanças. Em 2002, quando foram tomadas medidas eficazes para que o tratamento em Saúde Mental fosse feito em meio aberto, o país gastou cerca de 620 milhões de reais nessa área e, desse montante, 75% foram destinados a hospitais psiquiátricos. Já em 2010, foi gasto 1,5 bilhão, do qual menos de um terço foi destinado a hospitais psiquiátricos. Motivo de comemoração, sim, mas é preciso questionar se esta mudança concreta traz consigo a mudança de paradigma quanto ao modo de tratamento e, a partir daí, qual seria o lugar do psicanalista dentro desta nova engrenagem.

Nesse cenário bastante complexo, cabe ressaltar dois elementos importantes. Em primeiro lugar, a medicalização do sofrimento humano é um fenômeno cada vez mais intenso no cotidiano de nossa cultura, banalizado pela mídia e centros de saber, tão recorrente nos atendimentos particulares como nas instituições públicas. Se considerarmos a inserção capilar dos serviços de Saúde Mental em nossa sociedade – há inclusive psiquiatras atendendo em postos de saúde – reconhecemos o ganho, no sentido da possibilidade de prevenção de agravamento de alguns casos, mas também nos preocupamos por essa expansão colocar toda a população como potencial usuária de psicotrópicos.

Em segundo lugar, vale apontar que na cidade de São Paulo a construção da rede de saúde e, por conseguinte, de Saúde Mental tem por base as parcerias com as Organizações Sociais (OS). Este caminho é contrário à diretriz estabelecida na última Conferência Nacional de Saúde Mental, de 2010. Neste momento não cabe, contudo, aprofundar a discussão sobre as OS que, por certo, têm seus pontos positivos e negativos. Minha intenção é discutir o lugar do psicanalista nos Centros de Atenção Psicossocial geridos por Organizações Sociais, cujas regras, normas, preceitos e objetivos não estão necessariamente restritos ao bom atendimento da população: não basta que o serviço seja bom, é preciso que ele pareça muito bom, conforme veremos a seguir.

Um dos princípios da Reforma Psiquiátrica é a consideração da dimensão humana em sua complexidade, deshierarquizando os saberes. Nos CAPS, de fato, estão presentes equipes multiprofissionais, mas alguns saberes são claramente mais valorizados que outros: basta dizer que um psiquiatra ganha o triplo do que ganha um psicólogo. Esta diferença não pode ser compreendida simplesmente pela disponibilidade de profissionais no mercado, mas sugere que a intervenção psiquiátrica é a espinha dorsal do tratamento, havendo inclusive quem defenda que pacientes estabilizados do ponto de vista psiquiátrico sequer deveriam frequentar o serviço. Sendo assim, a intervenção medicamentosa para esses pacientes é automática, bem como a manutenção dos medicamentos após a alta – muito pouco se fala sobre a possibilidade de retirada da medicação. Menos valorizado em termos da estratégia do tratamento, tendo frequentemente de cumprir uma carga de trabalho de 40 horas semanais e, ao menos no caso das OS, sem um plano de  carreira com vistas a salários condizentes, o cargo de psicólogo é geralmente ocupado por profissional em começo de carreira. Trata-se de uma ótima oportunidade para aprender e adquirir experiência, mas sua perspectiva financeira é ruim e, portanto, é normalmente encarada como provisória. De fato, segundo a perspectiva da OS, talvez um psicólogo recém formado seja preferível a um psicanalista maduro. Vejamos por quê.

O saber médico, saber positivo, apresenta-se não como um saber constituído, construído historicamente, mas como “a verdade sobre o sujeito”. Este saber coloca-se como mediador entre o paciente e seu sintoma, isto é, aliena o sujeito de seu sofrimento, de sua angústia. O sucesso do médico será avaliado em termos do que o medicamento proporciona ao sintoma: sua melhora, piora ou deslocamento, via efeito colateral. O médico detém todo o saber e o paciente não tem saber algum. Seus sintomas devem, assim, tomar a forma apreensível pelo saber médico: tontura, sonolência, insônia, anedonia, embotamento, impulsividade - e mesmo a revolta contra esse discurso se dará pela perversão de seus signos, via de regra, pela abstinência ou abuso da medicação.

Geralmente originárias de instituições médicas, as Organizações Sociais gerem hospitais, postos de saúde, ambulatórios de especialidades, AMAs (Assistência Médica Ambulatorial) , os diversos tipos de CAPS, etc. Por ser um serviço gerido por uma OS, e não pela própria prefeitura, o CAPS tem mais autonomia frente às mudanças na gestão do município e, portanto, por este ângulo, mais estabilidade. Por outro lado, este órgão gestor constitui-se também como um micro-cosmo à parte: tem seus costumes, seus fluxos, seus protocolos e seu sistema de valores. Contudo, ao contrário de um serviço público, cujas regras e critérios estão todos escritos enquanto leis, códigos e estatutos, que servem de referência para todos os funcionários, em uma OS as regras não estão escritas, mas são validadas segundo a conjuntura e conforme a vontade ou entendimento do colaborador que detenha o poder em questão. Assim, para manter sua autonomia, é preciso que a OS dê constantemente provas de sua eficiência, na medida em que cumpra as metas estabelecidas pelas leis federais e demonstre o atendimento de qualidade à população. Quanto ao CAPS em si, de forma semelhante, é preciso que ele dê provas de seu bom funcionamento à OS e aos órgãos públicos de fiscalização.
 
O problema desta configuração é que os funcionários devem desempenhar suas tarefas levando em consideração: a) as diretrizes e portarias federais que estabelecem como o serviço deveria funcionar; b) regras não escritas, explícitas ou implícitas, ocultas ou negociadas na instituição; c) critérios pouco claros para promoção de cargos ou para a manutenção nos cargos de chefia; d) uma estrutura fortemente hierarquizada, que impede as reivindicações de quem estiver no extrato “inferior”. Inserido em um meio com jogos de força tão intensos, todo funcionário e o serviço como um todo precisa se proteger, e o melhor meio de fazê-lo é cumprir à risca todos os fluxos e procedimentos burocráticos e, sempre que possível, antecipar-se a possíveis demandas da “cúpula de cima” e órgãos fiscalizadores. Enfrentando um jogo de regras mutantes, repleto de interesses contraditórios e, frequentemente, alheios ao bem estar dos pacientes, o serviço passa a se aferrar a seus protocolos como algo capaz de  salvá-lo frente a uma demanda excessiva e contraditória, vinda de fora. É como o obsessivo que, uma vez utilizando um ritual para se proteger de um imperativo superegóico, aferra-se a esses procedimentos e acaba entrando em um circuito repetitivo, uma compulsão à repetição bastante difícil de se superar.
 
O resultado é que se passa a compreender o bom funcionamento do serviço como o bom cumprimento das metas quantitativas, dos procedimentos e dos fluxos, deixando seu caráter clínico em segundo plano. Neste contexto, os diversos saberes que compõem a equipe multiprofissional são incapazes de decidir sobre a política do serviço e funcionam apenas como insígnias de saber, submetidos a um poder burocrático superior. Resumidamente, poderíamos dizer que a vontade de excelência do serviço é deslocada para a vontade de parecer um serviço muito bom aos olhos da cúpula superior da OS e dos demais mecanismos de avaliação.

Estão em foco, portanto, as vicissitudes do casamento do saber médico com a burocratização do atendimento à Saúde Mental. Embora o tratamento da psicose tenha avançado bastante nas últimas décadas, inclusive pelo desenvolvimento de novas medicações, o monopólio de um saber em um cotidiano excessivamente administrado dificulta a emergência da singularidade e a constituição de uma identidade. Para isso, seria preciso um setting simultaneamente constante e flexível e intervenções que considerassem a complexidade de sua situação.

No caso dos pacientes histéricos mais graves, cuja sintomatologia é associada à bipolaridade, ao transtorno borderline ou até, como prefiro, à loucura histérica, essa questão é ainda mais delicada. A questão é mais delicada porque, diante de um saber que se coloca como absoluto, o discurso histérico assumirá um posicionamento ambíguo: fará forte laço com esse saber, elegendo-o prematuramente como seu salvador, mas também vai precisar frustrá-lo, escancarar sua surdez e mostrar a todos que se trata de um saber incompleto. A forma de denunciar essa surdez será, por excelência, a atuação (acting out). Em outras situações, as atuações poderiam ser ouvidas como críticas ao modo de tratamento, possibilitando o questionamento da estratégia utilizada. Contudo, em um ambiente que prima pela observação dos fluxos e a tranquilidade de seu cotidiano e que deve sempre dar provas de seu “saber fazer”, as atuações não terão guarida. A reação da equipe técnica está nos bordões bem conhecidos de todos que trabalham nessas instituições: “ele está usando o serviço como palco”, “está querendo manipular, chamar a atenção”, “precisamos dar limites”. Impossibilitado de expressar sua condição subjetiva, a reação do histérico poderá ser a passagem ao ato, o que dará oportunidade ao serviço de excluí-lo, a chamada “alta administrativa”.

Neste contexto, o psicanalista tem a dificílima missão de colocar em cena os sentidos que habitam o comportamento do paciente. Fazê-lo, contudo, seria ajudar a equipe técnica a entrar em contato com sua surdez, com o limite de seu conhecimento e a desejar um estilo de manejo que, longe de dominar o paciente, buscasse lhe dar voz, liberdade. Portanto, o discurso do analista só se constitui em relação a um outro que possa assumir o lugar de desejante, isto é, de faltante. Ora, à medida em que os técnicos estejam identificados a um saber médico estabelecido, estável, ou a um saber burocrático de dominação dos processos, o reconhecimento de sua surdez é impraticável. Surge, assim, no psicanalista a tentação de mostrar como a psicanálise é eficiente para resolver esse problema, isto é, como a psicanálise é o saber por excelência para conseguir desvendar o mistério dos pacientes. Se conseguisse fazê-lo, contudo, o psicanalista apenas forneceria um complemento ao saber médico, tornando-o ainda mais absoluto. Impossibilitado de apontar esse paradoxo em um nível institucional mais amplo – tarefa que caberia a um supervisor – resta ao psicanalista procurar brechas no cotidiano do serviço, junto a técnicos e pacientes, para que se produzam diferentes formas de vínculo e sejam criadas outras formas de se manejar a transferência, mais atentas às singularidades do sujeito.
 
A ética da psicanálise está justamente em sair do lugar de responsável por guardar os significantes mestres que teriam a verdade sobre o sujeito, para produzir no sujeito neurótico o desejo de constituir um saber sobre seu sofrimento, e para produzir, junto ao psicótico, um saber sobre a sua existência. É a partir de então que o inconsciente poderá ganhar corpo, que o sujeito, seja ele neurótico ou psicótico, poderá constituir um estilo de existência com um mínimo de liberdade. Ora, esse modelo de serviço está completamente atravessado pela dicotomia saber médico/saber burocrático das OS que, para sustentarem seu poder, devem manter-se como os reservatórios de saber – é isso que leva à cronificação dos pacientes, posto que se tornam dependentes desse reservatório. Entre o lugar de falta-a-ser do analista e o lugar de “super saber eficiente” da dicotomia médico-empresa, tem-se algo de inconciliável. É por isso que, paradoxalmente, pode se dizer que o lugar do psicanalista é, neste serviço,  simultaneamente fundamental e impossível.

Referências Bibliográficas

CHECCHIA, M. A . Sobre a política na obra e na clínica de Jacques Lacan. Tese de Doutorado a ser defendida em abril de 2012 no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Orientada por Dr. Christian Ingo Lenz Dunker.

LACAN, J. (1969-1970/1992). O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

 

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[1] Psicanalista, mestre em psicologia social pela USP, professor universitário. Foi aluno do curso de Psicanálise do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientae. Trabalhou em CAPS infantil e em CAPS adulto. Autor do livro Suspensão corporal: novas facetas da alteridade na cultura contemporânea.



 
 
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