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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    35 Agosto 2015  
 
 
NOTÍCIAS DO SEDES

PAIS PARTICIPANTES NA CLÍNICA E NA GESTÃO


MARCIA RAMOS E MIRA WAJNTAL [1]



“Atendo Maria há um ano na instituição. Seu filho João, hoje com 4 anos, vem apresentando comportamento de isolamento. Não dirige seu olhar para as pessoas, quase não conversa com Maria. Dirige-se a ela apenas quando quer alguma coisa. Maria relata que se sente ignorada. Esta sensação a remete à sua infância, quando seu pai retornava muito alterado para casa e agredia sua mãe e irmã mais velha. Ela mergulha nesta lembrança de ambivalência: ficou de fora da cena agressiva, mas por outro lado isto lhe salvou. O isolamento do filho parece cutucar esta lembrança.”

“A filha de 2 anos de Jorge e Laura acaba de receber um diagnóstico de autismo, após uma breve consulta médica. Estão perdidos, angustiados. Choram muito. O diagnóstico é dado justamente quando o casal pensa em se separar, mas agora questionam se o farão uma vez que Julia irá precisar muito deles”.

“Joaquim, de 12 anos, embora se comunique muito bem por gestos, não fala. Os terapeutas julgam que esta limitação se deve a problemas morfológicos. Ele frequenta o CAPS infantil há mais de 5 anos. Desde então, ele costuma morder os colegas, quer por raiva, quer por gostar muito de uma criança. Um dia ele aparece com marcas de mordidas, a família se revolta e exige uma medida protetiva para seu filho. A mãe, Joana, fica extremamente brava com o ocorrido e sente-se desprotegida. Acusa a equipe pelas mordidas que o filho recebeu.”


As cenas acima, embora fictícias, ilustram o cotidiano do acolhimento e atendimento realizados em um CAPS infantil. Acolher e receber as tramas dramáticas é o nosso ofício. Sabemos como as tragédias familiares têm o dom de se emaranhar com a história subjetiva de cada um de nós. Com as famílias destas crianças o mesmo processo acontece. E seus atendimentos neste quesito são idênticos ao de qualquer outro atendimento de escuta psicanalítica.

Poder falar de como um evento trágico incide no drama pessoal de cada um dos envolvidos está longe de colocar ambos como causa e consequência. Mas vemos que, em muitos casos, ao realizar este trabalho de circulação dos eventos da história familiar, as condições e relações entre os membros desta família melhoram; isto é válido também para as crianças.

É da maior importância ter claro que, nos casos de maior gravidade, fatos da história não são suficientes para afirmar a causa de uma sintomatologia na infância. Mas não devemos esquecer que somos seres históricos e estamos acostumados a pensar nesta perspectiva. Somos a única espécie que tem noção do tempo, na qual cada pessoa se comporta de forma única e é capaz de construir uma trama psíquica sobre suas vivências.

Esta construção não deve ser entendida como causa de uma doença. As lembranças se inscrevem nas nossas vivências, principalmente diante do sofrimento. Mas não necessariamente explicam a causa de uma doença. São realidades distintas. Estamos diante de uma pluralidade de fatores onde a reconstrução de um fato difere muito da reconstituição dos fatos. Incorrer na confusão entre a possibilidade de reconstrução simbólica de uma vivência e a restituição do factual tem suas implicações éticas.

Quando vê o isolamento de seu filho João, Maria é invadida por lembranças. Ao trabalhar sobre tais lembranças ela terá novos recursos para lidar com João sem se paralisar diante dos sentimentos de solidão e isolamento que sua lembrança evoca. O movimento interno de Maria pode abrir novas possibilidades para João. Vejam, não estamos falando de causa de uma doença.

A lei do SUS prevê que a comunidade que recebe atendimento em uma unidade de saúde também faça parte do Conselho Gestor desta unidade. Maria, Joana, Jorge e Laura serão convidados a participarem nesta função. No conselho Gestor, familiares e terapeutas participarão como cidadãos.

Para aqueles que não estão acostumados com essa nomenclatura, os Conselhos Gestores são Comissões tripartites compostas por gestores, usuários e trabalhadores. Essas comissões têm caráter informativo e consultivo sobre questões administrativas e organizativas do funcionamento do serviço de saúde – é um espaço de cidadania. Como os familiares também são usuários e participam do tratamento de seus filhos, nestes Conselhos não estão no lugar de pacientes-familiares e sim exercendo protagonismo como cidadãos, como munícipes. Houve muitos avanços ao longo da história e vários formatos nestes exercícios de cidadania foram construídos.

Vemos como nestes espaços há uma tênue divisão entre o ato de cidadania que pode reivindicar sobre o funcionamento dos serviços e a necessidade de serem escutados em suas questões mais pessoais.

Por exemplo: “Em assembleia de familiares, Célia questiona se o tratamento de seu filho Marcos é cantar e tocar violão no CAPS infantil. Como resposta relatamos como outra criança elaborava sua história escolhendo músicas que ouvia repetidamente. No caso do filho dela, também prestamos atenção no que ele canta e toca, para poder conversar sobre isto com ele.

Nesta mesma assembleia Fabio, pai de Julio, meio constrangido, relata que o filho necessitará de uma cirurgia e precisa de ajuda para lidar com a situação. É incentivado a procurar a técnica de referência para ter acolhimento, escuta e orientação que o ajudem a lidar com a criança.

Diante disto, mães falam sobre como fez diferença na suas vidas contar com essa escuta em espaços grupais ou individuais. Como reorganizaram suas vidas e puderam seguir adiante, lidando de outro modo, em outras relações, com o fato de seus filhos serem diferentes.

Outra mãe fala da dificuldade em lidar com seu filho em casa e, também, com as demais mães quando o filho entra em crise e agride outras crianças e técnicos. O grupo a conforta, falando dos medos que também enfrentam nessas situações.”


Nestes conselhos e assembleias os usuários da unidade são convocados a exercerem um poder administrativo que afetará, inclusive, seu terapeuta. Seria isto uma situação de conflito? Isto pode interferir negativamente no tratamento? Os pais podem se sentir levados a concordar sempre com as posições dos seus terapeutas? A condição de cidadão pode marcar interesses opostos? Por exemplo, diante da tão delicada reivindicação sobre equipamentos especializados para o atendimento de crianças autistas, vemos claramente esta cisão: na grande maioria das vezes, não é a indicação da equipe, mas há um grupo que a quer como principal escolha. Como lidar com uma situação na qual se diverge, sem ser uma ação deliberada de convencimento?

Como as intervenções destas reuniões repercutem no tratamento e vice versa, é um tema a se refletir constantemente. As reuniões do conselho gestor visam uma organização do coletivo, na qual os pais participantes trazem os anseios de seu grupo.

Pelo lado do psicanalista, a posição de cidadania pode impor um dilema de difícil manejo. Como receber as solicitações e demandas daqueles que vem escutando, priorizando até então seus dramas? É possível transitar nas duas posições? O que o psicanalista deve fazer? Explanar sobre o seu ponto de vista? Ou dar argumentos pró e contra uma determinada questão e manter a imparcialidade? No conselho gestor, o psicanalista no lugar de gestor deve eticamente expor todas as proposições e dificuldades para mudanças que venham a ocorrer; deve expor a política vigente, as diretrizes, as conveniências e inconveniências implicadas na situação a ser discutida; deve fornecer acessos a esses conteúdos, por sites e/ou textos. E daquele que está no lugar de trabalhador de saúde mental será esperado que mesmo que defenda posições diferentes, exponha claramente os porquês do grupo de trabalhadores que representa.

Sabemos muito bem das dificuldades vividas por estas famílias. Sabemos da dor de uma mãe que não é olhada. A solidão vivida quando se vê em uma situação muito diferente.

Um bebê não existe sozinho. Os pais se reinventam a cada nascimento de um filho. Na história da clínica é recente a ideia de se compreender o acontecimento psíquico através da qualidade de relação que um bebê irá estabelecer com seus cuidadores, em geral os pais. Até pouco tempo, os estudos sobre o desenvolvimento eram realizados sobre um bebê sozinho e avaliados em suas competências motoras, como se as mesmas não tivessem nenhum valor de comunicação ou interação com seus pais.

Kanner (1943) foi o primeiro psiquiatra a descrever crianças que ignoram ou recusam tudo que vem do exterior, evitando tanto o contato físico como o contato pelo olhar. Na tentativa de construir um entendimento sobre o observado, Kanner atribuiu uma característica negativa para as famílias – mãe geladeira.

Hoje pensamos diferente, sabemos do empenho de uma família em estabelecer contato com seus filhos que lhes respondem com uma recusa. Hoje podemos, tranquilamente, substituir o adjetivo “geladeira” por “mãe dolorida ou sofrida”.

Sabemos da dor dos pais em não receberem as tão esperadas respostas de seus filhos, de se sentirem ignorados e como enfrentam estas dores e buscam muitas formas para lidar com isso. Neste caso, a nossa tarefa é tentar estabelecer um encontro entre o filho e os pais.

Nós analistas também somos afetados pelos dramas dos quais cuidamos, mas compartilhar ou demonstrar tais sentimentos pode mais atrapalhar do que ajudar as crianças e famílias que frequentam o CAPS infantil ou um consultório para tratamento. Tais sentimentos costumam ser uma ótima bússola para ajudar no tratamento, dão notícias sobre as vivências das famílias. Mas isto não quer dizer que entendemos ser possível achar um culpado ou uma causa única para o que está acontecendo com a criança e a família.

Toda esta discussão, da maior importância, vem sendo nosso foco, tanto nos acolhimentos institucionais como nos consultórios.

Esperamos que com estes questionamentos possamos disparar um bom debate. Obrigadas.


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[1]Psicanalistas, membros do Departamento de Psicanálise, docentes do curso Autismo e Psicoses na Infância: diagnóstico e projeto terapêutico, no Instituto Sedes Sapientiae.




 
 
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