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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    23 Novembro de 2012  
 
 
ESCRITOS

BERLIM CICATRIZADA
Impressões de uma viajante



RUBIA MARIA TAVARES DELORENZO [1]


A alma de Berlim oscila com a própria temperatura: de chuvosos 8 graus, ao sol ardido dos 30. Inverno sombrio e azul promissor. É um pouco nesta escala que a cidade se descobre: entre o frio cáustico dos túmulos e a quentura da festa.

Sua silhueta é, a princípio, informe, insossa, sem beleza nem graça. Na chegada, não produz nenhum entusiasmo. Ao contrário, lembra que a violência dos bombardeios que sofreu obrigou à sua rápida reconstrução. No entanto, um outro relevo se insinua quando se adentra sua área mais visceral.

Tudo nela é contemporâneo: o cabelo picado das mulheres que os cortam como penugens arrepiadas de pássaros, as mechas escuras encobertas pelo loiro quase branco. E também os grandes prédios, grandes obras projetadas no delírio: praças de aço bem abertas – Sony Center na Potsdamer Platz – saias onduladas de vidro, cobrindo e mostrando as vergonhas das estruturas nuas dos edifícios.

Nos tempos da cidade dividida, na Berlim do Leste, à arquitetura não se permitia a mais mínima fagulha onírica. Foi, quem sabe, em nome de uma resistência ao controle absoluto da estética – cuja força ainda hoje pesa sobre o visitante – que a cidade se reabriu para essa explosão de licença criativa.

Livre para projetar num campo urbano tumultuado, conjuntos de escritórios e um centro de conferências para o Deutsche Bank na Pariser Platz [2], a exuberância de Frank Gehry implanta ali uma obra irreverente: desconstrói-se a cerimônia circunspecta, a seriedade dos negócios, o mundo dos cálculos e dos lucros bem planejados. Quando apresentou suas maquetes de curvas complexas e sofisticadas tramas de vidro e metal, foi tomado por marciano.

De fato, evocando uma tanajura-rainha de fartas carnes de titânio, ou quem sabe, um óvni de cabeça impressionante mas com pernas um tanto finas para aterrissar, a obra ousada de Gehry testemunha essa abertura, essa veia que pulsa na cidade híbrida que o recebeu.

Pulsação, ainda, nos usos e costumes. O estranho, o exótico, o extravagante, circulam com liberdade e atrevidos, provocam a norma. Mistura de gêneros, figuras andróginas, compleições esquisitas, físicos que se alargam, se achatam, se alongam, afirmam proporções infinitas para os corpos. Sapatos de homem compondo com calças de menino, mulheres inteiramente escuras, ocultas, fechadas, mulheres inteiramente nude. Nude, rosadas, mas não apagadas. Definidos contornos chic-pele.

Um presente vibrante e arejado, no entanto, convive no paradoxo, com os dolorosos ferimentos do arbítrio que a cidade não esqueceu.

Berlim não se maquiou. Não há disfarces para a dor que conheceu. Em todo o seu corpo, cicatrizes avermelhadas, quelóides do totalitarismo, estão inscritas no asfalto, marcando os cortes de uma cidade esquartejada.

Mas, de antes ainda do final da guerra, do tempo anterior à negociação militar que lotearia a cidade, os arquivos, os editais, os documentos que registram a ascensão de Hitler e o terror nazista, lançam o visitante quase sem mediação, quase sem respiração, às narrativas da deportação e do Holocausto. Erguido no mesmo terreno das construções onde antes se alojava o quartel-general da Gestapo e SS – construções primeiro bombardeadas, posteriormente demolidas - o museu Topografia do Terror expõe toda essa grande documentação, exibindo os registros das formas mais infames do exercício do poder moderno: técnica, controle e vigilância para melhor exercer a violência, deixando desnudados os abusos e os privilégios de toda uma dominação. Na evolução de uma tecnologia da morte, o poder do arbítrio, legitimado pelos “gestores da vida e da sobrevivência da raça” (Foucault).

Nova cicatriz na Bebelplatz.

Ali, no centro da praça, uma laje de vidro deixa visíveis,, abaixo do solo, as estantes vazias de uma biblioteca, memória da grande queima de livros nos idos de 33. À noite, fachos de luz escapam do chão como fantasmas rondando as consciências, evocando o máximo mal.

Também o Holocaust – Mahnmal [3], obra projetada no meio de Berlim como sinistro cemitério, obriga à reflexão. Este lugar de compactas estruturas de pedra negra dispostas ao longo de corredores vazios, com seu piso inclinado que ondula e nos faz sentir afundar num certo desequilíbrio irreal, inquieta o visitante.

Essas lajes que podem ser bem baixas - então caminhamos lado a lado com um companheiro de visita - ou tão altas que, na passagem, fazem sumir uma pessoa, infundem um estranho sentimento: ocupado que está na busca de uma inscrição, uma data de nascimento, uma data de óbito, o visitante percebe num átimo, pela própria impressão deixada pela obra, a ausência, o nada, a história eliminada.

Ali, no espaço da arte que produz esse efeito, o que nos fisga é perceber o desaparecimento repentino de alguém que acabamos de ver, aspirado pelo labirinto dessas lápides escuras e irregulares. Alguém que esteve ali agora, já não está mais.

A história do extermínio agarra nossos corpos.

Se há sinistro, é pela condenação arbitrária ao desaparecimento, pela injunção ao silêncio. Queremos, rápido, encontrar as palavras.

Descemos ao subsolo.

Ali encontramos os nomes, os fatos, as fotos e todo o esforço descomunal para recuperar identidades confiscadas, histórias perdidas, a memória apagada. Imagens, flashes de imagens, textos, manuscritos, outra vez fotos, milhares.

Encontramos também lacunas, silêncio e breu. Lacunas escuras à espera... Aguardando um fragmento, um fiapo de vida, a lembrança de um ofício, um sobrenome. Um parentesco, uma geografia, a descrição de uma aldeia.

A mesma força em persistir na simbolização desse excesso irrepresentável, vamos encontrá-la uma vez mais no Jüdisches Museum [4].

Lembrando uma estrela de Davi explodida, tudo nesta obra nos revolve e silencia.

Ficamos, como num templo, calados, fazendo nossas preces, expostos às impressões corrosivas da violência mais abjeta.

No Jardim do Exílio, esse espaço frio com suas árvores de cimento que mais parecem lápides verticais, diante destas hastes um tanto oblíquas assentadas sobre um solo também fora de prumo, impõe-se um desconforto, uma vertigem, estamos fora do ar.

Somos, de imediato, abatidos por um golpe violento: a desorientação do exílio, o estrangeiro, o arrancamento, a devastação.

E ainda na Ala do Holocausto, uma luz que incide tênue sobre uma vala aberta contendo milhares de pequenas placas, redondas como rostos, jogados ali como coisas.

Aonde se vê a quentura da festa, perguntam?
Será o pudor que nos intimida na celebração?

Hoje, talvez seja possível um sentimento de alegria quando, com o passar do tempo, os estranhamentos entre os dois mundos, os sentimentos de caos e intrusão, venham sendo processados.

Porque há festa no encontro respeitoso do múltiplo, do diverso, no vigor das experimentações contemporâneas, na arquitetura, na arte, na cultura.

Hoje, já podemos nos perder numa cidade unificada, sem passagens controladas, com a fraternidade recomposta, a diferença libertada.

A quentura da festa está, entre outras coisas, nisso que João Ubaldo [5] descreve com graça, a propósito do interesse de seu filho em passar o dia todo na praça:

“Pai, estava todo mundo nu lá na Hochmeisterplatz! E também tinha duas moças se beijando na boca!”

Ali onde se amordaça o desejo, é ali mesmo onde ele volta com tudo.


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[1] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[2] Obra do arquiteto canadense, projetada entre 1996 e 1999.
[3] Holocaust-Mahnmal: projeto do arquiteto americano Peter Eisenman, o Memorial do Holocausto foi inaugurado em 2005.
[4] Jüdisches Museum: projeto do arquiteto Daniel Libeskind (1999).
[5] Ribeiro, João Ubaldo. Um brasileiro em Berlim. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.



 
 
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