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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    34 Junho 2015  
 
 
ESCRITOS

O QUARTO DE VIRGINIA


O lugar da mulher, a lucidez alucinada e a mente andrógina de Virginia Woolf


DÉBORAH DE PAULA SOUZA[1]


Virginia Woolf defende que, para escrever, uma mulher precisa de espaço e dinheiro. Também acha que seria melhor não ter 13 filhos, mas talvez dois ou três. Para dizer isso, na puritana Londres de 1928, ela se perde em jardins e bibliotecas proibidas, vê um gato sem rabo, encontra a irmã de Shakespeare e alucina. Expande o lugar da mulher para outros confins e provoca: “Dê a ela mais cem anos”.

Quando eu era homem, não compreendia Virginia Woolf. Quando me tornei mulher, me senti à vontade no quarto dela. Refiro-me ao ensaio Um teto todo seu (o título original é A Room of One’s Own). Não cheguei ali sozinha. Tive a companhia preciosa de muitas mulheres. Há tempos, uma amiga querida, que partilha comigo o amor pela literatura, havia me indicado o livro. Surpreendeu-se com minha ignorância a respeito do ensaio da famosa escritora, autora de romances como Orlando e Ao Farol. Afirmou que era leitura obrigatória e comentou sobre a necessidade de independência financeira e privacidade defendida pela autora. Ótimo, mas espero que não seja esse o único motivo pelo qual recentemente comecei a ver o livro em blogs feministas atuais, citado como obra de referência, ao lado de O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir.

A edição brasileira estava esgotada há anos, mas em 2014 finalmente o livro de ensaios Um Teto Todo Seu foi republicado, pela editora Tordesilhas. A capa é duvidosa (Por que um ambiente com parede cor de rosa? Alguém pode me explicar? Acham que é besteira falar disso? Adquiri coragem para tanto depois de ler o que ela diz sobre frivolidades femininas). O volume é consistente. Tem tradução dupla, de Bia Nunes de Souza e do poeta Glauco Mattoso (que traduziu os poemas citados na obra) e posfácio de Noemi Jaffe. E conta ainda com uma parte dos diários da autora. Numa segunda-feira, 19 de agosto de 1929, ela falava assim de Um Teto Todo Seu: “Bom ou ruim? Ele tem em si algo vital e incômodo: é possível sentir a criatura arcar o dorso e galopar, embora, como de costume, muito disso é diluído, não tem conteúdo e está afinado em um tom muito alto.”

Na primeira leitura fiquei muito brava, claro, indignada com os absurdos do patriarcado, etc, etc, etc. Seria impossível não ficar, frente à violência histórica praticada contra as mulheres, o modo como seu poder criativo foi esmagado e o tanto que a representação do feminino na literatura foi marcada por personagens como putas, cortesãs, mães sofredoras e heroínas obedientes. Porém, tanto o patriarcado quando a indignação feminina frente a ele são lugares conhecidos e Virginia avança para além desse terreno, de maneira sutil.

Ao pesquisar como as mulheres aparecem nos escritos masculinos, pergunta: “Por que eles estão com raiva”? Já nos escritos femininos, ela percebe o medo que uma mulher tem de ser chamada de sentimental, de florida, de ser diminuída. Algo que Noemi Jaffe, no posfácio, resume e atualiza:“Por que, após tantas conquistas, ainda quero ser mais e melhor do que sou?”. Os ideais do feminino persistem e se renovam na cultura, bem como a necessidade de validação social. Se antes era necessário ser sábia, santa ou deusa, hoje é preciso também ser jovem, guerreira, linda, magra, antenada - a série de atributos é interminável. Ela alerta para a cilada de oscilar entre “ser apenas uma mulher” ou tão boa quanto um homem. Conhece a angústia que tudo isso provoca.

No diário da escritora, dois anos antes de produzir o livro, ela se perguntava o que seria feito de seus escritos íntimos quando morresse. “Estou velha, estou feia. Estou repetindo as coisas. Ainda assim, no que me diz respeito, como escritora, só agora estou escrevendo o que realmente se passa na minha cabeça.”

Sinuosa e quebrada

Para quem entra sem aviso em sua casa, o texto sinuoso e quebradiço pode perturbar. Ela não vai direto ao ponto. Seria assim a literatura feminina? Que enrascada seguir por aí. É Virginia quem me socorre citando Coleridge (Samuel Taylor Coleridge, poeta inglês, morto em 1834), para quem as grandes mentes seriam andróginas. A isso ela nomeia de mente incandescente. Para ela, Proust era andrógino e às vezes “demasiadamente mulher”.

As “acusações” que o livro faz a todas as categorias de opressão (seja aludindo ao movimento sufragista, à ascensão de Mussolini ou à possibilidade de ser impedida por um bedel de entrar na biblioteca da universidade porque era uma mulher desacompanhada) são revestidas de uma camada de fina ironia. Mas confesso que só quando li o livro pela segunda vez pude ir além da indignação. Lembrei então de outra escritora, Hilda Hilst e um poema de amor em que ela pede: “Olha-me de novo/Com menos altivez/E mais atento”.

A partir da segunda leitura desejei chamá-la de Virginia, queria ficar mais perto dela. E isso nada tem a ver com suprimir o Woolf, sobrenome do marido, a quem ela escreveu sua última carta, carinhosa, antes de encher de pedras os bolsos do casaco e se afogar no rio.

Enveredei então por lugares mais perigosos, não por causa da morte, que é certa, mas por causa de tudo que é incerto, instável, vulnerável, e que ninguém sabe onde vai dar, como é o caso das mulheres e da ficção, que para Virginia seguem sendo “problemas não resolvidos”. Imaginem que ela encontra a irmã do Shakespeare. Ela não, a Mary Beton, ou a Mary Seton, os confusos codinomes que adota como alter ego pouco importam, ela mesma avisa. Mary encontra Judith, a irmã de Shakespeare, tão ou mais talentosa ainda que o irmão. Isso seria possível? Não, é tudo inventado mesmo. A essa irmã genial, no entanto, foi vetada a escola, o livro, o teatro, a viagem. Ela era uma mulher cheia de imaginação, sedenta de aventuras, negou-se a casar com o marido que o pai lhe arranjou, e por isso levou uma surra, fugiu para Londres aos 17 anos, engravidou do diretor do teatro, que teve pena quando ela o procurou para mostrar seus escritos. Conclusão: era impossível para uma mulher ser escritora nos tempos de Shakespeare, mesmo que tivesse grande talento. E havia muita dor nisso. Então, quando Virginia começou a descrever minha bisavó, a sua avó, as nossas tias, e a mãe de tanta gente, fiquei perplexa. Em que medida estaríamos nós, as mulheres contemporâneas, ainda ali com todas elas? Não estou dizendo que toda mulher é uma escritora brilhante como Virginia, penso mais no fluxo criativo, se esse rio corre ou estanca, se fluímos com ele ou ficamos atoladas à margem, perdendo a vitalidade. Retomo a página 73: “Quando lemos sobre o afogamento de uma bruxa, sobre uma mulher possuída por demônios, sobre uma feiticeira que vendia ervas ou mesmo sobre um homem muito notável e sua mãe, então acho que estamos diante de uma romancista perdida, uma poeta subjugada (...),” diz ela. Especula que muitas cantigas populares talvez tenham sido inventadas pelas mulheres que embalaram os filhos, enquanto costuravam nas noites de inverno.

Além de um apanhado nada linear sobre a produção literária de algumas escritoras pioneiras e o que já se disse delas, este livro é uma permissão. Para ser mulher ou o que se quiser ser, para ser livre, para criar e para transitar entre os gêneros. Isso soa familiar para nós, gente do século 21, mas Virginia estava na década de 1920, falando para uma plateia de moças. Sim, na época, já era uma escritora de renome e foi convidada a fazer palestras em faculdades inglesas exclusivas para mulheres, com o tema As mulheres e a ficção. O livro é uma edição expandida dos artigos que ela preparou para essas apresentações. Foi publicado em 1929, mas as palestras foram realizadas em 1928, mesma data do lançamento de Orlando, em que o protagonista homem torna-se mulher (traduzido no Brasil por Cecília Meireles). A obra foi influenciada pelo envolvimento de Virginia com a escritora Vita Sackville-West.

Para fazer esta resenha, procurei o meu velho exemplar na estante, e ele estava grifado, curiosamente, apenas na parte em que Orlando era mulher: “Vem, vem, estou mortalmente cansada deste eu. Preciso de outro.(...) Esses eus de que somos constituídos, sobrepostos uns aos outros como pratos empilhados na mão do copeiro, têm suas predileções, simpatias, pequenos códigos e direitos próprios, chame-se como quiserem (e muitas dessas coisas não têm nome) de modo que um só virá se estiver chovendo, outro, se for num quarto com cortinas verdes, outro, se a Sra. Jones não estiver lá, outro, se lhe pudermos prometer um copo de vinho”. Seis ou sete eus, ela acreditava, bastariam para uma biografia completa. Era esse o clima criativo em que essa mulher vivia no momento em que produziu este ensaio.

Através de nossa mãe

Virginia escutava a voz das mulheres nos livros e identificava quando a autora estava escrevendo para reagir às críticas que sofreu ou iria sofrer. Supunha que as poucas escritoras pioneiras foram muito afetadas ou violentadas pelas críticas, embora soubesse que boa parte dos livros fracassa e isso vale para qualquer gênero. Estava convicta de que mágoa pessoal prejudica a literatura. Ela disse às jovens estudantes do início do século 20 que os livros produzidos por homens deveriam ser lidos por prazer, e que naqueles tempos não havia ainda uma tradição para ampará-las. “Nós, mulheres, pensamos através de nossa mãe. É inútil recorrer aos grandes escritores como ajuda.” A mãe de Virginia morreu quando a filha tinha 13 anos, foi quando esta sofreu o seu primeiro colapso nervoso.

Hoje, quando categorias como feminino e masculino estão em plena mutação, reler Virginia Woolf não é exatamente um amparo – mas uma companhia especial, exatamente porque ela soube nomear o desamparo de quem ousa falar, escrever, criar em nome próprio.

Todos podem recorrer aos grandes escritores e, entre eles, estão Virginia Woolf e muitas outras que senti necessidade de nomear ao longo dessa resenha. Não são referências só para quem gosta de ler ou escrever, eu penso. Elas ajudam a viver. Também queria agradecer à psicanalista Diana Corso, de Porto Alegre. Em seu último livro, Tomo Conta da Mundo – conficções de uma psicanalista, reúne suas crônicas publicadas no Jornal Zero Hora. Embora o título evoque uma frase conhecida de Clarice Lispector, uma parte da obra é inteiramente dedicada ao ensaio Sem medo de Virginia Woolf. E ali ela percorre o lugar da mulher com andar muito sensível. Para Diana, esse lugar tem a ver com o vazio, “a experiência de conter e jamais ser contida”.

Foi com o livro de Diana que descobri que a psicanalista Maud Mannoni também tem um livro sobre a autora (Elas não sabem o que dizem: Virginia Woolf, as mulheres e a psicanálise. Ed. Jorge Zahar, 1999). A irmã de Shakespeare, como previra Virginia, vive em todas nós e por causa de Virginia não temos que ficar chorando por ela. Mas, talvez, escutar o que a autora já sabia há quase um século: o mundo não é só dos homens e das mulheres e o ser humano não pode se enxergar apenas em relação aos outros, “mas também em relação à realidade, ao céu, às árvores ou a qualquer coisa que possa existir em si mesma.” Claro que essa ideia de realidade, Virginia estilhaça mil vezes. Como só os inventores de outras realidades podem fazer.



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[1] Psicanalista e jornalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise, integrante do grupo de trabalho Sexta Clínica e uma das coordenadoras do projeto Cuide-se na Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae.



 
 
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