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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    24 Abril 2013  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

SOBRE O CAPS ITAPEVA


Daniela Figueiredo Canguçu [1]
Cláudia Beltran do Valle [2]


Em função dos recentes acontecimentos no CAPS Professor Luís da Rocha Cerqueira (também conhecido como CAPS Itapeva), gostaríamos de esclarecer resumidamente alguns pressupostos norteadores do nosso trabalho, resultado de discussões com parte dos técnicos da equipe.

Destacamos que tanto o ideário da Reforma Psiquiátrica quanto a escuta pautada pela Psicanálise consideram que trabalhamos com a existência de sujeitos, em sua maioria, psicóticos. E não com a doença, numa contraposição à concepção biomédica que reduz a psicose a uma negatividade. Ou seja, a prática cotidiana se norteia pela criação de possibilidades para que o sujeito advenha, para que o psicótico possa se colocar na vida como sujeito. Para tanto, acolher o seu discurso como verdade, implicá-lo e fazê-lo responsável, sempre que possível, tendo em vista a criação de laços sociais.Tal perspectiva é indissociável das noções de território como organizador do modelo e do estabelecimento de redes de atenção, tanto quanto, internamente, da organização essencialmente coletiva e transdisciplinar do trabalho da equipe. Já o modelo biomédico, centrado na doença e na remissão de sintomas, tendo por objeto a patologia (opção visível na denominação “portadores de esquizofrenia”, por exemplo) convida à demissão subjetiva.

Nesse sentido, esse texto objetiva divulgar, de forma breve, a situação do CAPS Itapeva e suas repercussões para a instituição, para a clínica, para a equipe e para os usuários. A situação é um tanto complexa e algumas páginas não são suficientes para dar conta da questão maior que nos atravessa e que, por sua vez, mantém relação direta com o enfraquecimento do SUS e da privatização da Saúde que temos acompanhado há alguns anos na cidade de São Paulo. Entretanto, vamos nos deter na situação específica deste equipamento; certamente, o impacto maior foi a demissão de vários profissionais que compunham as equipes, que abalou tanto os profissionais quanto os usuários e familiares. Nossa iniciativa de compartilhar algo que tem nos afligido e nos angustiado para além das demissões (que não foram menos importantes) adveio da necessidade de denunciar a desmontagem que vem ocorrendo no CAPS Itapeva ao longo de alguns anos, e talvez, agora, numa intensidade maior.

Os procedimentos que descaracterizam um CAPS foram implantados pelo gestor – diga-se de passagem, pouco ambientado às peculiaridades desta clínica e à própria ideia de construção coletiva. Inclusive, alguns procedimentos (por exemplo, grupos centrados na não adesão ao tratamento medicamentoso, organizados por diagnóstico, ou seja, tendo a doença como foco) não foram para frente justamente porque a equipe se posicionou frontalmente e, de certa forma, impediu a implementação de algumas ações que descaracterizariam esta modalidade de fazer clínica. Sendo assim, esta desmontagem não começa com as demissões; elas foram apenas uma expressão desta e, em certa medida, uma consequência para alguns funcionários que foram desligados do serviço abruptamente porque se opuseram ao pensamento biomédico encarnado por esta administração. Em outras palavras, foi o preço que alguns, infelizmente, tiveram que pagar por não adotarem no fluxo de seus trabalhos uma perspectiva psiquiatrizante, por não recuarem diante de ameaças e, principalmente, por acreditarem que a dimensão clínica não é desvinculada da dimensão política. A militância não é algo que se faz apenas em grandes passeatas ou manifestações, ela é exercida cotidianamente, não apenas nos grandes atos, mas nas minúcias, já que está sobremaneira nos pequenos gestos, quando, por exemplo, somos impelidos a posicionarmos e defendermos aquilo que acreditamos, que desejamos!

A partir de nossa experiência no CAPS Itapeva, temos verificado que o atual modelo de terceirização da saúde para as OSSs facilita o gerenciamento autoritário e arbitrário, sem controles externos ou conselhos gestores, na maioria dos casos.

Lembremos: o CAPS Itapeva foi fundado no momento que a Reforma Psiquiátrica estava a todo vapor. Foi uma experiência de clínica ampliada que ocorreu amparada por diversos saberes, vivida com entusiasmo por aqueles que, naquele momento, construíam o equipamento e suas balizas. As experiências da Clínica de La Borde na França, da desinstitucionalização italiana e de Setúbal, em Portugal, serviram como inspirações para o CAPS Itapeva, que, desde o seu surgimento, esteve empenhado em acompanhar pessoas com quadros mentais graves, como nos conta Jairo Goldberg em seu livro Clínica da psicose: um projeto na rede pública. Para falar do projeto CAPS, mesmo ainda embrionário para os seus fundadores, o autor descreve outras experiências que antecederam o projeto deste CAPS, apontando para os limites do modelo ambulatorial-hospitalar para o cuidado com as psicoses. A errância da psicose escapava ao modelo ambulatorial e, uma vez feita esta constatação, experimentou-se um modelo institucional que pudesse acolher a loucura, sem aprisioná-la, sem domesticá-la e sem normatizá-la. Daí o tratamento não poderia se restringir à inibição ou retirada do sintoma, como a psiquiatria tradicional exercia o seu ofício nas instituições até então.

Este modo de conceber o sofrimento psíquico e a própria concepção de tratamento, a nosso ver, mantém uma proximidade com a Psicanálise que entende a loucura como um fenômeno do sujeito. Para Lacan, a psicose não é um simples déficit dos aparelhos do corpo, mas uma estrutura clínica. Uma estrutura, diferente (e não melhor ou pior) da neurose “que se revela no dizer do sujeito e que corresponde a um modo particular de articulação dos registros do real, simbólico e imaginário” (Quinet, 2009, p.3). Mas, assim como na neurose, é uma estrutura da linguagem; tratando-se, pois, da relação do sujeito com o significante.

Por isso, partilhamos com os inventores da psicoterapia institucional que a instituição deve fomentar os espaços de dizer e não de interditos. Deve, portanto, ser um lugar, ou constituir lugares diferentes, em que os pacientes vão endereçar os seus significantes na busca de construção ou restituição do laço social. Esta possibilidade de restituição promove, por exemplo, uma atenuação dos fenômenos corporais e invasivos típicos da esquizofrenia, favorecida, em alguns casos, pela construção delirante, derivando na estabilização dos sujeitos psicóticos. Tal concepção de cuidado que não pretende “consertar os loucos” nem tampouco fazer desaparecer a loucura do ambiente institucional ou silenciá-la, mas, ao contrário disso, que ambiciona que o louco possa se inserir em um discurso (social), corresponde a uma postura ética.

O que temos visto no CAPS ao longo destes anos é o progressivo retorno do modelo biomédico, verificável em vários procedimentos protocolares e em vários aspectos da organização do serviço, já que a clínica com pacientes graves - que se pauta no vínculo, no protagonismo do usuário e na possibilidade de retomada do laço social - não é prioritária, nem a construção coletiva do serviço em que todos, de algum modo, participam.

A gestão é claramente centralizada na figura do médico e tal aspecto já impossibilita a ocorrência de um serviço que se ocupa da vida dos sujeitos em aflição. É válido repetir: que se ocupa da vida, da existência, do sofrimento e não da doença. Para tanto, o diretor técnico na concepção desta OSS – e isso não ocorre apenas no CAPS -, é sempre um médico e o diretor clínico também. Além destes, há uma direção de enfermagem, que centraliza tudo o que diz respeito à equipe de enfermagem, contribuindo para maior fragmentação da equipe, pois o que se decide coletivamente não se aplica a este grupo. O isolamento progressivo dos enfermeiros, técnicos e auxiliares é um dos fatores que comprometem a construção de uma equipe multiprofissional em Saúde Mental, que é uma das prioridades de um CAPS.

Se o CAPS é um projeto que deve conjugar num mesmo espaço o tratamento e reabilitação, como propôs Jairo Goldberg em seus primórdios, é porque ele deve ofertar condições terapêuticas outras que não se encontram no hospital nem no ambulatório. Vale lembrar que os dispositivos de um CAPS são muitos e devem ser variados. Como pensa os animadores da psicoterapia institucional francesa, a ideia é que, na instituição, possam acontecer várias instituições. Essa multiplicidade parece está sustentada, como defende Jean Oury (1995), fundador da Clínica de La Borde, pela ideia de multirreferencialidade da transferência, e, conseqüentemente, do espaço de tratamento (MOURA, 2003).

Disto resulta que a transferência no psicótico só pode se fazer sobre uma multiplicidade de pontos: pessoas, lugares, coisas, linguagens, hábitos. Ora, essa multiplicidade de pontos de transferência necessita da presença de várias pessoas e de diferentes lugares (OURY, 1995, p. 96).

E o que deve haver de comum entre toda essa multiplicidade é o exercício da clínica, concebida por nós, não como mera remissão de sintomas, muito menos como normalização.

Uma vez atravessados por esta prerrogativa, os profissionais no exercício de seu trabalho cotidiano no CAPS, consideravam o contexto institucional, incluindo, por sua vez, os usuários em quaisquer condições que tivessem – sociais, econômicas, culturais, etc. -, nas decisões e na configuração das atividades terapêuticas que compunham a grade do serviço. Este modo de operar é consonante com as perspectivas de empoderamento dos usuários e, em qualquer tipo de abordagem terapêutica que se tenha, investia-se, sobretudo, na implicação dos sujeitos em seus projetos de tratamento, sempre singulares, e, igualmente, em seus itinerários para além do CAPS. A saída dos profissionais acarretou na interrupção de muitos grupos, várias ações e projetos foram desmantelados. Citaremos alguns deles:

Diversos grupos de psicoterapia (alguns destes existentes há muitos anos) e que se tornaram uma referência para casos graves, porém, estáveis. Grupo de terapia ocupacional - ou de atividades - que também tinha função de referência e que agregava, em sua maioria, pacientes crônicos. Além destes grupos fechados, vários grupos abertos foram também interrompidos (grupos abertos a todos os pacientes sem restrição, chamados grupos de acolhimento). Também grupos que funcionavam de modo semelhante a oficinas deixaram de acontecer, como é o caso do Ateliê Aberto (que trabalhava com proposições artísticas) e os grupos de Biblioteca (cujo foco era a leitura de textos literários ou jornalísticos – escolhidos pelos participantes - que desencadeassem um debate coletivo) e, por fim, o grupo de escrita, que tinha como finalidade a produção de textos pelos usuários.

Apesar do fechamento deste grupos ter proporcionado, de forma concreta e significativa, uma desmontagem da clínica do CAPS, como já dito, este processo já havia se instaurado anteriormente como parte da política desta gestão. Temos, como exemplos principais, a remoção da Associação Franco Basaglia (associação de usuários, familiares e amigos da instituição) e o fechamento dos projetos de geração de renda: a marcenaria A Ponte e a Lanchonete Café da Gente, ambos quase tão antigos quanto a existência deste CAPS.

Parece-nos que este desmonte tem uma finalidade precisa: desarticular o CAPS, sucateá-lo para mostrar que é um projeto que entrou em falência e, assim, justificar a implantação de uma outra coisa. Infelizmente o projeto SUS, ainda que constitucional, é contra-hegemônico.

Assim, sem muitos esforços, nos parece que este projeto de gestão reduz a possibilidade de valorização e articulação de outros saberes, como supõe um CAPS.

Desse modo, assistimos uma enorme contradição que pode ser assim explicitada: como uma gestão que se dispõe a dirigir um equipamento desta natureza não admite os impasses da clínica, a desordem, a loucura, a dissociação na transferência tal como ocorre na psicose? Parece-nos que não é separando os “doentes” dos “sãos”, nem colocando o conflito porta afora. O Alienista está de volta - contudo, sem a inteligência e a beleza do personagem e da escrita de Machado de Assis.

Referências bibliográficas:

GOLDBERG, J. I. Clínica da psicose: um projeto na rede pública. Rio de Janeiro: Te Corá/Instituto Franco Basaglia, 1996.

QUINET, A. Teoria e clínica da psicose. Rio de janeiro: Forense Universitária, 2009.

MOURA, A. H. A psicoterapia institucional e o clube dos saberes. São Paulo: Hucitec, 2003.

OURY, J. O coletivo. Trad. Antoine Mérnard, Clara Novaes, Karina Soares Montmasson, Maíra Uehbe Dubena. São Paulo: Hucitec, 2009.



SOBRE AS DEMISSÕES NO CAPS LUÍS CERQUEIRA



EQUIPE DO BOLETIM ONLINE



Postado no Facebook por Silvio Yasui:

A respeito das demissões no CAPS Luis Cerqueira

Hesitei em comentar mais esta triste notícia. Não reconheço mais o CAPS há muito tempo. Virou até CAPS Itapeva. Para nós que lá trabalhamos sempre será CAPS Luís Cerqueira, para manter viva a homenagem a este importante psiquiatra social. Esta notícia é mais uma pedra a enterrar o pouco ou nada que restava da potência criativa daquele lugar. Ele foi um marco inaugural do cuidado. O melhor lugar que trabalhei em toda minha vida. A equipe mais forte, potente e afetiva com que tive o prazer de compartilhar um cotidiano de construção e desafios. Depois de um dia de trabalho, ainda arranjávamos tempo para uma partida de vôlei na casa da Silvia Fernandes. Pouco a pouco as pessoas foram saindo, mas a potência continuou nos que ficaram. Até que o modo hegemônico de pensar o sofrimento psíquico e a loucura tomou o poder administrativo e gerencial. Acompanhei de perto/longe os embates. Vi o trabalho sendo desfigurado em nome de uma psiquiatria de orientação claramente biológica. E agora, neste governo estadual conservador e retrógrado, mais interessado em abrir leitos psiquiátricos do que em montar uma potente rede de cuidados, vemos um gesto de desmonte. Talvez seja mesmo o tempo do CAPS Luís Cerqueira morrer. Morre a instituição. Não morre seu ideário, sua história, as marcas que produziu nas pessoas que passaram por lá. Não morre a força potente de criação que de lá emanou e inspirou e inspira a política de saúde mental. Que a instituição morra nas mãos destes carrascos obesos de fármacos e caretas de ideias. E que sobreviva nesta alma guerreira, guerrilheira e militante que contagia gerações.
Morra o CAPS sem a alma militante da reforma!
VIVA o CAPS Luís Cerqueira!

 

Silvio Yasui

 



Ana Pitta também desabafou:
Renascer das cinzas?
O CAPS Itapeva está morto!
Condolências!
Talvez com esse nome, que repete o da cidade homônima que mais legitimamente pode ostentar o nome de um defunto anunciado há algum tempo.
Descaracterizado, transformado em um simples ambulatório de programas específicos, recusando a missão de “tomar a si a responsabilidade de cuidar” diuturnamente da psicose, do sofrimento de usuários e suas famílias, no território.
Agonizava de sentido enquanto ia se perdendo numa estratégia potente de esvaziar um modelo de atenção que se mostrava eficiente no estado, no país, no mundo. O dinheiro público financiou seu desmonte sem se preocupar em lhe dar potência para enfrentar a inércia hospitalocêntrica, manicomializante, de exclusão e invalidação social justaposta. O governo Alckmin, uma OS somente preocupada com a sua fatia do erário público loteado, uma universidade cúmplice, deram-lhe a extrema-unção!
Toda a minha solidariedade aos que lutaram para ser diferente!
O CAPS Luís Cerqueira vive!
Esperança e ira!
“Para nós que lá trabalhamos sempre será CAPS Luís Cerqueira, para manter viva a homenagem a este importante psiquiatra social”... “que bem representava a potência criativa daquele lugar”. Silvio Yasui falou por todos! Ele foi sim o “marco inaugural do cuidado” digno, plural, de inclusão afetiva, política e social dos que ali buscavam atenção ou amparo ao seu sofrimento. “O melhor lugar que trabalhei em toda minha vida... a equipe mais forte, potente e afetiva com que tive o prazer de compartilhar um cotidiano de construção e desafios”. Também aqui é o mesmo sentimento compartilhado desde o ato da sua criação, quando designada por Montoro, Yunes e Marcos Ferraz fui incumbida de coordenar o grupo que formulou um modelo e deu um destino ao belo casarão que abrigou a antiga Divisão de Ambulatórios. De março de 1987 para frente, Jairo Goldberg, Sandra, Jonas, Silvio, Silvia, Videira, Nerse, Regina, Sonia, Ana, Fernanda, Bete, Geraldo, D. Vera, Raimundo e tantos outros foram dando vida e forma ao que se tornou lei federal, política pública. Mudança paradigmática do enclausurar para o cuidar em liberdade!
Testemunhei décadas de lutas pela dignidade do cuidado psiquiátrico, na saúde mental, na reabilitação psicossocial, no uso de substâncias psicoativas, do movimento de usuários, familiares.
Observo agora um retorno ao primitivo sem que avaliações criteriosas estejam sendo feitas.
É para isso que serve a democracia?
Seguramente não, e como Fênix há que ressurgir das cinzas o reconhecimento pela vida e trabalho de quantos se dedicaram à construção de modelos inovadores e humanos de cuidar. Então, serão essas as experiências instituídas!

Um forte e solidário abraço aos companheiros de todos os tempos,

 

Ana Pitta
Psiquiatra, supervisora, companheira, testemunha
CAPS Luis da Rocha Cerqueira, Rua Itapeva 700, Bela Vista, SP

 



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[1] Terapeuta Ocupacional e Psicanalista.
[2] Psiquiatra e Psicanalista.



 
 
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