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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    24 Abril 2013  
 
 
NOTÍCIAS DO SEDES

UM FÓRUM SOBRE A CRACOLÂNDIA


CRISTINA BARCZINSKI [1]


No dia 14 de março ocorreu no Sedes uma primeira reunião convocada pela Diretoria para montar o Fórum aberto para discussão das ações oficiais na cracolândia e pensar sobre propostas alternativas para lidar com a questão (carta convite).

O encontro foi coordenado por Maria Laurinda Ribeiro de Souza e Vera Warchavchik [2] e a ele compareceram profissionais ligados aos diferentes cursos e Departamentos do Sedes e a instituições da rede pública - Secretaria Municipal da Saúde, CAPS, CAPS AD, PSF - assim como a ONGs que trabalham com moradores de rua. Foram relatadas várias experiências e os efeitos desagregadores provocados pelas mudanças recentes nas políticas adotadas no atendimento destas unidades, com prevalência de um modelo médico que advoga a internação compulsória [3] e que apresenta total ausência de debate coletivo das estratégias adotadas. A reflexão trazida pela Reforma Psiquiátrica encontra-se praticamente ausente destes espaços e mesmo aqueles centros que funcionavam como pólos de excelência em pesquisa encontram-se esvaziados.

Durante a reunião, vários profissionais ressaltaram a especificidade da abordagem à população de rua [4], a dificuldade em estabelecer uma relação de confiança, trabalho que vem sendo sistematicamente minado pelo fato de a política adotada atualmente pela Secretaria Estadual de Saúde se limitar a fazer um “manejo de corpos” destes pacientes, no lugar de atendê-los enquanto sujeitos. A tentativa de prevalência do ato médico [5] e de judicialização dos cuidados incide também no aumento do número de pedidos de internação por parte das próprias famílias e no desmonte de outras iniciativas, entre elas o trabalho com a redução de danos [6]. Este é um processo complexo e que exige capacitação de profissionais, inclusive para trabalhar com resolução de conflitos domésticos e, assim, envolver os familiares. Uma das participantes do encontro afirmou que, ao invés de tirá-la à força das ruas, o trabalho com a população de rua deveria, antes de mais nada, buscar a "construção de uma morada psíquica".

Laurinda ressaltou que a história do Instituto Sedes está fortemente marcada pelas lutas políticas em favor da democracia e sempre foi um espaço onde se defenderam práticas inovadoras na formação dos profissionais que trabalham no atendimento à população. Relembrou a vinda de Franco Basaglia [7] ao Sedes, no final da década de 70, momento em que se discutiam intensamente as ideias da antipsiquiatria, e a sua resposta à pergunta sobre seu ataque às internações psiquiátricas. Basaglia foi categórico: as internações são necessárias em alguns casos, mas sua indicação deveria ocorrer com frequência muito mais baixa do que a que regularmente se pratica.

Ao longo do encontro, observou-se que, no caso de São Paulo, a retomada da política de internação dos usuários de drogas em detrimento de outras práticas acaba por provocar um sequestro de vagas de pacientes graves, cenário que agrava-se ainda mais pela falta de diálogo entre os diferentes setores. Em relação à região central, atribuiu-se a urgência do governo estadual em retirar a população das ruas ao grande valor imobiliário da região. O financiamento das comunidades terapêuticas pelo SUS foi outro ponto criticado, pois estas não possuem competência técnica para atender os pacientes e frequentemente limitam-se a propor uma concepção puramente religiosa do trabalho com usuários de drogas.

Os presentes, de modo geral, mostraram-se esperançosos em relação à política municipal na área [8] e ressaltaram a importância do Sedes no fortalecimento de propostas que possam combater o atual afastamento do estado de São Paulo em relação às políticas públicas de Saúde Mental. Houve no encontro uma participação implicada com o desejo de partilhar as diferentes experiências que estão sendo feitas e que se contrapõem à ideia da internação compulsória. Esta surge na continuidade de uma fragmentação crescente nos últimos anos e no desmonte de várias equipes, projetos de trabalho e do SUS. Vários participantes declararam que esta situação os convoca, acima de tudo, enquanto cidadãos, não só enquanto psicanalistas.

Ao final desta reunião, ficou decidido que o grupo volta a se encontrar no dia 18 de abril para formular maneiras de marcar posição e ocupar espaços coletivos, tornando mais clara a existência de um pensamento crítico dentro da instituição.

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[1] Psicanalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise e da equipe editorial deste Boletim.

[2] Maria Laurinda Ribeiro de Souza, membro do Departamento de Psicanálise e Vera Warchavchik, membro do Departamento Formação em Psicanálise, fazem parte da Diretoria 2013-2015 do Instituto Sedes Sapientiae.

[3] Existem basicamente três tipos de internação psiquiátrica. A internação voluntária é aquela que o próprio paciente solicita; a involuntária é pedida pelos familiares, com aprovação do médico psiquiatra e consulta ao Ministério Público dentro de 72 horas; já a internação compulsória não necessita a aprovação da família, é pedida por um juiz, em seguida a um pedido formal de um médico que ateste a incapacidade do paciente de cuidar de si – trata-se da chamada judicialização da saúde.

[4] A questão da política voltada para a população de rua foi abordada em dois artigos do Boletim Online de 2012: “7º Vamos falar de Saúde Mental”, de Denise Cardellini, edição n. 21, e “Clínica das ruas, clínica na rua” , de Thiago Majolo, edição n. 22.

[5] O ato médico (PLS 268/2002) consiste num projeto de lei que trata da regulamentação do exercício da medicina, e que foi aprovado em dezembro de 2012 no Senado Federal. Neste projeto consta que o diagnóstico e indicação de tratamento na área da saúde são exclusividade dos médicos. Este projeto vem sendo discutido há mais de dez anos e, com o protesto de várias outras categorias profissionais, acabou sofrendo algumas modificações, embora tenha sido mantido em sua essência. Segundo este projeto, a chefia de serviços de saúde, por exemplo, deve ser privilégio de médicos, embora o SUS advogue a descentralização do serviço. O CFP divulgou um manifesto contrário ao ato médico, consultar http://www.naoaoatomedico.org.br/audio/manifesto_ato_medico_091215.pdf

[6] Redução de danos envolve uma política e uma prática voltadas para o usuário de drogas, no sentido de ajudá-lo a cuidar de si, descriminalizando o consumo e prevenindo novos problemas de saúde, sem impor a abstinência como condição para o tratamento. A primeira experiência brasileira se deu em Santos em 1989 através da distribuição de seringas descartáveis entre a população de usuários de drogas injetáveis , com o objetivo de reduzir os altos índices de contaminação do vírus HIV. Em 1995, o Ministério da Saúde adotou o PRD (Programa de redução de danos) em parceria com universidades, voltada para populações vulneráveis. “Os componentes de um PRD variam de acordo com as diferentes realidades: epidemiológica, padrão de consumo, tipo de droga relevante, diferente formação de equipe etc. No Brasil as principais atividades desenvolvidas são: disponibilidade de equipamento estéril e descartável para injeção, informação, disponibilização de material informativo, disponibilização de preservativos, aconselhamento, encaminhamento aos serviços de saúde e assistência social, vacinação contra hepatite B, ações de advocacy (advogar em favor de uma causa) e comunicação social, vigilância epidemiológica, formação continuada de agentes redutores de danos (agentes treinados que efetivam as ações de campo com os usuários de drogas e suas redes de interface), seguidos de avaliações sistemáticas das ações citadas”. (fonte: http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/rdchristianedeisi.pdf). Para ter acesso à posição oficial da Associação Internacional de Redução de Danos (IHRA), o leitor pode consultar http://www.ihra.net/files/2010/06/01/Briefing_what_is_HR_Portuguese.pdf.

[7] Franco Basaglia (1924-1980) foi um psiquiatra italiano que revolucionou a concepção de cuidado ao doente mental, propondo a extinção dos manicômios, - o que foi levado a cabo em Trieste nos anos 70 -, e a criação de novos dispositivos como cooperativas de trabalho, ateliês de arte, residências assistidas, entre outros. Ele acreditava que a institucionalização implica na negação da subjetividade do paciente, ao colocar o foco na doença. Basaglia esteve no Brasil em 1978 e 1979, para dar conferências, ocasião em que visitou alguns manicômios no Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, criticando asperamente um deles, que comparou a “um campo de concentração nazista”. Sua passagem pelo país fortaleceu a luta antimanicomial brasileira. (fontes: http://www2.uol.com.br/vivermente/reportagens/rumo_ao_fim_dos_manicomios.html e http://www.encontro2011.abrapso.org.br/trabalho/view?ID_TRABALHO=1084)

[8] No entanto, surgem alguns sinais contraditórios no horizonte, como a notícia veiculada pelo jornal Estado de São Paulo de 3/4/2013 sobre a criação da “UTI do crack”, serviço da Prefeitura de São Paulo e comandado pelo psiquiatra Ronaldo Laranjeira, com foco na internação compulsória. Este serviço está sendo montado em parceria com a organização social Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (Unifesp) e se localiza em Heliópolis, região sul da cidade.




 
 
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