PUBLICAÇÕES

    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    35 Agosto 2015  
 
 
LITERATURA

CONSIDERAÇÕES SOBRE O ARTISTA DA FOME[1], DE KAFKA


SÉRGIO TELLES[2]



Tempos atrás, artistas da fome eram comuns na Europa e na América, onde se exibiam para um público pagante que se divertia em seguir o jejum que eles se dispunham a fazer e que se estendia por longos períodos. O fenômeno teve inicio no século 17 e atingiu o auge por volta de 1880. Os artistas da fome eram habitualmente homens, costumavam se apresentar em turnês amplamente divulgadas em muitas cidades e faziam jejuns de 40 dias. Muitos deles foram considerados farsantes por fraudarem o jejum e se alimentarem às escondidas[3]

Um artista da fome é o protagonista do conto de Kafka. Ele se mostra insatisfeito por não lhe permitirem jejuar o tanto que gostaria. É obrigado a interromper o jejum depois de 40 dias, prazo máximo para manter a atenção do público, na opinião de seu empresário. O artista da fome se sente incompreendido e não gosta quando o público se sensibiliza com o que julga ser seu grande sofrimento, pois para ele o jejuar não é um sacrifício penoso. Fica ofendido quando pensam que ele ludibria a todos e come escondido, como fazem os vigias que, de forma cúmplice, se afastam de sua jaula, pensando que assim lhe dão oportunidade para se alimentar. Ninguém compreende que se ele parece triste e acabrunhado, isso não se deve ao jejum. Na verdade, é o contrário, ele jejua por que estava triste e ninguém nunca se apercebeu disso. Assim, ao final das apresentações, ao invés de se regozijar por ter conseguido cumprir com o prometido e aceitar as homenagens de todos, a delicadeza das moças que o amparam e encaminham para a supostamente desejada refeição, rejeitava tudo e só saía a contragosto da jaula que o abrigara durante aquele período.

Com o tempo, esse tipo de espetáculo saiu de moda e o artista da fome, não podendo trabalhar em outra coisa, foi para um circo, onde, diferente de quando era a atração central, foi colocado num lugar fora do picadeiro, perto dos estábulos e jaulas. No intervalo do espetáculo, as pessoas iam apreciar os animais selvagens seus vizinhos e, no meio do caminho, eventualmente olhavam para o artista da fome. Humilhado com o descaso do público, sofria ainda mais quando o destratavam, acusando-o de trapacear e se alimentar de forma dissimulada.

Com o passar do tempo, o artista da fome foi ficando esquecido e nem mesmo a tabuleta que registrava os dias de jejum vencidos era mais atualizada pelos funcionários do circo.

Um dia, um inspetor, vendo aquele espaço contendo apenas um monte de palha apodrecida no seu interior, perguntou aos donos do circo porque não aproveitavam melhor o lugar. Os funcionários abriram a jaula e, ao mexerem na palha com seus ancinhos, encontraram ali o artista da fome. Ao se ver descoberto em seus estertores finais, ele pediu desculpas ao inspetor que, de forma condescendente, o ouvia divertido, como se o artista da fome fosse um louco demente. Pedia desculpas, dizia ele, porque nunca lhe fora um sacrifício o jejuar, ele o fazia com grande facilidade e isso acontecia porque, em toda sua vida, nunca encontrara um alimento que o satisfizesse. Se isso tivesse acontecido, ele jamais teria sido um jejuador, pois teria se fartado ininterruptamente com aquela iguaria, como faziam todas as pessoas com suas comidas favoritas.

Dito isso, o artista da fome morre e, algum tempo depois, no lugar onde estava foi colocada uma jaula com uma imponente pantera, que exibia uma estuante vitalidade. Sua alegria de viver era intensa a ponto de incomodar os expectadores, que, entretanto, não conseguiam se afastar dali um minuto sequer.

........................................................



No início do conto, o jejum do artista da fome é um espetáculo que suscita grande interesse e curiosidade. Alguns o admiram e elogiam sua força de vontade e outros especulam se ele conseguirá realizar tal façanha, empenhando-se em descobrir uma fraude, uma falcatrua, uma prova de que ele, incapaz de se controlar, come escondido.

O jejuador se sente profundamente incompreendido, pois o elogiam equivocadamente. Mereceria os cumprimentos se de fato sentisse falta da comida, mas para ele o jejum não custava nada, decorria de uma inapetência essencial que lhe era inerente. Ele não tinha vontade alguma de comer. Ninguém notava que “a insatisfação o roía por dentro” e que no término do período de jejum ele saía sempre a contragosto da jaula, teria gostado de continuar ali e que, mesmo fora, “internamente continuava em jejum, fazia parte de sua pessoa“.

Sua secreta insatisfação decorria do fato de nunca ter encontrado um alimento que o agradasse. “Eu preciso jejuar, não posso evitá-lo. Porque eu não pude encontrar o alimento que me agrada. Se eu o tivesse encontrado, pode acreditar, não teria feito nenhum alarde e me empanturrado como você e todo mundo”, diz ele.

O artista da fome passava a vida expressando o ressentimento por nunca ter encontrado um alimento que o apetecesse. Como não entendiam isso, as pessoas, ao invés de ajudá-lo a encontrar o alimento desejado, o admiravam pela capacidade de jejuar e o incentivavam nesse sentido, acreditando que sua abstenção de alimentos era uma conquista grande e sacrificada.

Ele se irrita com o tempo de duração dos espetáculos, pois gostaria de deixar claro que “não sentia limites para a sua capacidade de passar fome”, ou seja, que, na verdade, desprezava o alimento.

Vê-se então que a suspeita do público de que o artista da fome o ludibriava não estava de todo errada, desde que o pressuposto básico que sustenta o espetáculo estava comprometido. Ele enganava o público não porque se alimentasse às escondidas e sim por não ter fome alguma e não desejar se alimentar. Se ele controlava ou continha alguma coisa, não era a vontade de comer e sim o ódio despertado pela frustração de não ter encontrado o alimento desejado.

Do ponto de vista psicanalítico, parece evidente que o conto gira em torno da pulsão oral. O artista da fome dedica sua vida a afirmar de forma onipotente seu desprezo pelo alimento. Acredita poder prescindir dele e ser capaz de jejuar sem nenhum limite, como se com isso não colocasse sua vida em risco. Sua arrogância oculta a infelicidade de nunca ter encontrado o alimento ideal. É possível supor que esse alimento jamais encontrado tenha alguma ligação com o seio materno, o primeiro alimento, aquele que representa a relação constituinte com a mãe. Ao dizer que “nunca encontrou” esse alimento, o artista da fome sinaliza como foi insatisfatória sua relação com o seio, seja por dificuldades da mãe, que nunca pode lhe dar de forma adequada e prazerosa o alimento , seja por dificuldades dele mesmo, pela forma invejosa e voraz, como diria Melanie Klein, com que teria recebido a oferenda materna. De uma forma ou de outra, o resultado foi uma grande frustração, desencadeadora de ódios e culpas, condição agravada com o posterior aparecimento do pai.

O artista da fome é como uma criança magoada que recusa a alimentação porque “nunca encontrou” (entenda-se: acredita que nunca lhe deram suficientemente, deram e depois negaram, impediram-no de alcançá-la) a comida que mais desejava. Ele se mostra incapaz de elaborar a perda do seio e substituí-lo por seus derivados. A persistência desse aspecto regredido e infantil do artista da fome fica explícita no relato de um final de espetáculo, quando ele, em meio a fanfarras, discursos, moças que se dispõem a ajudá-lo a chegar até à supostamente desejada refeição, reluta em abandonar a jaula, só o fazendo a contragosto. A descrição de seu corpo débil, com cabeça, tronco e membros desconjuntados (“corpo pequeno”, “pequeno feixe de ossos”, “cabeça que pende”), levado nos braços pelo empresário e amparado por uma das moças (“tão amáveis na aparência, mas na verdade tão cruéis”) evoca a imagem de uma criança pequena ressentida com a “crueldade” da mãe.

O jejum do artista da fome veicula vários e contraditórios sentimentos: insatisfação com o alimento oferecido, que é desprezado por estar tão aquém daquele idealizado e inacessível; expressão de onipotência, afirmação de prescindir do alimento (do objeto, da mãe); controle da voracidade despertada pelo falta do alimento desejado; inversão do desejo canibalesco de devorar vingativamente tudo a seu redor, especialmente aqueles que julga serem os responsáveis por sua fome insaciável.

Esses elementos de agressividade oral são representados pela pantera que o substitui na jaula após sua morte. A pantera jamais esconde seu apetite e seu prazer em comer. Alimenta-se muito bem e tem “escondida em suas mandíbulas” a liberdade, “de sua garganta brotava uma grande alegria de viver”, razão de seu irresistível encanto para o público.

A relação do artista da fome com os animais antecede o aparecimento da pantera. Significativamente, desde o início do conto o lugar que ocupa durante o espetáculo da fome é chamado de jaula . Com o declínio de sua arte, que o leva a se apresentar como atração circense, sua jaula é colocada longe do picadeiro, próxima dos animais, das bestas, das feras. Vemos então que, enquanto ele tem de inibir completamente o prazer com a comida, as feras podem satisfazê-lo plenamente – elas, como a pantera, comem “pedaços de carne crua” e emitem “rugidos durante a alimentação”.

Essa significativa proximidade com os animais denuncia o real motivo de seu jejum – uma forma de conter a destrutividade voraz e canibalesca desencadeada pela ausência do alimento ideal, não encontrado ou perdido. Tomado por um ódio ressentido que o “rói por dentro” e contamina completamente seus desejos de comer, não lhe resta senão a alternativa de jejuar.

O artista da fome não pode satisfazer suas pulsões orais, por temer que elas descambem numa voracidade animalesca, tendo consequentemente de ser inibida. A melancolia provocada pela introjeção da destrutividade o desvitaliza e o transforma num amontoado de “palha apodrecida”, o que inicialmente afasta seu público e termina por lhe roubar a vida.

Possivelmente o que atrai o público para um espetáculo tão peculiar como o proporcionado pelo artista da fome é sua dimensão sado-masoquista. O público tem um prazer sádico frente à exibição masoquista do jejuador.

Não se pode esquecer que o jejum é uma prática importante em várias religiões, visando quase sempre à purificação e elevação espiritual contra as demandas da carne. Na Igreja Católica, sua prescrição mais difundida está ligada às comemorações da morte de Cristo, celebradas na Semana Santa. Por essa via, o artista da fome ofereceria – pelo menos durante um certo período, os mesmos quarenta dias da quaresma - uma versão leiga e anódina das penitências a serem cumpridas na Paixão, com a qual o público se identificaria e com isso se isentaria de cumpri-los.

O progressivo ostracismo que se abate sobre a arte da fome é prenunciado no limite estabelecido pelo empresário: o público não a tolera mais que 40 dias. Numa racionalização do gozo sadomasoquista, o público vê o espetáculo como um embate que, apesar de levar a um enfraquecimento e emaciamento físico do artista, demonstra sua força espiritual, seu vigor moral, sua disposição de vencer os impulsos mais elementares da natureza humana e transcendê-los através da espiritualidade. A partir de um determinado ponto, as coisas se invertem e aparece uma repulsa ao espetáculo, pois aquilo que antes parecia ser uma manifestação de vitalidade passa a ser visto como uma manifestação mórbida de descaso com a vida e a subsistência. Dizendo de outro modo, o sadomasoquismo se expressa livremente por algum tempo, para em seguida cair sob repressão.

Tomado pela pulsão de morte, o artista da fome oscila entre a melancolia, o masoquismo, a anorexia.

........................................................



Para estabelecer essas interpretações, não foi necessário apelar para nada além dos elementos internos do conto – sua estrutura narrativa, seus personagens e as situações descritas. É claro que o conhecimento de dados biográficos enriquece sua compreensão, ao mostrar episódios da vida do artista que teriam fornecido material para a construção de sua obra.

Entretanto, essa é uma questão ampla e complexa. Se é possível atribuir às vivências e à sensibilidade do escritor tudo aquilo que ele escreve, isso não deve ser confundido com a transposição direta e documental de experiências biográficas, muito embora nada impeça que o artista possa usá-las de maneira crua e sem disfarces. Mais frequentemente o artista remodelará tais experiências através de condensações, deslocamentos, considerações sobre a figurabilidade e elaboração secundária. Propositadamente cito os mecanismos próprios do sonho, pois penso que a criação de uma obra de arte se assemelha muito aos processos de produção do sonho, só que agora, em parte, submetidas a um controle consciente. O artista não usará apenas suas vivências e experiências pessoais como matéria prima na construção de sua obra. Muitas vezes utilizará as histórias que lhe chegam por infinitas vias e as submeterá aos mesmos processos citados. Mas é importante salientar que tais histórias só o mobilizam por tocarem em importantes aspectos de sua subjetividade.

No caso de O artista da fome , tudo indica que determinados acontecimentos biográficos foram aproveitados por Kafka na criação de seu conto.

Ele estava em sua última internação hospitalar por causa de uma tuberculose, tendo vindo a falecer antes de o livro ser publicado. A tuberculose atingiu a faringe e ele não conseguia engolir. Além do mais, sabe-se que Kafka tornou-se vegetariano e que a ingestão de carne era uma das características de seu pai, tão ambiguamente amado e odiado. Seu avô paterno era um sochet , o responsável pelo abate de animais dentro do ritual judaico. Sabe-se ainda que Kafka tinha grandes dúvidas em relação a sua imagem corporal, achava-se feio e desconjuntado, passível de suscitar rejeição e repugnância nas pessoas.

Esses dados em nada invalidam as hipóteses interpretativas anteriormente estabelecidas, embora possam ampliá-las. O fato de ter ele escrito em condições físicas tão precárias, estando a morte tão perto, autoriza a ideia de que o conto poderia ser uma elaboração de suas fantasias em relação a seu fim iminente. Nessa elaboração não falta a ironia. A real impossibilidade de ingerir alimentos passa a ser a deliberação voluntária de não comer do artista da fome.

A questão da comida evoca o vegetarianismo e o hábito carnívoro paterno, a oposição total entre seu universo e o que o pai vivia, bem como a herança do avô açougueiro.

O ostracismo da arte da fome poderia estar ligado à insatisfação com a recepção de sua obra, à indiferença do público. O exibicionismo do artista da fome, que expõe seu corpo em crescente definhamento, se contrapõe à inibição frente a sua preocupação com a aparência, seus sintomas dismórficos.

Na medida em que o conto revelaria uma problemática primária com a mãe - a do anseio pelo alimento idealizado -, poderíamos pensar que a iminência da morte desperta em Kafka desejos arcaicos de fusão com uma mãe idealizada, que não mais lhe negaria o alimento desejado. Nesse sentido, Kafka evocaria o Freud de Os três cofrinhos , onde estão descritas as três formas que a mulher assume para o homem – a mãe, a mulher e a morte, aquela que vai mais uma vez receber em seu regaço seu corpo finito.

Fontes


Mahony, Patrick. “Um artista da fome de Kafka e o princípio nuclear simbólico”, em Psicanálise e Discurso . Rio de Janeiro: Editora Imago, 1990, p. 218-228

Wolk, Joan M. Franz Kafka's Ein Hungerkünstler: Metaphor of Conflict , em http://www.kafka.org/index.php?aid=334 . Acesso em 11/12/2014.

 




______________________________


[1] Kafka, F. Um artista da fome / A construção (tradução de Modesto Carone). São Paulo: editora Brasiliense, 1987. Disponível em: http://www.atelierpaulista.com/wp-content/uploads/2012/02/Franz-Kafka-Um-Artista-da-Fome-e-a-Construção-Rev.pdf

[2] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

[3] en.wikipedia.org/wiki/Hunger_artist



 
 
Departamento de Psicanálise - Sedes Sapientiae
Rua Ministro Godoi, 1484 - 05015-900 - Perdizes - São Paulo - Tel:(11) 3866-2753
www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/