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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    36 Novembro 2015  
 
 
ESCRITOS

SEM TÍTULO, 2015


A meu pai


RUBIA DELORENZO[1]

 

“Na plena luz da memória habitual, as imagens do passado pouco a pouco empalidecem, apagam-se, nada mais resta delas, não mais as tornaremos a  encontrar. Ou antes, nunca voltaríamos a encontrá-las se algumas palavras não tivessem sido cuidadosamente encerradas no esquecimento, da mesma forma que se deposita na Biblioteca Nacional o exemplar de um livro que sem isso, correria o risco de tornar-se inencontrável.”

                Marcel Proust, À sombra das raparigas em flor

   

“Todos temos uma Combray”, pensou a moça, ainda perplexa, diante do trajeto da memória, em tantos pontos, bifurcado.

Lepra. Essa foi a palavra quase inocente, lida ao acaso, que subindo da fundura como uma bolha, arrastou consigo a teia densa que chegou à superfície.

Mas, como não há inocência nas palavras, apresentou-se um tecido de signos que conjugava crônicas de vilarejo – sussurradas, clandestinas – e a história da loucura.

No princípio, foi a lembrança da viagem a Paris: a visita ao Hôtel de Dieu, hoje hospital geral. Ontem, abrigo de leprosos e insensatos.

Porque perscrutar o pátio todo do hospital, subir lentamente a escadaria, olhar de cima, do alto das arcadas, a simetria do edifício? Ignorava a razão que a compelia a esquadrinhar, procurando.

Foi um dia extraordinário. O da visita?

Num repente, veio colar-se à visão do pátio real num dia comum, a lembrança do mesmo pátio desgastado, descrito no livro, com as feias figuras errantes, que o filósofo soube, com palavras terríveis, cravar na imaginação.

Depois ainda, juntou-se um terceiro pátio, visto da janela superior do sobrado. Com ele, surgiram a mangueira, os depósitos de bananas deixadas ali, para amadurecer, o  pomar estendido, o abacateiro, o riacho, e do outro lado, ao longe, os pastos e a vacaria.

Fez-se um silêncio, um oco, um vácuo de sons.

Tudo ficou mudo, embora continuassem os rumores de gente, vozes, gritos... Brecadas, buzinas, apitos. Sirenes.

E toda a atmosfera meio mórbida – a sombra da lepra, a escultura do homem ilustre exibindo o trapo sangrento, sujo dos corpos lesados, ali no centro do átrio do hospital em Paris – trouxe de volta, mais que o pátio da infância da moça, trouxe a casa toda e a igreja como lugar destinado a ensinar a história dos calvários, dos martírios, dos milagres dos santos.

Na cidade pequena, adivinhavam–se, de longe, o vulto do lazarento e a presença do cigano. O medo inundava a alma dos habitantes da vila. Dizia-se que os ciganos, até recém-nascidos roubavam. As crianças sujas, em geral bonitas, nunca se sabia se tinham nascido no bando ou se tinham sido raptadas.

Meu Deus! Livrai-nos do contágio e da rapina!

Nas casas, ao correr a notícia, fechavam-se portas e janelas. Saíam apressados os empregados para recolher, ainda úmida, a roupa estirada no varal.

No entanto, o sinistro espreitava mesmo, não era fora, nas calçadas e nos quintais. Mas dentro, na ambiência lúgubre da casa do interior.

Na cozinha, pressagiava-se já a paranoia que um dia viria a tomar conta dos espíritos.

A geladeira e a despensa sempre trancadas, fechadas com ferrolhos e chaves, impediam o ataque faminto a mantimentos e víveres, por camundongos, ciganos pedintes e os criados da casa.

A sala de visitas ocupada por móveis austeros demais, só era aberta em ocasiões especiais. Por isso, exalava um cheiro de casa fechada, sem nome certo na língua. Não era exatamente azedo, tampouco ácido, quase um cheiro de bolor.

A tela de veludo negro, costurada sobre o fundo de jacquard, os motivos fortes do tecido que estofava poltronas e sofás, pesavam o ar. Enormes cabeças negras de leão, esculpidas nos braços das poltronas, suas bocas ferozes e selvagens, tiravam o sossego aos visitantes.

A lividez das meninas, urbanas, pequenas, contrastava com o ébano que tornava triste toda a casa, todo o acontecimento da visita.

O piano também negro, grande, mudo e abandonado, estava ali somente de enfeite. Ninguém mais sabia dedilhar notas alegres, inventar os sons da melodia.
Teria ecoado nesta casa alguma música? Teria nela penetrado alguma luz ? Um sol que entrasse sorrateiro pelas frestas ? Risos, algum calor?

Deixando a peça assombrada na direção do corredor, vê-se que a casa se adentra, se alarga.

Escura, recendendo a mofo, a sala, ladeada à esquerda e à direita pelos quartos de dormir, é o lugar das refeições. Aqui fala alto a rudeza da vida. Aqui se blasfema. Reza-se também, mas a reza é fraca frente aos insultos e à ofensa. Amaldiçoam-se as perdas, as penas, as dores secretas, as injustiças do destino. Blasfema-se contra Deus e seus desígnios.

As rosas de papel de parede, pelo abandono de tudo à umidade, estão manchadas e desfeitas. Molhado, o revestimento se descola, mostrando descascada, sem pele, a parede morfética.

O odor, ele próprio é frio, causa arrepios e penetra nas roupas.

Ali, os cupins fazem seu trabalho, deixando ocos, quebradiços, o interior dos móveis, dos tetos e das pessoas.

Ao lado da sala à direita, vê-se o quarto do viúvo. Descorado, sem vida, a ausência da falecida sente-se em todo lugar. Objetos de toucador, escova, espelho, a tesoura de entiotar, o pó de arroz, parecem dispostos ali para sempre. Relíquias fora dos usos. Relíquias imóveis.

Esse homem, que pouco conhecia as crianças – sem saber como agradar – dava sempre um dinheirinho para ser gasto com as balas da venda e a garrafa de guaraná.

Para aquele velho seco, tão afundado em lembranças, estender a mão neste gesto de afeto era estender a mão para a benção.

No entanto, as crianças pressentem o perigo. Intuem que a tristeza, quando é muita, é daninha. Arrasta para as trevas.

A grande melancolia nasceu, refletiu a moça, em meio a este desfazimento de tudo.

Retomando a cartografia da casa, à esquerda está um cômodo curioso. Arrumado para obséquios religiosos, não parece um quarto de casal, apesar da cama grande, convidativa. Sem dúvida, ali se deitou a santa, mas na mesma cama, também se deitou a puta.

As flores frescas, os lençóis de linho, aparadores cobertos com toalhas brancas de alvura imaculada, lembram menos os aposentos do casal em núpcias do que a cerimônia sacra preparada na sacristia.
Todo o mobiliário está disposto para receber orações, confissões das faltas, palavras de contrição.

Em posição de destaque, no centro da peça, está uma imensa imagem do Deus Menino, de uma candura tão grande que faz vergonha ao pecador. Envolta em uma redoma de vidro, está elevada e, diante dela, o genuflexório. De joelhos, o crente se apieda, se arrepende.

A atmosfera do quarto é, digamos, a de um antro de purificação. Tenta-se nele conjurar o malfeito, expurgar os demônios da carne, esfregar o mal da língua ultrajante, penitenciar-se dos pensamentos impuros. A paranoia e a obsessão fermentaram neste ar misto, da tentação ao sacrilégio e do dever de limpar.

Da casa para a igreja e da igreja para casa, esse clima clerical vigiava. As crianças, desde pequenas, eram enviadas para o serviço da missa e era comum que o filho mais velho oficiasse ao lado do cura, usando também as vestes litúrgicas. Terminavam por habituar-se tanto ao cheiro da incensadeira, que punha no ar densas nuvens de perfume acre, como à catinga de madeira velha impregnada nas imagens sacras. Cheiros que no começo da vida pia provocavam vertigens e náuseas.

Além do olfato, outros sentidos afetavam – e muito -  as crianças. Na Casa do Senhor, a penumbra, os confessionários, os fiéis ajoelhados em respeito, a atmosfera de obediência cristã, guardavam sempre algum mistério.

Uma menina observa: “as santas estão vestidas como freiras.” De fato, se não são os mantos, são os hábitos de convento a esconder o corpo casto.

Mas a visão das imagens dos santos, envolvidas pelos panos roxos na estação da quaresma, seus corpos descobertos depois, passados os quarenta dias, levavam as crianças a cobrir os olhos, com medo. Retirados os mantos, ficam expostos o sangue, as chagas, o tormento do corpo ferido. São Sebastião flechado, em dor, derrete-se. São Lázaro, desmancha-se em pústulas.

E os devotos, compenetrados, fazem preces, acendem velas. Aguardam uma indulgência. Abnegados, vergam-se diante do mártir, de seu calvário, sua existência de aflição.

Assim se faz na vida piedosa toda uma narrativa que coloca ao lado do Bem, a servidão, o flagelo, o suplício.

E a memória, que a moça julgava lesionada por um grande clarão radioativo, fez reaparecer com contornos nítidos, as marcas indeléveis do pesar que rondava a casa de família: o sagrado e o profano, a reverência aos espinhos, à coroa de dor, tão propícias à fabricação da loucura.

Julho - 2015

 

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[1]Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. 



 
 
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