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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    35 Agosto 2015  
 
 
ESCRITOS

A SUBMISSÃO E A LÓGICA DO MEDO


MARIA CAROLINA ACCIOLY[1]



Considerado um dos livros mais polêmicos publicados na atualidade, Submissão, de Michel Houellebecq, é intrigante exatamente por dar figurabilidade ao medo, substância fundante da intolerância e da xenofobia. Ao tornar possível um projeto político-religioso de transformar a França numa nação muçulmana, o autor tece uma perigosa provocação num momento delicado no qual os imigrantes convivem com o medo e o preconceito.

O personagem do livro é um homem apático, niilista e misógino. Eu, mulher leitora, confesso não ter sentido nenhuma simpatia ou empatia por ele. Mas é interessante reconhecer como o patriarcado e o machismo persistem nas culturas ocidentais, ainda que as mulheres tenham realizado conquistas democráticas importantes.

Há um tom provocativo costurando a trama, que nos convoca a pensar. Uma provocação, mais filosófica, aborda a volta das religiões e suas versões fundamentalistas como uma reação, uma saída frente ao individualismo exacerbado das sociedades liberais e neoliberais. A religião seria um retorno à Família e a restauração do Patriarcado e da moralidade, os núcleos fortes da sociedade.

Diante da crise mundial, frente à fragilidade do capitalismo como modelo hegemônico, torna-se aceitável um projeto conservador que restaura o patriarcado, retira a mulher do mercado de trabalho e de toda liberdade de escolha.

O horror à feminilidade descrito por Freud aparece em sua concretude. Esse horror fascinado que faz da mulher um objeto sagrado do seu homem, submissa ao homem e a Deus, escondendo seus atributos para não provocar o desejo do outro. Ela aceita, e assim é protegida. Eu seguia a leitura desse pesadelo à espera de alguém indignado, as mulheres se opondo às mudanças sociais. E nada. O cenário ao redor do personagem era um espelho dele. De aceitação e submissão.

Outro viés da provocação, político, fala de como a esquerda, sempre tolerante ao diferente, aos imigrantes, ao coletivo, em oposição aos conservadores xenofóbicos, abre espaço para esta fictícia aliança com um partido islâmico moderado. São os políticos supostamente moderados, tanto da esquerda como da direita, que apóiam o candidato muçulmano.

Seguindo o pensamento de Chomsky o uso do termo moderado é discutível. Segundo ele existe uma ideologia religiosa rígida – o fundamentalismo de mercado -, que alimenta esse sistema de concentração de riqueza nas mãos de poucos, deixando grande parte da humanidade com poucos recursos para viver com dignidade. "O bem do público é sacrificado no interesse de uma riqueza muito concentrada" https://www.youtube.com/watch?v=oGmJAQtRHGk

A polêmica do livro consiste em provocar o duplo, a sombra, o medo em relação ao estrangeiro em cada um de nós. Será que isso poderia acontecer? Esse retrocesso? Seria um preconceito chamar de retrocesso um estado laico voltar a ser religioso, e de primitivas tais culturas patriarcais religiosas?

O livro toca na complexidade que atravessa o mundo contemporâneo, com a rapidez das informações que nos atravessam, num ritmo de contágio virtual, com rápidos desdobramentos, nem sempre ponderados, e tudo isso produzindo novas subjetividades. O lugar do islamismo na Europa é tema atual. Como a Europa vai elaborar e se posicionar em relação aos imigrantes? O dever em relação à memória se faz urgente. Assim como o dever em preservar as conquistas humanitárias e políticas. Procurar conhecer para melhor entender a história destes povos, a história da Europa e de suas antigas colônias. Os avanços civilizatórios de uma parte do mundo ocorreram enquanto grande parcela da África e Oriente Médio continuavam em guerra. E assim vemos os refugiados do norte da África, da Síria, da Argélia, entre outros povos fugindo em busca de uma nova vida.

E o que isso tudo fala da América Latina, das nossas memórias? Dos novos discursos religiosos e conservadores que vemos ascender como salvação moral?

A intolerância, o discurso de ódio manifesto nas redes sociais, a falta de diálogo e a consequente ruptura com os que pensam diferente, fazem com que a complexidade da experiência atual se exprima bipolarizada e simplificada. É nosso dever, como psicanalistas, mas primeiramente como cidadãos do mundo, criar e cuidar de espaços de troca e de debate nos quais os medos e os afetos se possam bordar com palavras.



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[1]Psicanalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise, integrante da equipe editorial deste Boletim.



 
 
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