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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    20 Abril de 2012  
 
 
NOTÍCIAS DO DEPARTAMENTO

INQUIETAÇÕES DA CLÍNICA – UM ESPAÇO PRIVILEGIADO DE PESQUISA


LIA PITLIUK [1]

 

 

Como espaço de trabalho, é de muitas maneiras diferentes que o Inquietações da Clínica, do nosso Departamento, tem nos servido: espaço de circulação de ideias... de ajuda mútua em relação a impasses clínicos... espaço para que cada um se apresente ao grupo de pares... são muitas as suas funções. Sempre expressei meu entusiasmo em relação a este dispositivo e venho participando dos encontros com bastante assiduidade. Depois de apresentar pela segunda vez minhas próprias inquietações clínicas, gostaria de sublinhar, entre as funções deste espaço, a de forte colaborador da vertente-pesquisa da nossa clínica – algo a ser destacado não apenas para a valorização do próprio Inquietações, mas como inspiração para o surgimento de outros espaços com a mesma vocação.

Em minha primeira apresentação, expus um caso que me preocupava porque, durante o processo analítico, a analisante desenvolveu um quadro que a psiquiatria nomeia como síndrome do pânico; e eu entendia que essa produção era resultante de algo que ‘escapava’ na análise. O disparador do debate, Decio Gurfinkel, propôs uma compreensão muito diferente: ele pensava que nesta analisante estava havendo uma transformação de seu funcionamento, até então baseado em atuações: estas pareciam estar sendo substituídas pelos ataques de pânico - expressões muito mais ‘psiquizadas’ que colocavam a analisante numa posição inédita de aceitar o desamparo e dele cuidar. Justamente o que até então as atuações pareciam evitar.

De fato o desenrolar da análise – e da vida da analisante – vem confirmando as observações de Decio: o funcionamento tão grave e primitivo (anorexia, depressão importante e adicções sérias e perigosas) vem dando lugar a uma crescente capacidade de processamento psíquico, traduzida em efeitos que tão bem conhecemos.

Mais de um ano depois, ao receber uma analisante com traços semelhantes a aquela (atuações e comportamentos autodestrutivos igualmente importantes, num funcionamento que eu não hesito em situar como de uma histeria gravíssima), eu me dei conta de uma especificidade presente no meu trabalho com ambas, que eu não havia focado na apresentação anterior, e que agora me chamava muito a atenção: como no outro caso, também neste, em algumas sessões, eu me surpreendia fazendo intervenções muito condensadas, muito elaboradas, e em quantidade bem maior do que costumo fazer habitualmente. E mais uma peculiaridade: nem todas as intervenções eram formuladas mentalmente por mim antes de serem expressas em palavras.

Também como no caso anterior, apesar da condensação surpreendente, as intervenções que me preocupavam fluíam com suavidade e me pareciam ser escutadas também com suavidade pela analisante - uma moça que faz uso intenso da prática de se cortar. Basicamente, na sessão que apresentei no Inquietações eu lhe dizia que ela tratava sempre de ‘cortar’ essa ou aquela experiência, pessoa, lembrança – elementos excluídos que eu ia reintroduzindo pelas minhas falas. E eu me perguntava, um tanto compulsivamente: ‘por que fiz tantas intervenções nessa sessão?’, ‘o que poderia estar me movendo a uma busca tão intensa e rápida de sentidos?’, ‘como sigo intervindo assim se estamos em início de análise e ainda nem sei como esta analisanda toma essas minhas falas?’, etc.

Em paralelo, o mais inesperado, para mim, era que essas minhas intervenções a faziam acessar pedaços de história que, então, retomava e trabalhava – exatamente o que acontecia em alguns momentos daquela outra análise que levei ao Inquietações. Em outras palavras: se formalmente, nas minhas intervenções nestes dois processos analíticos, me parecia haver um excesso (de sentido, de frequência, de condensação), do ponto de vista dos efeitos isto parecia promover uma facilitação importante do movimento de análise.

Minhas concepções sobre o método analítico não indicam essa prática e por isso decidi levar a questão ao Inquietações. O debate foi intenso, movimentado e de muita riqueza, como costuma acontecer em todos os encontros. Mas não apenas isso: penso que neste espaço aberto de discussão há uma especificidade que tende a fazer surgir o inusitado, o nunca-pensado-antes, o não-sabido, essência do que entendemos por pesquisa clínica. Estou me referindo à diversidade: ao contrário de um grupo estável de discussão clínica ou de supervisão, no Inquietações reúnem-se pessoas que nem sempre se conhecem, ou que se conhecem pouco; e, com isso, trabalha-se com menos pressuposições sobre a prática e o pensamento de cada um.

Outros dispositivos de troca como jornadas, congressos, palestras, etc., também reúnem pessoas que pouco se conhecem, mas neles não costumamos reservar muito espaço para o trabalho espontâneo com as ideias: são ambientes em que apresentamos já o fruto das nossas elaborações, geralmente através da leitura de material previamente disposto e processado. Método fundamental para a exposição dos avanços no pensamento já feitos por cada um, e que promove efeitos diferentes deste outro, ligado à pesquisa clínica.

Penso que no Inquietações a diversidade, unida à proposta de debate espontâneo, promove uma experiência de algum modo aparentada ao que Freud propunha em A Interpretação de Sonhos: acumulemos relatos de sonhos e deixemos que se interpretem mutuamente. É o que me parece acontecer no Inquietações: uma profusão de pensamentos e articulações que, colocados lado a lado, ‘interpretam-se mutuamente’... e produzem efeitos.

Neste segundo encontro, o debate se iniciou com muitas associações sobre o que poderia estar acontecendo com a analisante... com a analista... com o vínculo entre as duas... ou seja, o foco começou colocado no que poderíamos situar como hipóteses de causas. Até que o próprio movimento do debate foi produzindo efeitos nos participantes – que passaram, então, a pensar também os efeitos das intervenções sobre o processo analítico.

A título de ilustração, apenas, sublinho duas falas neste sentido:   

  • Uma delas - de Decio Gurfinkel, mais uma vez - propondo que deslocássemos o clima de tribunal que me ‘assombrava’. De fato, minhas inquietações estavam bastante permeadas pelas minhas pressuposições sobre o que é melhor e o que é pior fazer, com pouco espaço para a consideração dos efeitos que estavam sendo produzidos.
  • Outra fala - de Pedro Monteiro - sublinhando que grande parte do que se passa nas trocas – verbais ou não - entre analista e analisante é da ordem do brincar.


Deslocando o clima de tribunal em que se pensa com categorias de certo e errado, e resgatando lugar e função do brincar, pode-se pensar o inédito. No meu caso em particular, pude começar a pensar sobre possíveis efeitos da produção rápida e intensa de interpretações com alto grau de condensação e simbolização, em análises de histerias muito graves com presença de atuações e comportamentos autodestrutivos. Nos dois casos que relatei no Inquietações, o principal efeito era um rebaixamento dessa atividade ‘hiper-simbolizante’ por parte das próprias analisantes, como se me encarregassem dessa função, o que parecia lhes permitir que se voltassem para as histórias a que as condensações aludiam.

Tenho algumas impressões sobre este efeito. Não penso, obviamente, que cada uma das minhas intervenções fosse absorvida e processada pelas analisantes, ao longo de uma sessão: parece-me que o fundamental era que eu fizesse aquele tipo de trabalho na frente delas. Em parte, parece que as analisantes passam a supor que tanto os sintomas quanto os pedaços de história podem ser ‘brincados’ no pensamento e na relação comigo... que suas expressões não são tomadas de modo simplório, banal ou secundário... que suas vivências são consideradas como de alta complexidade e densidade... E me parece que, graças a estas experiências com a analista, as analisantes tranquilizavam-se e passavam a poder desfiar suas histórias sem terem, elas mesmas, que fazer o trabalho permanente de ‘espetacularização’ a que, até então, se viam obrigadas.

Bem, este é o específico da minha experiência, que trago apenas como ilustração do que me parece o mais essencial: seguirmos fortalecendo cada vez mais a vertente-pesquisa do Inquietações (e de outros espaços de trabalho do Departamento), através da disposição de tomar sempre em consideração os efeitos do que se produz na clínica.

 

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[1] Membro do Departamento de Psicanálise. Membro do Departamento de Psicanálise da Criança, onde é professora e supervisora do curso de Psicanálise da Criança e do curso Leituras Psicanalíticas do Brincar.




 
 
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