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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    26 Setembro 2013  
 
 
ARTE

CARMELA GROSS E VARIADAS “MUTAÇÕES DO CATIVEIRO”[1]


GUSTAVO H. DIONÍSIO[2]



O ônibus-conceito Carne, de Carmela Gross (1946 – ), foi concebido para integrar o projeto Arte Passageira do setor educativo do Centro Universitário Maria Antonia. Desenvolvido pela artista sob encomenda, de antemão Carne responde ao objetivo inicial do projeto, que consiste em levar atividades em arte-educação a escolas públicas da cidade de São Paulo. O ônibus de Carmela, que originalmente era um Circular da USP, recebeu intervenção da artista com a colaboração de assistentes e estagiários envolvidos no projeto. O veículo, no caso, foi completamente coberto de adesivos em tonalidade vermelha, dando a ilusão de ser uma espécie de pintura ambulante, andando portanto no fio da navalha da artisticidade, aspecto que não é sem importância. E ademais, o ônibus recebeu um letreiro peculiar, detalhe que é qualquer coisa menos anódino: ali onde viriam as informações como nome e número da linha (ou a rota que o Circular costuma fazer), Carmela instalou a palavra CARNE por meio de um piscante amarelo. Estamos em 2006.






Nada é mais urbano. O ônibus, talvez um símbolo (da gravidade) do transporte nas grandes cidades, serve aqui como suporte de obra a ilustrar uma dada situação, visando oferecer ao espectador o questionamento sobre o problema cada vez mais atual: Rosa Iavelberg, no catálogo publicado especialmente para este do trabalho, sugere que ali Carmela teria gerado “um objeto que reflete o absurdo cotidiano dos que vivem ‘coisificados’ na cidade” (2006, s/p.). Ora, seria mesmo esta a principal discussão proposta pela artista? Em parte, certamente; contudo, com toda a vermelhidão de Carne ela também não desejaria mostrar que, na condição cada vez mais precária em que vivemos nas (grandes) cidades, esta coisa que se carrega no interior dos ônibus não passa de... um pedaço de carne?

Recobrir o objeto é apropriar-se dele, declara Lorenzo Mammì (2006), e assim o ônibus que serviu de suporte à obra se vê encapado de adesivos vermelhos, tons conquistados pela sobre-aplicação das fitas, tal como costumam fazer as crianças com os seus cadernos – ou seja, justamente para se apropriarem deles. Cabe verificar que o veículo foi totalmente tomado pela cor, não sobra um espacinho sequer da pintura original. Sim, ele está protegido. Contudo, este excesso de proteção expõe, paradoxalmente, outra discussão fundamental, a saber: a vulnerabilidade disso que costumeiramente chamamos de carne. Ora, vulnerabilidade e carne caminham, aqui, de mãos dadas, porque não é de um corpo (erógeno) que a obra está falando, mas daquilo que vem antes, daquilo que está mais perto da origem mesma da coisa, isto é, a carne que reside por debaixo da pele. Com efeito, não é um corpo o que está aí representado, mas a sua carne antes de se tornar subjetividade.

Da tensão que vai da carne ao corpo erógeno e retorna, e para então retomar o cerne do argumento de Carmela, vejamos o que escreve Lorenzo Mammì:
“Os meios de transporte costumam ser recobertos por cores frias, brilhantes e esmaltadas, que dêem a impressão de deslizar no espaço sem resistências ou asperezas; cores duras, que cortem o ar. E CARNE assume a cor mole e quente daquilo que o ônibus transporta: corpos humanos”. (Mammì, 2006, s/p., grifos meus).

Vale lembrar que a carne propriamente dita condiz a uma unidade de sentido que está aquém do que é humano. Como se sabe, a erogeneização da carne será sempre contingencial, assim como a própria vida psíquica também o é. É o que justifica minha discordância em relação à posição de Jurandir Freire Costa, que desaprova associar a ideia de violência à entrada do desejo do Outro no início do processo de subjetivação. Segundo ele, leituras como as Piera Aulagnier, por exemplo, seriam muito arriscadas porque sugerem que a violência residiria aí desde o início, ou seja, como se se tratasse de algo natural. Segundo Freire Costa, contudo, violência – como conceito e como fenômeno – seria mesmo outra coisa e, a seu ver, nesse sentido, não é possível dizer que existiria violência na origem da subjetividade.

Em Violência da interpretação, ensaio tomado em discussão pelo autor, Aulagnier defende no entanto esta preexistência psicológica de uma violência original e fundamentalmente necessária ao aparelhamento psíquico. Para ela, assim como sucede no mecanismo de posterioridade (Nachträglich), a oferta do seio ao infans nunca é sincrônica, surgindo sempre antes ou depois da demanda. Havendo aí, inelutavelmente, um lapso de tempo, de início então a mãe direciona mensagens ininteligíveis à criança, mensagens que neste momento ela não conseguiria compreender. A urgência de significação é vivida, por conseguinte, já nos primórdios da vida mental, ainda que isso ocorra exclusivamente no substrato inconsciente.

Ora, deve-se sublinhar que esta invasão se impõe a despeito do sujeito, embora nele imprima marcas de uma decalagem entre os dois espaços essenciais, isto é, o psíquico (interno) e o mundo (externo). Logo, com isso se proporciona este tipo de violência elencado pela autora: experiência a ser vivida como imposição repressora, a violência original é o parti pris da constituição do aparelho psíquico. Em termos gerais, Aulagnier conclui que se trata de uma “ação psíquica pela qual se impõe à psique de um outro uma escolha, um pensamento ou ação, mas que são, entretanto, apoiados num objeto” (1979, p. 38; Dionisio, 2012). Cabe dizer que, sem esta invasão, que Aulagnier intitula portanto de violência, nada feito, não há subjetividade por vir. A própria Aulagnier assinala a existência de dois tipos de violência, a primária e a secundária. Assim, aquilo do que Freire Costa desconfia – chamar o fenômeno de violência – a autora resolve por meio da noção de violência secundária, que engloba os caminhos da “violência propriamente dita”, por assim dizer.

Violência contida nas experiências traumáticas, que condizem à estrutura de um descompasso: com efeito, nunca estamos preparados para um acidente, por exemplo, seja perceptiva ou psiquicamente. O estrondo invade o sistema e produz consequências significativas. Um tal abalo, porém, não permanece inerte, e cobra uma resposta viva (ou dinâmica, mais precisamente) do sujeito. Assim, é a resposta a esse abalo – cuja experiência se dá por meio de manifestações mais ou menos conscientes, mas de qualquer maneira vividas de maneira concreta pelo sujeito, como no caso do sintoma, do sonho ou da lembrança – que configura o caráter traumático da experiência. Deste modo, o trauma configura apenas no só-depois, exigindo do sujeito algum tipo de reelaboração.

Críticos de importância como Hal Foster (1996) defendem a pertinência desta questão articulada ao circuito da reflexão sobre arte. Para ele, existiriam imagens que pretendem ressignificar um passado traumático. Não obstante, vale destacar, não se trata de um simples psicologismo: Foster não aloca o problema da reelaboração no sujeito-artista, por assim dizer, mas no nível da própria história da arte, e é assim que certas obras de arte pós-modernas tentaram, à sua maneira, dar conta de um passado moderno ainda recalcado. Nesta perspectiva, a meu ver Carne poderia compor o time de imagens que dão a ver algo desta magnitude.

Indiretamente, Lorenzo Mammì levanta indícios que poderiam justificar uma tal associação. Ele tem razão, por exemplo, ao articular o trabalho com o famoso Boi Esfolado de Rembrandt, obra que nos proporciona olhar para a carcaça do bicho como um objeto a ser revelado pela ação do pintor. Ao retratá-la com “a mesma intensidade e ênfase luminosa com que pintaria uma cena bíblica”, Rembrandt se torna solidário com a carne, conferindo ao animal “a dignidade que todo ser vivo merece” (Mammì, 2006, s/p.). Não seria a mesma dignidade almejada por Carmela? A diferença, aqui, é no entanto vertical: em Carne, vale repetir, o ser vivo em questão é o próprio homem.

Como declara a artista, Carne não se encaixa na noção de obra efêmera porque é mais precisamente uma obra-em-circulação, implicando elementos como impermanência, transitividade e transformações espaço-temporais. O trabalho busca uma organicidade com a cidade e seu movimento; uma obra de arte ambulante, em suma.

Em depoimento concedido a Rosa Iavelberg, Carmela Gross conclui que
“Carne quer dizer tecido muscular animal, alimento, coisa-à-venda; e ainda naquela natureza animal ou física do homem. No ônibus CARNE, este homem é um passageiro, para o qual o mundo lá fora, e ele mesmo, são só vermelhidão. Carne viva.” (2006, s/p.).

Objeto de reflexão estética que vêm de Cennini a Diderot, passando por Hegel e Merleau-Ponty, a noção de incarno[3], proposta por Georges Didi-Huberman a partir de sua leitura de A obra prima ignorada de Balzac, é uma expressão que procura tatear problemas desta ordem. Busca trágica pela cor e pela forma, o incarno seria a pura exigência fugidia da carne em obra, substância colorida, viva, e que subjaz à experiência estética.

Se então a cor, voz da carne, sabe demonstrar que “não é simplesmente algo a ser depositado sobre seu ‘objeto’, mas constitui o aparato mesmo” do trabalho de arte, pode-se então concluir que “ela se torna aquilo que restitui ‘vida’ e ‘natureza’ à pintura” (Didi-Huberman, 1985, p. 21). Esta coisa animada – isto é, formada de sangue e vísceras, e que neste sentido garante o estatuto ontológico da obra em que se atualiza, ainda que seja nada mais que uma simples passagem – representa toda a potência criadora que conduz a imagem do amorfo à forma.

O pathos angustiante desta oscilação implica os limites do corpo, pois extrai da percepção a sua matéria subjacente, concomitantemente superficial e transparente, do sintoma. Este colorido-limite estará, no entanto, subjugado a dois imperativos categóricos, que são os da configuração fantasmática e da conjuntura do entre-dois. Assim, na medida em que compartilha a forma do sintoma, representa uma realidade de duas faces, dando a ver o dentro (carne) pelo fora (pele) e vice-versa. Matéria fluida, o incarno se estrutura no interior das trocas entre profundidade e superfície, terminando, diabolicamente, por enganar o pintor – assim como, por suposição, o espectador. Afastado do princípio de identidade, o incarno representa o “relevo orgânico do problema figural da superfície” (Didi-Huberman, 1985, p. 24). Em suma, em minha opinião, o incarno é o olhar da obra, é aquilo que nos olha de volta enquanto olhamos, como assim desejaria um Merleau-Ponty. Desse modo, trata-se de um efeito-sujeito, um índice de subjetivação e não um sujeito encarnado, por assim dizer. Olhando de volta, a meu ver o incarno nos indica um modo de subjetivar o real, para emprestar uma categoria cara à Lacan.

Talvez esse olhar de dentro proposto pela imagem justifique considerarmos que haja uma enorme transparência nos procedimentos de composição de Carmela Gross, o que em certa medida lhe chegaria a ser quase programático: “As obras de Carmela são generosas com o público”, conclui Mammì; ao se expor, tanto “falam de como foram concebidas e executadas” quanto nos convidam “a usá-las, manuseá-las, tateá-las” (2006, s/p.). São abertas a quem quiser olhar.

Não obstante, a carne em jogo não é uma carne qualquer, e isso mexe radicalmente com todas as tentativas de compreender a obra. Carmela relembra o mote inspirador para o ônibus: foi pelo refrão de A carne, cantada na voz de Elza Soares, que a vontade criadora da artista foi capturada[4]. E o fato de ser, esta carne, negra, como diz a canção (“a carne mais barata do mercado é a carne negra”), carrega consequências determinantes.

Simbolicamente, não seriam os ônibus, esses não-lugares que carregam o suor de um trabalho a duras penas conquistado, nossos cativeiros do dia-a-dia apresentados sob uma nova roupagem? Em toda ocasião que dirijo meu olhar ao conceito de Carne nunca deixo de pensar na seguinte associação: 1) nossa herança escravagista; 2) navios negreiros, veículos de um carregamento criminoso de carne e não de corpo; 3) a gente mais sofrida. Ora, e para observá-la, no caso de não querermos “imaginarizar”, basta apenas olhar de lado. Os ônibus, os metrôs das grandes cidades possuem o rosto marcado a ferro pelo trabalho, muitas vezes subalterno, e pelo cansaço decorrente. A banda O Rappa chegou mesmo a sintetizá-lo de maneira incisiva, sobretudo se nos atentarmos às condições degradantes que a miséria pode trazer a qualquer sujeito: “todo camburão tem um pouco de navio negreiro”.

Em sua própria linguagem, talvez seja esse o mote das manifestações que pululam de norte a sul no Brasil de agora; e isso muito ironicamente, talvez pensasse, meio que de rabo de olho, Carmela Gross. De minha parte cabe apenas constatar, não sem alguma tristeza, que tais movimentações tenham chegado tão tarde.



Referências:


AULAGNIER, P. A violência da interpretação: do pictograma ao enunciado. Rio de Janeiro: Imago, 1979.
DIDI-HUBERMAN, G. La peinture incarnée. Paris: Les éditions de minuit, 1985.
DIONISIO, G. H. Pede-se abrir os olhos: psicanálise e reflexão estética hoje São Paulo: Annablume/Fapesp, 2012.
_____________. “A carne é fraca? Violência e ironia, psicanálise e arte contemporânea”. Inédito.
FOSTER, H. The return of the real. London: MIT Press, 1996.
FREIRE COSTA, J. Violência e psicanálise. Rio de Janeiro: Graal, 2003.
IAVELBERG, I. Arte passageira. In: Carne (Carmela Gross). Catálogo. São Paulo: Centro Universitário Maria Antonia, 2006.
MAMMÌ, L. Desenhar, encarnar e organizar. In: Carne (Carmela Gross). Catálogo. São Paulo: Centro Universitário Maria Antonia, 2006.
PATTO, M. H. S. Mutações do cativeiro: escritos de psicologia e política. São Paulo: EDUSP, 2000.



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1 - Retiro a expressão do inquietante livro de Maria Helena de Souza Patto (2000). No caso particular do artigo que dá título ao volume, seu objeto é estabelecer uma crítica à famigerada noção de “Inteligência Emocional”, cujo modelo de funcionamento se baseia numa verdadeira acefalia quanto às determinações sociais que de fato comporiam o “modo adequado” (adequado segundo a Inteligência Emocional, evidentemente) de se viver em sociedade.
2 - Psicanalista, Mestre e Doutor pelo Instituto de Psicologia da USP, Prof. Assistente-Doutor do Dep. de Psicologia Clínica da UNESP-Assis, membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos de São Paulo (EBEP-SP).
3 - Incarno é uma tradução livre que sugeri (ver Dionísio, 2012) para o incarnat, modo como esta categoria surge, originalmente, no ensaio de Georges Didi-Huberman (1985).
4 - Depoimento dado pessoalmente ao autor.




 
 
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