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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    23 Novembro de 2012  
 
 
O MUNDO, HOJE

CINQUENTA TONS DE CINZA


SUZANNE ROBELL GALLO [1]


O livro Cinquenta Tons de Cinza, de E. L. James, está há doze semanas em primeiro lugar na lista dos mais vendidos. Fenômeno mais que intrigante! O livro é ruim do ponto de vista literário, o que não espanta tanto assim. O problema é que apresenta uma imagem degradada da mulher. Não moralmente, e sim literalmente degradada. Creio que descemos alguns degraus na escala evolutiva. Colegas, o que houve? Como é possível que esse livro esteja em primeiro lugar entre os best sellers???? Não sou moralista, sou a favor da total liberdade na alcova e fora dela. Mas há um fenômeno de massa em curso que exige nossa atenção de psicanalistas.

Freud, citando Le Bon, em Psicologia das Massas e Análise do Eu, escreve: “(....) pelo simples fato de pertencer a uma massa, o homem desce vários degraus na escala da civilização. (..)[ Le Bon se detém especialmente] na diminuição da capacidade intelectual, experimentada pelo indivíduo que se dissolve na massa”. E então Freud coloca uma nota de rodapé, na qual cita um verso de Schiller: “Cada um, olhado separadamente, é passavelmente arguto e sensato;/Se estão in corpore, logo se revelarão uns asnos”. Mais adiante, Freud nos conta que, se nos igualarmos a um mínimo denominador comum, temos alguma chance de escapar à ira do pai. Na mulher, nos diz o mestre, o supereu é um pouco menos severo, já que ela geralmente não se identifica ao pai no conflito edípico. A passividade masoquista da mulher é sucedânea da identificação com a mãe na luta pelo amor do pai. A heroína deste romance parece funcionar nesta dinâmica psíquica, tendo permanecido fixada nela. Pois é... tanta luta pela igualdade de direitos entre mulheres e homens, para acabar nesse livro!

Para quem ainda não sabe, e duvido que sejam muitos, o livro trata da relação repleta de fantasias e sexo sadomasoquistas entre Christian Grey e Anastasia Steele. Por um acaso do destino, como em todo conto de fadas, eles se conhecem e imediatamente rola uma química forte entre os dois. Ele, jovem executivo, milionário, dono de empresa lindo e poderoso. Ela, jovem recém formada, virgem. Ele, filho adotivo cuja mãe se suicidou depois de abusada pelo cafetão, que também abusava de Christian. Ela, louca pra trabalhar e de família relativamente normal de classe média americana. Christian vai seduzindo Anastasia, transformando-a em sua presa sexual. Além de ser estonteantemente bonito e sexualmente atraente, seu método de sedução consiste em presentear a parceira com um Blackberry, um MacBook Pro e um Audi. Ele vai indicando a Anastasia que gosta de dominar na cama e fora dela. Ela não resiste, fascinada, e entrega sua virgindade. Ele a deflora e passa a dominar cada movimento dela. O leitor (as leitoras...) acompanha passo a passo a dança do acasalamento a que eles se entregam, primeiro via mensagens de texto e e-mails, e depois na cama. Há um quarto chamado de o Quarto de Brincar. Lá estão todos os apetrechos para os jogos sadomasoquistas que tanto fascinam a protagonista e a massa ignara de leitoras (incluo-me entre elas). Uma das questões centrais do primeiro volume da saga (são três; por enquanto só li os dois primeiros) é um contrato que Christian elabora para Anastasia assinar; lá estão discriminadas as regras que definirão sua relação, quais sejam: ela deverá se alimentar de maneira saudável, frequentar uma academia de ginástica escolhida por ele, se vestir de acordo com os gostos do amante, que providenciará a entrega da roupa a domicílio. Além disso, ela deverá frequentar cabeleireiro (ele é dono de uma rede de cabeleireiros chamada Esclava) e esteticista. Há o contrato dos aspectos relativos ao intercurso sexual dos contratantes, o qual contém várias regras sadomasoquistas, incluindo a definição de uma palavra segura que permita que ela interrompa a atividade sádica dele, se isto estiver insuportável do ponto de vista da dor física e/ou moral. Ao final do primeiro volume, depois de espancada nas nádegas durante o intercurso, Anastasia fica muito magoada, devolve ao amado o Blackberry e o Macbook Pro (símbolo máximo do amor e do controle entre eles) e termina o namoro. No vol. 2 eles se reconciliam e ele lhe envia um Ipad junto com umas rosas, para re-atar. Aos poucos, os dois vão se apaixonando e o sexo vai ficando mais intensamente amoroso e menos intensamente sadomasoquista. Ela vai redimindo o príncipe de suas feridas de infância e ele a trata cada vez mais como um bebê. Não quer que a parceira trabalhe, mas já que ela o faz, Christian compra a empresa que a emprega, assim continua no lugar de dominador. Ele não suporta ser tocado. Só ele a toca. Aos poucos ela vai compreendendo isso. Eles até fazem algumas sessões de terapia em conjunto, com o analista dele, o qual explica a ela a origem infantil do lado escuro dele.

Para aquelas de nós que temos mais de 50 anos, a estrutura e qualidade literária do romance se assemelha muito ao folhetim Sabrina, que nos enchia de fantasia na adolescência.



É sadomasoquismo para donas de casa. Fantasia sexual água com açúcar. Pseudo pornografia travestida de literatura erótica. Onde foram parar obras como O Amante de Lady Chatterley? Onde estão Henry Miller, Anaïs Nin, o marquês de Sade, todos estes autores de literatura erótica de qualidade? Penso que a qualidade literária tende a evitar a degradação das massas. Tenho em mente o livro Pornopopéia, de Reinaldo Morais. O conteúdo é uma bobagem pornográfica, mas é magistralmente bem escrito. Romance épico de vernáculo e estilo impecáveis. Um prazer eróticoliterário.

O erotismo do narcisismo primário, nos diz Freud, pode se apresentar em qualquer uma das fases do desenvolvimento libidinal. Neste livro, vemos uma mulher fascinada por uma figura paterna dominadora. As leitoras parecem estar fascinadas por essa mesma figura. O homem/pai, acessível através de uma posição masoquista assumida por nós, mulheres, manipulável em seu desejo tirânico, está vendendo milhares de volumes. O homem todo poderoso, protagonista desse romance cheio de cenas intensamente eróticas (para algumas, para outras, nem tanto...), dá acesso ilimitado às fantasias de consumo de muitas mulheres. Christian Grey, o poderoso intocável, nos deixa febris.

Se Anastasia, a protagonista, fosse nossa paciente, pensaríamos talvez em masoquismo moral; pensaríamos em uma forte necessidade inconsciente de punição. A defloração dessa virgem acontece de maneira a que ela vá descobrindo o profundo prazer erógeno de todas as partes de seu corpo. Mas o que chama atenção é que ela se entrega ao domínio do outro. O que a excita é necessariamente algo de tortura. Até o final do segundo volume, mesmo sendo pedida em casamento como em qualquer conto de fadas, ela é uma princesa fetiche. Christian Grey a trata como objeto fetiche e é isso que a excita.

O que chama a atenção é o fenômeno de massa que mantém esse livro no topo dos mais vendidos. Penso que talvez o sucesso de vendas se deva a uma reação ao politicamente correto. O politicamente correto tenta eliminar as diferenças; de algum modo, elimina tensão libidinal. O politicamente correto está se tornando insuportável para o psiquismo contemporâneo. Talvez isso explique, em parte, que depois do movimento feminista, de todos os ganhos de igualdade de direitos que as mulheres conseguiram, este livro faça tanto sucesso. Será que as mulheres sonham em se permitir o acesso aos aspectos masoquistas do personagem feminino? Escutei várias leitoras expressarem o desejo de ter um homem que as domine sexual e moralmente, como Christian Grey domina Anastasia Steele.

O prazer erótico que Anastasia vive, literalmente, em todas as posições sexuais, nos remete ao masoquismo erógeno. Isso não é patológico, Freud diz que este tipo de masoquismo pode se manifestar em qualquer uma das fases do desenvolvimento libidinal. Mas o fenômeno de massas me faz pensar mais numa espécie de masoquismo moral coletivo, o qual talvez esteja até se manifestando num certo prazer na queixa constante das mulheres em ter que ser TUDO: mãe, amante, profissional, etc.

O fenômeno de massa suscitado por este livro não sugere que as mulheres desejem uma relação sadomasoquista, mas sim que elas estejam profundamente cansadas do trabalho que tiveram para chegar aonde chegaram. Cansaço do trabalho de sair da tutela do pai, em suas mais variadas manifestações. Christian Grey, para minha consternação, veio nos libertar do jugo de sermos nós mesmas. Não da mesma maneira que as pacientes histéricas do final do século XlX, ou a personagem lady Chatterley (lembram? aquela senhora da alta burguesia que descobre um orgasmo estonteante com o jardineiro...), ou Anaïs Nin (que escrevia literatura pornográfica, junto com outros intelectuais dos anos 50, sob encomenda, para um milionário que lhes pagava regiamente), ou Clarice Lispector, Isabel Allende e tantas outras que o fizeram. Agora, depois de tudo que conquistamos graças a mulheres como estas, passamos a observar a venda de milhares de exemplares de um livro que nos mostra infantis, privilegiando o masoquismo secundário, pulsão de morte reintrojetada, em massa. Acontece que, como já dizia Le Bon, isso diminui nossa inteligência. De que Ideal de eu se trata agora? Parece que nos cansamos de nossos próprios pensamentos de mulher. Mas o que fazer? Se os pensamentos que surgem na nossa cabeça ao bordar fazem mal à saúde e os pensamentos que nos permitiram resolver a submissão aos princípios patriarcais estão nos deixando fisicamente exaustas, o que fazer? Histeria, anorexia, fibromialgia, academia (qual? a de ginástica ou a que acolhe nossos pensamentos?). Que diria Virginia Woolf, que tanto lutou por termos um quarto todo nosso, se ela soubesse que há um best seller no mundo civilizado em que uma mulher se submete a ser atada à cama do quarto de infância de seu homem? E Clarice Lispector - o que ela diria se soubesse que há um best seller em que o personagem masculino compra os locais de trabalho de sua amada para ter absoluto controle sobre ela? Cinquenta Tons de Cinza como fenômeno de massa é uma válvula de escape para que possamos nos tornar menininhas enquanto lemos. Não mulheres em plena posse de seu corpo e de seu pensar, mas sim atadas ao seu masoquismo secundário, à saudade de um tempo que nunca houve. Se nós analistas pudermos ter isto em mente, talvez possamos suportar melhor as fibromialgias, anorexias, depressões, pânicos e queixumes que cobram de nós a posição analítica. Mulheres exauridas pelo preço que o pensar cobra ao corpo. Houve uma necessária dissociação (ginástica, contracepção, fertilização in vitro, botox) que agora cobra seu preço nos corpos dilacerados pelos regimes, pelas depressões e somatizações. Agora, Christian Grey vem nos redimir de nós mesmas. De que conflito edípico tratamos na cultura?

Queremos erotismo narcísico (existe outro tipo?). Perguntem a Anastasia Steele! Ela é aquela entre nós que foi escolhida pelo príncipe encantado moderno: ela não precisa mais pensar em nada, é a mulher bebê - sua Majestade -, aquela que ainda não teve de ser histérica, aquela que ainda não se reconhece no espelho (em vários momentos do livro, a personagem se olha no espelho e não reconhece a mulher que vê refletida nele), virgem de pensamentos, cheia de princípios politicamente corretos e que é abalroada por um erotismo mortífero, sucessor dos transtornos alimentares. Christian obriga Anastasia a comer, sempre lhe pergunta se já comeu, como se nos sugerisse uma passagem saudável - da anorexia ao masoquismo. Nada comparado à sofisticação de Afrodita, em que Isabel Allende junta sexo e comida - aqui tudo se come meio cru. As preliminares são o choro de um bebê que está com fome, ou com a fralda molhada, ou com dor de barriga.

Christian não se deixa tocar. Seria um capítulo à parte, a dor que os homens sentem depois de tudo que nós, mulheres, conseguimos. Diz-se que eles estão meio pasmos, perdidos. Talvez estejam simplesmente doloridos de saudade das mulheres que tenham um corpo. É isso que vai acontecendo no romance: um casal sexualmente sadomasoquista se transforma em casal apaixonado. O amor surge entre dominador e dominada. A libido é desviada lentamente de sua meta, transformando-se em amor. O resultado dessa fórmula é a venda de milhares de exemplares do romance. No quarto de infância, numa festa na casa dos pais dele, agora ele bate nela de novo - eles tinham combinado que não mais o fariam, mas agora os dois querem. Não é mais no quarto vermelho das ferramentas para sexo sadomasoquista. Agora é literalmente no quarto de menino de Christian, local onde eles sentem uma vontade irrefreável de sexo caliente. E, diga-se de passagem, sempre, no meio de qualquer das dezenas de cenas onde há penetração, a camisinha é invariavelmente mencionada. Eles sempre usam camisinha. Sexo sadomasoquista seguro? Como isso é possível? Pois é possível, as mulheres lêem, ávidas. Desejo de voltar a se submeter ao pai? De funcionar apenas num modelo identificatório da libido? Será o fetichismo a única via que as mulheres vislumbram para o repouso da guerreira? Será esse livro um objeto fetiche? Será a relação sadomasoquista a que redimirá de vez o corpo torturado pela fome de prazer? Ou simplesmente mais uma forma daquilo que já observamos nos transtornos alimentares - mais uma manifestação da pulsão de morte?

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[1] Suzanne Robell Gallo é mestre em psicologia clínica pela PUC-SP, ex-aluna do Curso de Psicanálise e aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.




 
 
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