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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    29 Junho 2014  
 
 
O MUNDO, HOJE

EM HOMENAGEM A GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ 1927-2014


Falecido na Cidade do México no último dia 17 de abril, Gabriel García Márquez foi um dos mais importantes escritores do século XX. Em sua homenagem a equipe do Boletim Online indica a consulta aos seguintes links interessantes e a leitura da crônica  publicada pelo escritor brasileiro Julián Fuks no ano de 2007.


Discurso Nobel de Literatura 1982 por Gabriel García Márquez: https://www.youtube.com/watch?v=V2yc5ESsXac e https://www.youtube.com/watch?v=SWHRDWqChkk

El cataclismo de Damocles por Gabriel García Márquez em 1986:
http://www.mounier.es/revista/pdfs/066005006.pdf

Tertúlia: Gabriel García Márquez por Eric Nepomuceno em 11/01/2011: https://www.youtube.com/watch?v=KKhlVrlp0SY

Lembrando da memória de García Márquez por Eric Nepomuceno em 11/07/2012: http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Midia/Lembrando-da-memoria-de-Garcia-Marquez%0D%0A/12/25356

O outono de Gabriel García Márquez por Urariano Mota em 16/07/2013: http://blogdaboitempo.com.br/2013/07/16/o-outono-de-gabriel-garcia-marquez/

Gabo e um milagre chamado Vietnã por Flávio Aguiar em 18/04/2014: http://www.cartamaior.com.br/?/Coluna/Gabo-e-um-milagre-chamado-Vietna/30752




Crônica de uma vida habitada[1]

Julián Fuks[2]


Muitos anos depois, encerrado em um quarto de fundos e com os olhos cravados na parede branca, Gabriel García Márquez haveria de recordar aquela remota tarde em que seu avô o levou a conhecer o gelo. Aracataca era então um povoado de casas baixas e ruas sem pavimento, insuflado pela recente abundância resultante da prolífica exploração bananeira. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome, e para mencioná-las o menino tinha de apontá-las com o dedo. Nos armazéns da ubíqua United Fruit Company, a cada dia era possível descobrir novas coisas: daquela vez, dois peixes duros como pedras. Em casa o avô explicou, paciente, que eram duros porque estavam congelados. O menino estranhou, não conseguiu esconder o muxoxo de incompreensão. O avô o tomou pela mão, conduziu-o de volta ao armazém e fez com que lhe mostrassem uns blocos sólidos, resvaladiços, brancos, frios. Aquilo era o gelo.

A casa vivia em um estado de ebulição quase tão constante quanto o das panelas que sequer eram retiradas de sobre o fogão. Comia-se em turnos e cozinhava-se de tudo, pois não se podia saber de antemão o que gostariam de degustar os imprevistos visitantes anunciados pelo apito do trem das onze, tão pontual que lhes servia para ajustar o relógio recém comprado. Gabito, como então era chamado, sentava-se sempre ao lado do avô e não se cansava de ouvir os heróicos relatos da Guerra dos Mil Dias, a mais trágica e sangrenta de toda a história da Colômbia. Mais vivos e ilustrados haviam se tornado tais relatos depois que descobrira, na virilha do avô, a cicatriz de pouco mais de uma polegada decorrente de um balaço. Mais melancólicos e desesperançosos, quando o outro se punha a falar sobre a merecida pensão que nunca lhe seria paga, prometida pelo governo aos coronéis aposentados.

Naquelas conversas, Gabito acedia também aos pormenores que antecederam outro antológico tiro, este desferido pela arma do coronel Nicolas Márquez e atingindo a fronte de Medardo Pacheco, num duelo travado pela honra de cada família. Mais de vinte anos haviam se passado desde então, mais de vinte anos desde que deixaram Barrancas, o cenário da contenda, para se exilarem na pacata Aracataca, e o avô continuava repetindo aos ventos sua disfarçada confissão de arrependimento: “você não sabe como pesa um morto”. O menino talvez soubesse. Duas décadas dos inumeráveis Márquez haviam sido suficientes para que falecessem em cada cômodo da ampla casa incontáveis tios, primos e demais parentes, de modo que cada quarto continha, além do santo que lhe fora designado, o morto que passara a habitá-lo.

Dos mortos cuidava Tranquilina, a avó, e mantinha com eles uma relação tão íntima que amiúde ameaçava convocar a tia Petra ou o tio Lázaro caso o menino, se comportando mal, não se aquietasse. Gabito nunca deixou de se imobilizar, assustado, e ainda assim os fantasmas vinham assombrá-lo, na noite escura, escondendo-se sob os olhos dos numerosos santos que o espreitavam. O medo persistia madrugada adentro e imiscuía-se em seus sonhos, mas vinha a converter-se em diversão e fascínio já nas primeiras horas da manhã. Era engraçado o sobressalto de Tranquilina com um ruído estranho que se ouvisse pela casa, sinal de que bruxas haviam se infiltrado, cômico o embate da avó contra as borboletas negras que anunciavam doença, notável sua estupefação diante do cordão que se enredara no piso e parecia revelar os futuros números da loteria. Só uma vez o susto fora unânime e inquestionável: no dia em que viram passar pela rua, em trajes de forasteiro, um homem sem cabeça montado num burro.

Havia tias vivas também, Mama, Nana e Pa, e suas conversas eram tão fluidas e profusas que em muitas ocasiões elas sequer atentavam para a presença do menino franzino e ensimesmado, encolhido em qualquer canto da habitação. Se o viam, podiam julgar que não as compreendia, mas ele estava absorvendo cada palavra e processando cada história de maneira a logo poder transmiti-las a quem parasse para ouvi-lo. Para conseguir atenção, acrescentava alguns detalhes mais fantásticos e mirabolantes, e cuidava de distorcer as nuances para escamotear as origens dos relatos. Os ouvintes não demoravam em pensar que eram mentiras e teriam passado a ignorá-lo, não fosse que algo naquelas histórias lhes soava estranhamente familiar e passível de certa precisão. As mais crédulas, então, a começar pela avó Tranquilina, passaram a crer que Gabito tivesse um quê de adivinho.

Sua fama perdeu força quando ele não passou nem perto de adivinhar a razão para o definhamento de Margot, sua irmã menor: a garota mantinha o hábito de se esquivar das refeições corriqueiras e comer a terra úmida do jardim, quando não os nacos de cal que arrancava das paredes com as unhas. Não obstante as diversas medidas de prevenção tomadas por Tranquilina, como encharcar com bile de vaca os cantos mais apetitosos do quintal e untar de pimenta as paredes, Margot só abandonaria seus secretos banquetes aos oito anos de idade, tempos depois de deixar a casa.

Testemunha de um mundo de tantos prodígios e cotidianos disparates, o menino tardou em dar ouvidos aos que tentavam alertar sobre outros mundos que se escondiam nas páginas impressas. Queriam que se importasse com os correspondentes gráficos das palavras que aos poucos absorvia, mas ele não via motivo para tamanho esforço de transição: melhor era reproduzir as coisas de modo mais imediato, rabiscando-as com giz ou pedras nas paredes. Por longos e felizes anos essa foi sua mais profícua forma de expressão. Até que alguém conseguiu explicar-lhe que a junção entre m e a era ma, e não emea, e Gabito por fim pôde se entregar à leitura de alguns quebradiços papéis quase desfeitos pelo pó e pelas traças. Eram As mil e uma noites, como alguém explicaria anos mais tarde, que punham a confabular os universos do avô e da avó e revelavam o que há de real na mais patente irrealidade.
Compenetrado como andava na atmosfera absorvente das histórias, fossem elas orais ou permeadas por signos agora decifráveis, o menino foi incapaz de antever o dilúvio que se impingiria sobre Aracataca. Poucos anos haviam transcorrido desde a greve generalizada que tivera seu fim no massacre de três mil trabalhadores da banana e era natural, como na época dos gafanhotos ou na das doenças venéreas, que um novo flagelo viesse a punir o devasso caos que se instalara na cidade. Foi tal a devastação provocada pela torrente de água, tão ininterrupto o jorro que lavou as cores das ruas e das casas, que muito antes que se extinguisse já era consenso entre os habitantes a noção de que os tempos prósperos já não retornavam. De boca em boca confessou-se que não eram poucos os que, para morrer, apenas esperavam que escampasse. E, com o sol, foi-se também a United Fruit Company, legando ao povo a miséria e o desastre.   

Gabito já não permaneceria para assistir aos entreveros da derrocada. Tomado pelas mãos de dois semi-desconhecidos que, alguns anos antes, alguém dissera tratar-se de seus pais, foi logo levado a viver com eles na distante Barranquilla, de modo que a morte do coronel Nicolás Márquez alcançou seus ouvidos como uma remota notícia. Nenhuma das pessoas com que cruzava na nova casa se deu conta, mas a partir daquele momento cada um de seus sucessos e alegrias estaria privado de sua terça parte, pois não seria compartilhado pelo sorriso parvo do avô. Paralelamente, jamais deixaria de despertar com a impressão de estar sendo observado pelos santos de seu quarto em Aracataca, e a lembrança falsa ou real de ter sonhado estar naquela casa.

Como se fossem pães despedidos pelo forno de sua mãe, ano a ano se multiplicavam os habitantes da nova morada, seres mirrados com o mesmo olhar concentrado e o mesmo ar de solidão que não permitiam pôr em dúvida o parentesco. Gabito os veria crescer apenas em drásticos estirões, a cada doze meses quando retornasse para passar as férias por ali: primogênito entre doze irmãos, seu destino seria vagar pelas cidades em busca de sustento e formação.

Também nesses intervalos progressivamente mais prazenteiros, conheceria a incrível e triste história de Gabriel Eligio García e Luisa Santiaga Márquez, os curiosos sujeitos que se assinavam responsáveis por sua presença nesta vida. Ora pela descrição detalhada de um, ora pela narração sinuosa do outro, desvendaria as tramas e circunvoluções de um amor desaprovado, engendrado a custo por meio de mensagens cifradas, telegramas falsos, cartas escondidas, encontros silenciados. Um dia, meio século mais tarde, o respeitável Gabriel García Márquez, já em posse de seu notabilíssimo Nobel, por fim se decidiria a verter em palavras impressas o amor proibido entre o humilde telegrafista e a filha do coronel. Amplificaria o insucesso da empreitada, prolongaria as dores e os castigos das personagens pelos mesmos cinquenta anos que se demorara, e lançaria com pompas e honras O amor nos tempos do cólera. O velho Gabriel Eligio, amante dos versos e amigo leigo das letras, abdicaria enfim de seu antigo sonho de escrever um livro: seu filho mais velho já o teria escrito.
O tempo é feito de repetições, tropeços e acidentes, poderia pensar García Márquez ainda alguns anos mais tarde, ao assistir aos despautérios semelhantes enfrentados por suas irmãs. Aida, vítima de um amor contrariado pelos próprios pais vitimados no passado, desistiria de seu querido Rafael e ingressaria em um convento de dedicação perpétua. Margot, em quem já não era possível identificar quaisquer sintomas comuns às crianças devoradoras de terra a não ser a melancolia, também desaprovada em suas escolhas permaneceria solteira por toda a vida. “O amor é uma peste”, García Márquez faria sua personagem dizer numa obra ulterior, sem saber se estaria desconsiderando o exemplo de uma terceira irmã. Rita, alerta aos precedentes, casou-se com o primeiro que encontrou: foi feliz com cinco filhos e nove netos.

O escritor tampouco saberia classificar e compreender sua própria experiência de amor. Era tão somente um rapazote imberbe quando se fixou diante dele uma menina de voz e gestos simples e a beleza egípcia de uma serpente do Nilo. Tratava-se de um baile, e a pequena Mercedes fez a gentileza de conceder-lhe a primeira dança. Tão deslumbrante foi o embalo, tão desnorteadores os rodopios, que na mesma noite Gabito aprumou a camisa e pediu-lhe a mão. A garota hesitou; tinha apenas treze anos. Casaram-se quando ela chegou aos 26.

Gabito tornou-se Gabo na tarde em que visitou a redação do principal jornal de Bogotá, para logo se empoleirar em um de seus cubículos e não sair dele nos dezoito meses subseqüentes. “Hombre, don Gabo”, cumprimentou-o o homem que primeiro se dirigiu a ele com tal apodo, também o primeiro a atentar para a raridade de sua vocação literária e alardeá-la em uma resenha favorável. García Márquez tinha apenas um punhado de contos rascunhados, dois publicados, quando Eduardo Zalamea Borda identificou-lhes a riqueza e a originalidade. A reverência muito o alegrou, ninguém se engane, mas imprimiu-lhe o peso de uma enorme responsabilidade: a partir de então, teria de fazer tudo o que pudesse para não deixar que o crítico caísse em descrença.

Foi então que uma tormenta eclodiu com tal estrépito no mar do Caribe, que os atos prodigiosos lavados por outra chuva em outro tempo puderam, por um instante, ser esquecidos. Oito marinheiros da Armada Nacional foram tidos como perdidos, até que o bravo e fatigado Luis Alejandro Velasco surgiu quase por milagre, e como um milagre estarreceu o país com seu Relato de um náufrago. Coube ao novo repórter do El Espectador ouvir com exclusividade a narração exaustiva de cada náusea vivenciada naquelas dez jornadas entre o céu e o mar, adaptá-las à palavra escrita e publicá-las dia após dia. Cinquenta capítulos pediu o diretor do jornal, dado o estrondoso sucesso com que a série era recebida. García Márquez esforçou-se, minuciou as tensões, avolumou os embates, e chegou a respeitáveis catorze. Foi sua primeira consagração.

Em Sucre, numa época pouco anterior a essa, deu-se o sofrido, porém nada misterioso assassinato de seu amigo Cayetano Gentile Chimento. A história era de novela. Uma antiga e ressentida namorada havia acusado o rapaz de desrespeitar suas prendas virginais, e os dois irmãos da garota juraram vingança em nome da família. Perseguiram Cayetano por toda a cidade, até encurralarem-no em frente a sua própria casa. Em desespero, a vítima esmurrou a porta, mas a mãe não abriu, pensando que fossem os assassinos. Suas entranhas já escorriam pelos talhos abertos por numerosas facadas quando ele finalmente conseguiu entrar. A um só tempo desgostoso e fascinado, García Márquez pôs-se a averiguar as minudências do ocorrido. Sua mãe, amiga da outra, descobriu-lhe as intenções e as reprimiu. Se queria escrever aquela história, devia ao menos respeitar a dor alheia e garantir que a senhora nunca a lesse. Crônica de uma morte anunciada foi redigida e publicada três décadas mais tarde, dois anos após a morte de Julieta Chimento.

Gabo não se inquietou quando o jornal o mandou cobrir, em Roma, as improváveis consequências do recente ataque de soluços papal. Sabia que logo retornaria a Paris para dar continuidade a sua rotina de correspondente, embora não esperasse a súbita clausura pela ditadura colombiana do veículo para o qual trabalhava. Viu-se então no mais absoluto estado de desamparo na capital francesa, à espera de uma ajuda financeira que seus amigos lhe enviariam por correio, mas que teimava em não chegar. Recolheu-se então num sótão de valor acessível, munindo-se de suficientes folhas de papel e suficientes cigarros para poder acender um no fogo do outro, e pôs-se a escrever a única história que naquelas circunstâncias podia: a dos miseráveis militares da Guerra dos Mil Dias, esperando suas pensões que nunca chegariam. Assim surgiu Ninguém escreve ao coronel.

Deviam ser as oito horas de uma manhã mexicana de 1965 quando Gabriel García Márquez se encerrou em um quarto de fundos e cravou os olhos na parede branca. Vestido em um macacão azul de mecânico, o escritor arremeteu as mãos sobre a escrivaninha desordenada e afastou um e outro texto de alquimia, um manual de medicina caseira, um tratado sobre as guerras colombianas e um tomo da enciclopédia britânica. Haviam sido dezessete anos de estudos para o romance que desde sempre ambicionava escrever, e sentia-se habitado pelas figuras da velha casa o bastante para finalmente fazê-las voltar à ativa. No meio do caminho de sua vida, sabia-se pronto para dar à luz e ao mundo uma de suas mais perfeitas alegorias: Aracataca travestida em Macondo, a mais pessoal entre as aldeias universais. Foi então que se extraviou por territórios desabitados, tempos reservados ao esquecimento, labirintos de desilusão, desfiladeiros de névoa branca como o gelo que o avô lhe apresentara, e começou a assistir a uma sucessão fluida e cadenciada de Aurelianos e José Arcadios, desprendidos uns e outros pelo movimento ininterrupto de seus dedos. Todos com o mesmo olhar compenetrado e o mesmo ar de solidão que os caracteriza. Seriam Cem anos de solidão para a afamada estirpe dos Buendía. Já para aquele específico Márquez, Gabito renascido, nunca voltaria a haver silêncio ou calmaria.
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[1] Texto publicado originalmente na revista Entrelivros, em fevereiro de 2007.
[2] Escritor e critico literário, autor de Fragmentos de Alberto, Ulisses, Carolina e eu (7 letras, 2004), Histórias de literatura e cegueira (Record, 2007) e Procura do romance (Record, 2012).



 
 
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