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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    36 Novembro 2015  
 
 
O MUNDO, HOJE

Realizou-se no dia 10.09.2015 o encontro em parceria do Instituto Sedes com o GVIVE para discutir O que torna uma escola desejante?

Seu objetivo foi o de abrir um debate com os participantes da rede pública e profissionais interessados na questão sobre as perspectivas possíveis para a Educação, retomando a experiência pioneira das Escolas Vocacionais, apresentada  por Alcimar Alves de Souza Lima e Esméria Rovai, a partir do livro recém-publicado
Escola como desejo e movimento: novos paradigmas, novos olhares para a educação.

Participaram da mesa, além de Alcimar e Esméria, M. Laurinda R. de Souza (pela diretoria), Paulo Angelo Martins (presidente da GVIVE), Luiz Carlos Marques (Diretor cultural e social da GVIVE), Renata Cromberg (psicanalista e membro do Departamento de Psicanálise do Sedes, autora do prefácio do livro) e Bernadete Gatti (pedagoga pela USP e Doutora em Psicologia pela Universidade de Paris VII, autora da apresentação do livro).

Segundo a Diretoria do Instituto, a participação intensa e implicada das pessoas presentes, tanto no relato de suas experiências quanto na tentativa de levantar propostas para a continuidade desses encontros, deixou evidente a importância e a potência do Instituto como espaço de hospitalidade possível para o fortalecimento e divulgação de experiências inovadoras no campo da Educação.

A seguir, o
Boletim publica a fala de abertura do encontro.

 

 

PODE A ESCOLA SER DESEJANTE?

M. LAURINDA R. SOUZA[1]


A utopia está lá no horizonte.
Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos.
Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos.
Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei.
Para que serve a utopia?
Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.

Eduardo Galeano




Preâmbulos:

Na semana passada encontrei um livro que me chamou a atenção: Como aprendi o português e outras aventuras, de Paulo Rónai. O título em si já aponta para uma aprendizagem que pode ser uma aventura e, portanto, uma descoberta, um prazer. Paulo Rónai, num tom afetuoso e comovente, conta como foi, em 1939, a sua descoberta dessa língua, depois de pedir a uma loja em Paris As cem melhores poesias líricas da língua portuguesa:

“O livrinho chegou-me às 9 da manhã num dia das férias de Natal. Às dez, eu já tinha descoberto o único dicionário português existente nas livrarias de Budapeste... Atirei-me então às poesias com sôfrega curiosidade. Às três da tarde, o soneto Sonho Oriental, de Antero de Quental, estava traduzido em versos húngaros; às cinco, aceito por uma revista, que o publicaria pouco depois”.

Iniciou-se, assim, o que Paulo Rónai chamou de a grande aventura intelectual de sua vida: a descoberta do Brasil através de sua literatura. Em 1941, fugindo da guerra e de um campo de trabalho na Hungria, chegou ao Rio de Janeiro. Tornou-se professor de latim e continuou suas atividades de crítico e tradutor. Escritor nas horas vagas, disse ele, sou professor por vocação e destino. Dele, escreveu Carlos Drummond de Andrade: “O português, como o aprendi. Paulo Rónai conta fagueiro. Outra façanha dele eu vi: aprendeu a ser brasileiro.”

Outro fato que me chamou a atenção foi também efeito de um encontro[2] . Desta vez, um encontro pessoal com uma pesquisadora brasileira: Denise de Brito Franco, que foi coordenadora da triagem neonatal da Secretaria de Saúde do Distrito Federal, entre 1992 a 2007 e responsável pelo Programa Nacional de Prevenção e Controle dos Distúrbios por Deficiência de Iodo do Ministério da Saúde. Denise realizou, na década de 80 do século passado, uma pesquisa em várias regiões brasileiras para detecção precoce do hipotireoidismo em função da falta de iodo no sal. Constatou-se que um índice significativo de crianças e adolescentes sofriam dos efeitos da falta aguda de iodo, uma substância cuja ausência no organismo provoca problemas de crescimento e falhas na formação do sistema nervoso central.
 ‘‘Ainda que as manifestações mais gritantes, que chocam as pessoas, não sejam observadas de imediato, é certo que as consequências irão aparecer no futuro’’. E ela completa: ‘‘É absolutamente inadmissível que haja carência de iodo em qualquer nação civilizada. O tempo que a carência de iodo leva para afetar o ser humano depende do metabolismo de cada um. Os especialistas, no entanto, estimam que um adulto ou uma criança não deve ficar mais de seis meses sem consumir o nutriente”.

Como toda a tragédia social, essa também afeta os pobres de maneira mais aguda. Quem tem uma alimentação razoável, e consome alimentos de regiões ricas em iodo, dificilmente terá problemas. Mas as populações desfavorecidas que vivem em áreas pobres em iodo, só se salvam na hora de consumir sal. E, se o sal estiver sem iodo, as deficiências aparecem. É justamente para proteger os mais pobres que o iodo é adicionado ao sal. A substância poderia ser colocada em outros produtos, como o leite ou o pão, sem alterar o gosto. Mas, no mundo todo, o iodo é adicionado ao sal porque, além de barato, se trata do produto de consumo mais universal. Além disso, a iodação do sal é um processo bastante simples.

Uma das consequências dos estudos de Denise foi a orientação a nível nacional para a dosagem correta do iodo no sal que levasse em conta a diversidade das regiões. Questão, portanto, de interesse nacional. Mas o que ocorreu? A diversidade, a singularidade, o específico de cada região, não pode ser levado em conta. Padronizou-se uma medida única com prejuízo para todos. Por que? Letargia do Estado, interesses das empresas responsáveis pela distribuição do sal, acoplaram-se no interesse capitalista comum.

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Dando um salto para o tema específico do nosso encontro de hoje, o que se pode dizer, da padronização curricular, acerca das singularidades regionais? Das populações para quem se pregam trabalhos sociais mas que curiosamente estão sempre à margem da sociedade?

Em agosto de 2013 fizemos, neste auditório, um encontro também em parceria com o GVIVE, para pensar A escola que queremos. Estávamos na efervescência das passeatas de junho e num movimento pulsante da juventude que saia da apatia e ocupava as ruas com alegria e reivindicações de combate à corrupção, de melhorias na qualidade de vida e mudanças necessárias na política e na Educação.

Hoje, o país vive outra espécie de turbulência: as denúncias e apurações sobre a corrupção, o desgaste dos partidos e das lideranças políticas, os registros crescentes da violência, o prenúncio de consequências nefastas no campo da economia. Mas, do caos e da turbulência pode-se, também, esperar uma nova organização social.

A  Educação continua presente nos discursos do Estado e nas reivindicações da população. Quando Dilma Roussef assumiu o segundo mandato, declarou ser a Educação “a prioridade das prioridades” e escolheu como lema para seu novo governo: Brasil – pátria educadora.

Mas a pergunta que insiste é: como retirar a Educação de seu nobre lugar de “Carta de Intenções”? Daí a importância de retomarmos, hoje, novamente neste lugar, a discussão sobre a possibilidade de viabilizarmos, na prática, o movimento necessário para a efetivação uma escola pública desejante, uma escola de qualidade, capaz de criar encantamento e desejo de aprender.

Como encaminhar soluções para o quadro de violência tão frequente nas escolas públicas (embora não exclusivamente nelas), para as condições de precarização dos trabalhadores ligados à Educação e  o sofrimento psíquico que produz inúmeros afastamentos por doenças decorrentes do exercício desse ofício? Onde o desejo se encontra substituído pelo automatismo repetitivo, pela apatia e pelo desinvestimento? Se uma das queixas que se fazia aos Ginásios Vocacionais era o de que esse era um modelo caro, o que se constata é que as escolas públicas atuais são imensamente caras pelo desperdício de potenciais humanos e pela morte do desejo.

As informações recentes sobre o gerenciamento de escolas públicas pela Polícia Militar, como forma de combater a indisciplina e a violência é  outra evidência das respostas que podem contribuir para “assassinar o desejo” e o espírito da revolta necessária.

Quando em 1990 perguntaram à Madre Cristina se o Sedes era uma escola, ela prontamente respondeu: “Não é fundamentalmente uma escola. Aqui é um espaço político para as pessoas que quiserem refletir e encontrar um novo modelo de sociedade. Tudo o que existe deve existir em função disso. Em função da solução de um problema que é a Justiça Social”. Ora, nesses termos, eu diria que o Sedes é sim uma escola e que implicar-se numa análise crítica da realidade que se vive deveria ser um dos objetivos de qualquer projeto educativo.

Não por acaso tanto o Sedes quanto as Escolas Vocacionais foram alvo privilegiado da ditadura, pois o que tais espaços propunham era o impossível desse regime; todo sistema totalitário tenta impedir a liberdade de pensamento e constrói uma realidade fictícia que desconsidera o desejo, as singularidades subjetivas e o pensamento crítico.

Mas a realidade mudou. Depois dos 21 anos da ditadura civil-militar, retomamos a democracia e podemos reconsiderar a atualidade e a importância de certos projetos educacionais. Não como modelos fechados a serem seguidos, mas antes como análise de experiências criativas onde o desejo e as singularidades faziam diferenças. Esses projetos  podem ser pensados como matéria prima para novas experiências pedagógicas e para a transformação necessária da escola que temos hoje, fazendo uma aposta na sua capacidade de autorregenerar-se e de autocriar-se. Uma pedagogia autopoiética, como afirmam Esméria e Alcimar. É ainda Alcimar quem afirma: “Memória não é passado; é o presente passado a limpo. Em mergulho no furo do futuro”.

Sabemos que as mudanças significativas na Educação passam também pelo reconhecimento das desigualdades sociais e pela garantia dos direitos humanos.  Em texto publicado na Folha de São Paulo, Marcelo Freixo frisava que “não se trata apenas de garantir direitos, é algo mais elementar: reconhecer a humanidade de alguém”. Haverá uma escola que possa reconhecer os Ninguéns como fazendo parte da espécie humana? Que faça o seu reconhecimento como Alguém? Com nome próprio, sobrenome e desejo? 

Os ninguéns: os filhos de ninguém, os dono de nada.
Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos:
Que não são embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não tem cultura, têm folclore.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata (Os Ninguéns, Eduardo Galeano).

09.09.2015

 

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[1]Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise, integrante da Diretoria do Instituto Sedes Sapientiae na gestão 2013-2015.
[2]Para efeito do tema do nosso encontro, onde se lê iodo no sal, podemos pensar nas práticas educacionais.




 
 
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