PUBLICAÇÕES

    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    20 Abril de 2012  
 
 
NOTÍCIAS DO CAMPO PSICANALÍTICO

HISTÓRIA DA PSICANÁLISE NA FRANÇA


LUCIA VALLADARES [1]
 
 
Caros amigos,

Em nome da pesquisa histórica; da liberdade de expressão; e da história da psicanálise, encaminho a tradução que fiz da declaração da filósofa e escritora Catherine Clément lida ontem, 16/11/2011, na audiência do Tribunal de Grande Instância em Paris.

O documento foi utilizado na ação movida por Judith Miller contra E. Roudinesco por difamação.

A querela diz respeito ao penúltimo parágrafo do livro Lacan, a despeito de tudo e de todos [Rio de Janeiro: Zahar (Paris, Seuil)], publicado em setembro p.p. na ocasião dos 30 anos da morte de Lacan, onde E. Roudinesco, retomando o que já havia dito em seu livro de 1993 (Jacques Lacan. Esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento [São Paulo, Companhia das Letras, 1994, (Paris, 1993)]), diz o seguinte:

“Com um falso nome Lacan morreu, em 9 de setembro de 1981, na clínica Hartmann, de um câncer de cólon que ele nunca quis tratar. Embora tenha manifestado o desejo de passar seus últimos dias de vida na Itália, em Roma ou em Veneza, e desejado funerais católicos, ele foi enterrado, sem cerimônia e na privacidade no cemitério Guitrancourt”. (tradução livre)

Assinalo que Judith, filha caçula de Jacques Lacan, é psicanalista e esposa Jacques-Alain Miller; este, por sinal, também desde setembro p.p., em conflito público com seu editor, Seuil (através de Olivier Bétourné – por sinal, companheiro de Roudinesco), para publicação dos 10 Seminários que deve aos leitores e discípulos do mestre francês.

Assim, com esse documento procuro divulgar, com autorização de Elisabeth Roudinesco, um lamentável capítulo da história da psicanálise que vem sendo assim escrito nos tribunais de justiça.

Um abraço a todos,

Lucia Valladares

 

Segue a declaração:

Catherine Clément

Filósofa e escritora

Tendo assistido os seminários do Dr. Jacques Lacan de 1962 a 1980; tendo assistido a algumas de suas apresentações de caso no Hospital Saint-Anne; tendo sido encarregada por Jean Piel, seu diretor, da primeira Resenha dos Escritos de Lacan na revista Critique em 1966; e tendo publicado o primeiro livro sobre ele em 1981 (Vies et legendes de Jacques Lacan, Paris: Éditions Grasset, collection Figures) [Vidas e lendas de Jacques Lacan, São Paulo: Moraes, 1983], pude em diversas ocasiões constatar seu conhecimento profundo sobre religião e a teologia católicas, que no entanto não eram contraditórias com sua posição ateia. Não achei nem chocante nem impossível que, como numerosos incrédulos que conheço, ele tenha podido em algum momento de sua vida formular o desejo de ter funerais católicos: sobre esse ponto, os desejos de cada um podem evoluir de acordo com as circunstâncias da vida.

Há mais de 50 anos, conheço e gosto muito de minha amiga Judith Miller; conheço também o imenso respeito que ela tem por seu pai, respeito que partilho. Não obstante, ao ler o último livro de Elisabeth Roudinesco não senti nele a menor ofensa a Judith Miller; se fosse o caso, tendo lido a versão preliminar do livro antes de sua publicação, certamente teria assinalado à autora de Lacan, envers et contre tout [Lacan, a despeito de tudo e de todos, Rio de Janeiro: Zahar, 2011].

Fiquei chocada com a forte reação emocional de minha amiga Judith, reação provocada no momento, como ela me disse, em que leram para ela por telefone o único parágrafo desse livro – o parágrafo incriminado.

Não me pareceu, em momento algum, que E. Roudinesco tenha visado a filha de Jacques Lacan, assim como sua família, nem em momento algum foi questão nesse parágrafo de uma traição aos desejos paternos. Eis o que pensei: ah!, eu não sabia disso, ele mudou de ideia, ele pode em algum momento ter desejado funerais católicos e depois na última fase de sua existência ter pedido à sua filha outra forma de funerais. Não achei que isso fosse ofensivo para Judith: porque se assim o fosse, eu teria captado imediatamente. Digo isso ainda mais tranquilamente porque tentei da melhor maneira possível acalmar o violento tormento de Judith naquela mesma noite em que erroneamente ela se sentiu pessoalmente acusada.

Infelizmente, de nada serviu. Lamento profundamente que esse tormento tenha tomado a forma de uma queixa na justiça. Para tornar público o que do meu ponto de vista não passa de um mal-entendido, me parece que uma carta-aberta publicada na impressa teria sido suficiente. Até mesmo – podemos sonhar – um simples telefonema.

Eu acrescentaria que, em 1993, fui a primeira a criticar no Magazine Littéraire o livro de Elisabeth Roudinesco, Jacques Lacan. Esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento [São Paulo, Companhia das Letras, 1994], cujo tom me pareceu por vezes agressivo (mas certamente não no ponto em que é abordada a questão dos funerais). Em 2011, Lacan, a despeito de tudo e de todos [Rio de Janeiro: Zahar (Paris, Seuil)], me parece, ao contrário, escrito de outra maneira, em um tom de admiração sem, entretanto deixar de ser crítico, e que sinceramente presta homenagem a um dos mais importantes pensadores de seu tempo. A questão dos funerais é abordada da mesma maneira nas duas obras, o que torna ainda mais incompreensível o tormento de minha amiga Judith, e mais ainda sua ação na justiça.

Tenho conhecimento de que esta declaração será utilizada pelo Dr. Geoges Kiejman durante o processo movido por Judith Miller contra Elisabeth Roudinesco.

 

________________________________
 
[1] Psicanalista, ex-aluna do Curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e orientanda de Elisabeth Roudinesco.



 
 
Departamento de Psicanálise - Sedes Sapientiae
Rua Ministro Godoi, 1484 - 05015-900 - Perdizes - São Paulo - Tel:(11) 3866-2753
www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/