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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    26 Setembro 2013  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

TESTEMUNHO DA MOBILIZAÇÃO


EDUARDO LOSICER[1]



Querido Osvaldo,


Você teve a feliz oportunidade de acompanhar, nos três ou quatro dias que ficou por aqui antes de voltar para nosso Buenos Aires querido, algo que imediatamente entendemos – mesmo sem entender muito – como um grande acontecimento:  sem nada que o pré-anunciasse, vimos multidões de jovens tomando as ruas das cidades. Sem organização nem bandeiras partidárias, movidos por uma pura vontade política de se manifestar, mesmo com protestos difusos ou pontuais, sem lideranças, convocados por redes horizontais, sustentando sua índole reivindicativa não violenta, enfim, nesses dias começamos a ver um grande fenômeno político acontecendo diante de nossos olhos e nos deixando perplexos frente a tanta novidade que nos jogavam na cara – logo a nós que já passamos por tantas barricadas e mobilizações!

Terás percebido que estou fazendo um recorte do que podemos entender como efeitos da grande mobilização, com seus inevitáveis usos reacionários, todos espúrios e parasitários da novidade. Colecionei uma série de expressões – entre próprias e alheias – que tentam se aproximar daquilo que pode haver de essencial neste novo sujeito social e político, independentemente das transformações que possam vir a seguir. As expressões-síntese que até agora me parecem mais fiéis ao que se passa são: crise de representação, multidão desejante, pulsão de massa, testemunho e outras. Claro que nenhuma delas é suficiente para concluir. Há uma tentação de concluir da qual queremos escapar.

Enquanto você estava aqui no Rio, brincávamos com a ideia de qual seria a reportagem que você ofereceria aos amigos portenhos a respeito do vivido no Rio e em São Paulo. E aqui está o motivo central desta carta: tenho o relato de uma experiência, vivida no início desta semana, que fala por si e pode ajudar aos que queiram imaginar (não dá mais do que para isso) algo da criatura multitudinária que acaba de nascer. Em que se diferencia esta estranha recém nascida, sem pai nem mãe, que nem nome tem, como tiveram outras massas de jovens mobilizados em outras praças do mundo? Depois da experiência que tive com os jovens (vou usar a palavra jovens condensando vários sentidos) na segunda e terça-feira, posso dizer que pude fitar o rosto do monstro (vi a palavra monstro usada várias vezes para denominar o levante). Foi a Vera – ela própria participou da partida da experiência – que, ouvindo meu relato posterior, me convenceu a colocar meu testemunho por escrito. Me convenceu porque aprendemos juntos que o testemunho vivo de um fato que pode vir a ser histórico é um instrumento formidável para manter viva a novidade que o acontecimento/multidão traz – antes que as negações reacionárias do novo consigam destruí-lo - e ajudar a afirmar-lhe sua alma política, nascida em estado adulto coletivo comum.

Vamos à crônica dos fatos: na segunda-feira recebo um telefonema que, minutos depois, ia me colocar, de corpo e alma, na cena que estava vendo na televisão: o acampamento de jovens que estava fixado durante os últimos quatro dias a poucos metros da residência do Governador. Quem me chamou era uma colega profundamente sensibilizada com o contato que acabara de ter com eles. Principalmente quando souberam que era psicanalista e lhe pediram ajuda. A preocupação era com alguns companheiros com os nervos à flor da pele e o perigo que isto se transformasse na faísca esperada pela repressão presente nos policiais que estavam cara a cara com eles. Ainda por cima, as comunidades da Rocinha e do Vidigal estavam descendo o morro e não se sabia de “acordos” com eles. A colega lembrou de nosso trabalho com clínica política (aqui não é necessário colocar aspas) e me transmite o pedido (vi depois, pela televisão, que a comunidade da Rocinha desceu cantando o hino nacional).

Ir com urgência para lá me fez sentir como se estivesse a bordo de uma impensada ambulância clínico-política. Convocado para ajudar em zona potencialmente conflagrada, subjetivamente me sentia nesse estimulante estado em que deveria sentir medo... mas não sentia. Não sabia se ia levar um tiro de borracha na testa ou se me sentiria totalmente alienado – em tempo e espaço - da situação real que me esperava, mas isso não era o mais importante. O que me preocupava era: de que me serviriam os quarenta anos de clínico e militante para responder a esses jovens ativados politicamente de uma hora para outra, que me chamavam para a praia do Leblon justamente porque no grupo se estava produzindo uma subjetividade nervosa que podia colocar tudo em risco?

Lá chegando pela avenida da praia, logo vi que a base real  dos acontecimentos era tão elementar que parecia irreal: não dava para acreditar que aquela esquina com algumas dúzias de pessoas inidentificáveis, sem caminhão de som, sem discurso a não ser o de suas infaltáveis cartolinas, era um dos pequenos cenários em que estavam postos os olhos do Brasil inteiro.

O encontro com a pessoa que originou o pedido foi direto, para usar a palavra que me parecia uma das mais significativa do movimento todo. Quebrado o estranhamento inicial (tampouco ela acreditava que um analista tivesse se materializado na sua frente), nos entendemos rapidamente e combinamos que voltaria para me encontrar com todos na manhã do dia seguinte. Quando se mostrou apreensiva com os companheiros que poderiam achar a psicologia como individualismo fora de lugar, tranquilizei-a dizendo que a psicologia que praticamos não tem ordem, muito menos imposta, assim como eles não têm; portanto, era necessário combinar o óbvio: participaria quem quisesse.

E assim foi: a roda que formamos em plena rua funcionou durante várias horas sob as barbas dos policiais, que a tudo assistiam a poucos metros. Tampouco eles entendiam que um coroa como eu estivesse respondendo questões sobre, por exemplo, terrorismo psicológico. Eram os jovens que chamavam deste jeito a atitude dos policiais, fardados ou à paisana, recomendando em voz baixa, “pelo seu bem”, sair do lugar antes que fosse tarde. Não tiveram problemas em entender que, neste caso, o terror não vem só da ameaça indireta, mas da ambiguidade perversa de se apresentar como “protetor”. Vimos que o melhor antídoto contra este tipo de terrorismo era tomar consciência, uma e outra vez, que não havendo relação de forças violentas para serem comparadas (repressão/resistência), era óbvio que a relação de força política estava integralmente do lado deles. Não, não haveria tanques (não estávamos na Praça da Paz Celestial) nem qualquer força bélica que pudesse tirá-los da posição conquistada. Se eles eram combatentes do bom combate, tampouco haveria brechas psicológicas para o medo infundido e não seria por isso que abandonariam a colina conquistada. Lembrei-lhes que o terrorismo psicológico e a contra-informação já tinham sido usadas em larga escala em épocas da ditadura, mas que agora eles mesmos estão provando que, embora vivamos em outra época, ainda perduram os ecos do terror do passado.

Um caso mais grave de ameaça telefônica dirigida à família de um dos jovens mais ativos foi a prova de que estes “serviços do Estado” ainda estavam ativos. A família colocou todo tipo de impedimento para a participação dele no acampamento. Era dramático ver o embate entre a instituição familiar e a paixão desta nova forma de militância. Para complicar o quadro, a namorada, presente, não podia disfarçar as divisões que a atravessavam. Embora a revolta fosse grande, o laço solidário e o não-medo do conjunto (a causa nunca estava em risco simplesmente porque não havia) eram suficientes como para esperar o desenlace do impasse sem grandes dramas. Foi lembrado que a ameaça direta à família era frequente quando a estratégia militar da repressão na ditadura se interessava em cercar até capturar os líderes, situação que está longe de ser a deles, uma vez que eles “se beneficiam” de ser uma massa-sem-líder, por pura opção. Longe de ser um ‘defeito político’, não ter líder se torna virtude. Como diz Castells[2] no jornal de hoje “não há cabeças para cortar” Além disso, lembramos que antes eram as câmeras secretas olhando os jovens. Hoje, alem do olhar midiático – sempre caolho - são milhares de câmeras celulares dos jovens olhando e mostrando instantaneamente o que ocorre na realidade pontual para todo mundo. Havia ali um poder público em ato e, mesmo que sua evidência e eficiência venha a mostrar-se momentânea ou deturpada, o sentimento era que este poder estava agindo em muitos outros lugares e que iria sempre ressurgir. Uma vez que este desconhecido poder é liberado e demonstrado, não dá para negar a novidade dos fatos que cria, assim como não dá para devolver o gênio à lâmpada.

A questão do grupo sem líder deu panos para manga, claro, mas não no sentido que estamos acostumados a ver na clínica dos grupos. Esta diferença facilitava tudo, porque os jovens entendiam perfeitamente que a vontade política coesa e renovada dispensava o líder condutor, assim como dispensava o líder representante. Não havia messianismo de nenhuma espécie para atrapalhar; a autosuficiência do coletivo era altamente convincente.

Outra questão derivada - mais instigante para mim do que para eles -, que retoma o entendimento desta mobilização como crise de representação: não havia discurso crítico orgânico, nem sequer criticando a classe política, que é “a mãe” de todas as representações políticas. Ao mesmo tempo, os mais lúcidos declaram que o movimento é supra-partidário, e com isto se atribuíam o direito de excluir do movimento todo e qualquer emblema partidário. Também faltava discurso fundante ou de projeto, tanto que fiquei na dúvida se eles eram conscientes de estarem praticando uma forma legítima de democracia - a democracia direta – ou a ela tendiam.

A conversa na roda reunida no asfalto - coabitando com barracas dos ocupantes e viaturas da polícia - corria fluida (as vezes mais do que com os nossos próprios pares, pensava eu) embora descontinuada por necessidades do momento. As questões que se colocavam pareciam sempre pertinentes, afastando meus últimos temores de inadequação. Isto significava que, mesmo na situação prática mais quente, os princípios da clínica política com que trabalhamos na nossa equipe se mostravam úteis. Alguns temas se transformavam em verdadeiros seminários a céu aberto. Aquele que poderia se intitular “o perseguidor”, por exemplo, permitiu distinguir seu efeito fantasmático na medida do necessário para o momento, isto é, na medida em que ajuda ao perseguido a sair do terror inoculado pela suspeita sempre presente e ameaçante dos infiltrados, sejam informantes ou provocadores. O que provoca terror é mais a ameaça do ataque do que o ataque real.

Algo que transmitia uma força insubstituível para o grupo era a reação dos passantes: buzinadas e gritos que só se vêem nas torcidas se ofereciam como testemunhos do apoio da população. Nesses momentos, era nítido que os jovens se sentiam legitimados - mas sem euforias triunfalistas, por serem conscientes de que tudo pode mudar de uma hora para outra. Neste contexto fui testemunha de um fato altamente significativo: um dos vários carros que paravam para dar alento ou para deixar uma contribuição, parou somente para deixar sua doação: cartolina e água!

Falando em líder: te conto que no meio da muvuca tive uma reminiscência fulminante. Compreendi claramente o momento em que me iniciava como militante. Foi na minha adolescência, fazendo trabalho comunitário no subúrbio de Buenos Aires (Retrato do militante quando jovem), quando assisti, passo a passo, ao nascimento de uma líder comunitária. Arrebatado pela força dessa pessoa que parecia brotar de outra pessoa, me converti. Não seria exagero, querido amigo, se te digo que, olhando para o agir e o sentimento de certos jovens do acampamento, tive fortes lampejos daquela companheira. Foi ela que originou meu percurso até aqui, pensei, e é aqui, numa esquina de outro país, várias gerações depois, que vejo germes da mesma incomparável potência que me marcou a vida. Conste que naquela época tínhamos a paixão revolucionária para potenciar-nos em tudo, diferente destes jovens brasileiros que se potenciam no encontro desejante comum. Talvez tenha sido a essência deste comum que existe entre as pessoas que aquela companheira argentina me revelou para sempre, e agora o reencontro em um diminuto ponto luminoso do Brasil.

Bom, meu paciente amigo, se depois desta overdose de crônicas você quer mais, me avisa.


Um grande abraço,


Eduardo “Dito” Losicer



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1 - Psicanalista e analista institucional argentino-brasileiro. Membro da equipe Clínico-Política da Clínica do Testemunho do Rio de Janeiro e do coletivo Memória-Verdade-Justiça RJ.
2 - Manuel Castells, sociólogo catalão, em entrevista a O Globo em 29/06/2013: http://oglobo.globo.com/pais/manuel-castells-povo-nao-vai-se-cansar-de-protestar-8860333




 
 
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