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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    29 Junho 2014  
 
 
NOTÍCIAS DO DEPARTAMENTO

TRABALHO COLETIVO, COOPERAÇÃO E POLÍTICA


Roberta Kehdy[1]

No dia 25/04 último, o grupo Psicanálise e Contemporaneidade convidou Cristophe Dejours para uma conversa. O grupo vem estudando as contribuições deste psicanalista francês desde sua conferência – A Sedução e Seus Avatares – realizada no Instituto Sedes em novembro de 2012, quando encontramos em seu pensamento possibilidades de diálogo com um tema sobre o qual  vínhamos nos debruçando naquele momento: em tempos de instabilidade econômica e de tantas incertezas, seria o trabalho ainda uma categoria fundamental para o estabelecimento e manutenção do pacto social?
 
Propusemos-lhe neste encontro, algumas questões:
 
- Percebemos em nossa clínica que cada vez mais, o universo do trabalho é fonte de sofrimento psíquico - falta de reconhecimento, pressão das chefias, competições desonestas, medos, problemas de saúde, etc. Poderia o trabalho promover subjetivação?
- O que pode diminuir o sofrimento do indivíduo frente ao trabalho na atualidade?  Como  “reencantar" o trabalho hoje?
- Como pensar a questão dos laços sociais e dos pactos sociais e seus desmoronamentos percebidos na contemporaneidade?

 
Dejours, generosamente, compartilhou conosco uma boa parcela de suas ideias e das articulações possíveis entre a psicanálise e a psicodinâmica do trabalho, uma forma de abordar o mundo do trabalho criada e desenvolvida por ele, nas últimas quatro décadas, a partir da colaboração entre a psicanálise e outras disciplinas que estudam o homem no ambiente de trabalho, principalmente  a ergonomia. Em suas palavras:

“A psicodinâmica do trabalho é antes uma disciplina clínica que se sustenta na descrição e no conhecimento das relações entre trabalho e saúde mental. É, em seguida, uma disciplina teórica que se esforça por inscrever os  resultados da pesquisa clínica da relação com o trabalho em uma teoria do sujeito que observe, a um só tempo, a psicanálise e a teoria social.”[2]

Inicialmente, ele apresentou as contradições inerentes ao conceito de trabalho. Na tradição judaico-cristã, o trabalho surge como uma das punições para o homem por ter desafiado Deus; contudo, ao longo da história ocidental, com o desencantamento do mundo, o trabalho passa a ser visto como promessa de emancipação e como possibilidade de ascensão social. O capitalismo concretiza esta ideia através da ética protestante, a partir da qual a salvação da alma passou a ser ligada ao trabalho. Os movimentos operários fundados na solidariedade também tiveram papel decisivo nesta perspectiva ao conseguirem, por meio de muita luta, o estabelecimento de direitos para os trabalhadores.
 
Assim, o trabalho pode ser promotor de subjetivação ou de dessubjetivação. Indagamos: quais são as condições que levam a uma situação ou outra? No contexto atual de ampliação do pensamento neoliberal, com diminuição de direitos do trabalhador e com a força da globalização que enfraquece o poder do Estado de manter estes direitos, é importante que consideremos estas condições como uma questão da política, caso contrário, cai-se em uma naturalização, acreditando que o mundo do trabalho só pode ser regido por este pensamento e que esta é a única forma de organização do trabalho.
 
Para Dejours, o que possibilita que o trabalho contribua para a subjetivação é o trabalho vivo entendido como resistência ao fracasso, a capacidade de obstinação neste confronto com o real, do qual “é possível mostrar uma dimensão propriamente física”[3]. Esta teoria está apoiada sobre uma dimensão do trabalho que era desconhecida das ciências do trabalho até Freud: trata-se do trabalho psíquico, o trabalho da subjetividade sobre ela mesma, cujo modelo é a elaboração e que se apresenta de diversas maneiras - trabalho do luto, trabalho do sonho, trabalho da rememoração, trabalho terapêutico. Contudo, Freud opunha este trabalho, ligado à criação, ao trabalho ordinário considerado como fardo, como um constrangimento que exigia sacrifício e mesmo sofrimento físico, provocando aversão ou torpor. Esta concepção freudiana de trabalho ordinário como labor está inserida na  tradição clássica.

A psicodinâmica do trabalho, em sua pesquisa clínica apoiada pela ergonomia, ao lidar com a materialidade do trabalho, promoveu um deslocamento importante no pensamento sobre o campo do trabalho. Antes o que era pensado apenas como relação social patrão–empregado, passa a ter outras dimensões, pois há uma implicação do corpo e do pensamento do trabalhador na realização de qualquer trabalho, incluindo assim o trabalho ordinário também na dimensão de work, criação. No âmbito individual, observa-se que existem diferenças entre as ordens (as prescrições) e o trabalho real que acontece, há sempre uma parte de subversão, pois não há trabalho sem o engajamento da inteligência do operário. O desenvolvimento pela organização do trabalho de prescrições e procedimentos que desconsiderem a participação e a criatividade de trabalhador promove alienação, mas resta a este a possibilidade de resistência à organização e à prescrição.

Esta disciplina coloca o trabalho como fundamento do laço social, trazendo assim uma contribuição significativa ao valorizar o trabalho coletivo. Este constitui para Dejours:

“um elo intermediário essencial entre inteligência, habilidade e a engenhosidade presente no estado potencial em cada indivíduo, de um lado, sua atualização em uma contribuição à cultura e à pólis, de outro”[4].
 
O trabalho coletivo passa pela cooperação, que por sua vez é resultado de uma construção. Esta procede da formação de uma vontade coletiva que está em luta contra a dominação, pois o trabalho sempre foi e sempre será um tema de relevância maior nas relações de dominação. O trabalho coletivo implica a mobilização das inteligências individuais.
 
Como, então, juntar as inteligências subversivas e organizar um trabalho coletivo de maneira que não reine o caos? Só pode haver trabalho coletivo se se obtiver a reunião das inteligências singulares para inscrevê-las em uma dinâmica coletiva comum. Para que isto se dê, é necessário criar um espaço de confiança onde cada um testemunha e compartilha com o outro como se faz; é a partir da fala e da escuta das razões do outro que posso pensar sobre a forma de fazer, isto implica uma equivalência de riscos e a construção conjunta das regras, dos acordos. Dejours chama este espaço de espaço de deliberação e considera que, quando o mesmo é específico da cooperação, é estruturado como um espaço público. 
 
Entretanto, com o próprio desenvolvimento do neoliberalismo e a perda de direitos, temos o mundo do trabalho dominado pela competitividade e pela avaliação individual de desempenho, que promovem uma quebra da coletividade e da cooperação. Quando alguém vai mal, o problema é exclusivamente daquela pessoa, perde-se o suporte do outro, gerando aumento de descompensações psíquicas e risco de morte, tal como nos suicídios cometidos nos locais de trabalho.
 
Na França, já existem centros de pesquisa e de cuidado voltados para o sofrimento provindo do trabalho. Considera-se que a prevenção em saúde do trabalho é uma questão coletiva, baseada na solidariedade que faz parte da ética do trabalho. Em atividades desenvolvidas por estes centros, a avaliação individual foi substituída pela avaliação coletiva, que considera que a forma de trabalhar impacta todos os envolvidos, na medida em que pode se pensar o ambiente de trabalho como um todo e as relações das pessoas neste ambiente. Retoma-se então o espaço de deliberação como espaço público onde é possível a ação comunicativa, o diálogo. Nestes centros é de fundamental importância a parceria com o Direito, pois a atuação dos advogados protege os direitos dos  trabalhadores envolvidos e favorece  a luta  por políticas públicas que sustentem estes princípios.

Inspirados por esta experiência e pela leitura e estudo de seus escritos, alguns membros de nosso grupo, desejosos de uma intervenção clínica, se organizaram para disponibilizar um atendimento a trabalhadores com sofrimento proveniente do mundo do trabalho. Projeto de atendimento este que se encontra em gestação e que deverá ser viabilizado junto à Clínica do Instituto em breve.

Dejours considera que a psicodinâmica do trabalho propõe pensar os princípios de uma nova política do trabalho: “Uma política que não teria só a ambição de prevenir as doenças mentais do trabalho, mas que retomaria o domínio sobre a organização do trabalho para dela obter a potencialidade de recursos na construção da saúde e na realização de si mesmo, de um lado, e na aprendizagem do viver junto e das recomposições da solidariedade de outro.”[5]
 
Esta perspectiva vem de encontro a várias inquietações do grupo Psicanálise e Contemporaneidade tais como a importância das decisões coletivas, a implicação política dos psicanalistas, a reflexão cotidiana sobre o trabalho do psicanalista… Assim pretendemos que este encontro seja o primeiro de muitos onde possamos seguir com a interlocução e o diálogo com este psicanalista generoso, que em sua maneira de trabalhar encarna o seu modo de pensar o trabalho.

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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante do Grupo Psicanálise e Contemporaneidade.
[2] Dejours, C.  Trabalho Vivo, Tomo II, Trabalho e Emancipação. Brasília: Paralelo 15, 2012, p. 23.
[3] Idem, p. 18.
[4] Idem, p. 78.
[5] Idem, p.14.




 
 
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