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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    36 Novembro 2015  
 
 
NOTÍCIAS DO DEPARTAMENTO

SOBRE O DEBATE DA PERCURSO 53


LUCIANA CARTOCCI[1]


Manhã de sábado na sala 6. Estavam presentes autores e colaboradores, gente nova e interessada, vários membros do Departamento, todos formando um grupo de conversas acolhedor e estimulante para o debate da Percurso 53.

Depois da repercussão alcançada pelo número 52, dedicado a ouvir psicanalistas sobre o período da Ditadura Civil Militar em nosso país, a atenção, desta vez, foi para quatro jovens autores. Abertos, criativos, promissores. Foram contando algo, cada um a seu modo, sobre suas relações com a psicanálise, percalços que enfrentaram na escrita, a escolha dos temas e suas motivações.

Após calorosa recepção de Renato Mezan, coordenador editorial da revista, Daniel Lírio iniciou uma exposição acerca do manejo de sessões com um paciente psicótico no CAPS. Mostrou-nos quanto um atendimento no serviço público, desprendendo-se de adversidades institucionais e aproveitando o melhor da instituição pode ancorar um significativo encontro entre paciente e analista, capaz de instaurar um campo de descobertas e desenvolvimentos para ambos. Tratava-se de um rapaz em dificuldade de se reconhecer numa filiação, balançando entre traços identitários instáveis - filho de pai negro e mãe japonesa, perguntava-se: pareço boliviano, pareço indiano?. Como algo que é e não é, a identidade está sempre em mudança ou vulnerável[2] . Nada porém, naquele rapaz, que o sustentasse nas ondulações de identidade através do tempo: apropriar-se da noção de si próprio é consequência das repercussões em um outro, alguém capaz de ouvir com proximidade e estranheza, contato e alteridade. Esta clínica foi exigindo de Daniel pensar as relações entre a fundação da identidade, da temporalidade e da alteridade.

Foi o que bastou para inspirar Tiago Novaes e estimulá-lo a falar de seu artigo. Escritor e também tradutor, Tiago deu asas a pensamentos que articularam muito bem o processo de escrita e o processo de análise. Para aquele que escreve, é necessário buscar o estranhamento mais radical, livrar-se de toda identidade que impeça a “viagem”. A analogia com o processo analítico foi logo vislumbrada. “É necessário ultrapassar as endogamias”, disse ele. Ainda que o exílio ocorra por uma imposição exterior, de ordem política ou outra, a partir dele o escritor constrói um desejo: o exílio torna-se uma deliberação, movida por uma profunda necessidade do ato mesmo de escrever. A estranheza, a sensação do estrangeiro, é constante em literatura: Eu, um outro é o título de um dos livros de Imre Kertész sobre o qual Tiago se debruça. É preciso perder o nome para que surja uma narrativa. A “viagem” é como um trauma, traz estranheza, desidentificação, e é preciso criar a partir da estranheza: “se você não se desidentifica e cria, você sucumbe”, diz Tiago. Para o paciente de Daniel, era preciso ter um nome que ancorasse uma narrativa. A necessidade de um nome e a necessidade de perder o nome comunicam-se paradoxalmente, exigem-se mutuamente, e o sentido deste paradoxo pode ser retirado do que ouvimos de Daniel e Tiago.

Não importa que a viagem seja interior ou para lugares distantes, tanto quanto seja o que provoque de dissolução, estranhamento e angústia. No lugar estrangeiro, o escritor reencontra a dimensão poética da linguagem. O analista suscita este estranhamento produzido pela linguagem através de sua escuta.

E foi assim que seguimos para os percalços da tradução, neste volume, do texto A Trança, de Fédida. Os percalços de tradução são ligados ao desafio de dizer outra vez, em língua familiar, o que foi dito em língua estranha. Renato Mezan lembra que a tradução pode ser praticada segundo diferentes posturas: aquela que busca se aproximar ao máximo da língua de origem, reproduzindo expressões que guardem algo da literalidade da língua original, ou a que busca criar numa outra língua, numa nova formulação, o mesmo sentido encontrado no original. Mezan observou que, para Laplanche por exemplo, a tradução tem sempre que buscar máxima proximidade com a língua de origem, o que, segundo ele, obrigou o psicanalista francês a valer-se de  neologismos, de palavras ou expressões que o fizeram perder a forma muitas vezes coloquial de Freud.

Tradução, transcrição. Como sabemos, a linguagem nunca recobre todo o real. E ficamos com a suspeita de que a estranheza, por mais que se busque a unidade com o texto ou com a cena original, acaba sempre por se refazer. Quanto à tarefa das transcrições de casos, é importante, diz Mezan, que a escrita guarde a veracidade da experiência vivida na transferência.

Depois de um intervalo para o cafezinho, onde a conversa continuou, será Teo Araújo quem falará sobre seu artigo, e iremos então para um caso de histeria atendido por Fairbain. Teo, por assim dizer, procurou iluminar a “viagem” de Fairbain sobre a identidade sexual de uma paciente. Indagações de Fairbain surgem paralelas ao relato clínico propriamente dito. E não parecem informar o relato: Fairbain não construiu pontes entre suas indagações e o que relatou sobre a paciente. Teo resgata as indagações de Fairbain de sua posição marginal - e o faz para repensar a novidade que a transferência possibilita, pela presença concreta e indagadora do analista, por suas interpretações ou intervenções, o que pareceu escapar ao texto clínico do próprio Fairbain.

Alfred Michaelis, vindo tanto da filosofia quanto da psicanálise, conta-nos que buscou preservar a equidade na relação de Freud com Nietzsche, sem precisar defender, atacar, privilegiar um ou outro. Presença ora nítida ora esfumaçada de um, Nietzsche, no outro, Freud. Do artigo de Alfred, ficamos sabendo que a clínica, segundo o próprio Freud, veio cada vez mais afastá-lo da filosofia. A autoria marcou um ponto de vista irredutível. Ao mesmo tempo, Freud parecia recear perder-se em Nietzsche, como fica sugerido em carta a Fliess: “...deixei de lado o estudo de Nietzsche, embora – ou melhor, porque – estivesse claro que eu encontraria nele percepções muito semelhantes às psicanalíticas”. Inquietante unheimlich ...

Finalmente, dedicamo-nos à seção Debates Clínicos. De certo modo, “nosso” tema continuou se desenvolvendo, agora com Flávio Ferraz que conta como foi comentar uma sessão sem saber quem era o analista. Houve a surpresa de observar como, apesar de construções teóricas diversas, Christian Dunker, o outro comentador, havia encontrado a sugestão de um manejo clínico similar ao de Flávio. E houve também a surpresa de os dois debatedores terem se afastado dos encaminhamentos dados pelo analista que ofereceu as sessões, David Levisky. Qual o mínimo de lógica comum em psicanálise? Quanto a orientação teórica define o manejo? Para Flávio, entre teorias, é o paciente que se revela e de algum modo pede um determinado manejo ao analista, o que justificaria a proximidade com o colega, C. Dunker. Contudo, é exigido do analista que ele esteja suficientemente desprendido de teorias. Daniel Lirio acrescenta (rebate?) que, entretanto, a partir de um diagnóstico que cabe ao analista fazer, baseado em sua formação teórica - por exemplo, diferenciando neurose e psicose -, o manejo das sessões será completamente diferente.

Terminando de escrever este relato do nosso encontro, vejo que o recorrente nas discussões foi sempre a estranheza, aquela que produz o amálgama identidade-alteridade, angústia, movimento. Do atendimento do psicótico à vertigem do escritor, das semelhanças e diferenças entre autores, influências que deixam marcas, inconscientes ou não, à tradução de um texto ou à transcrição de um caso. Fui então em busca deste número da revista e, na surpresa do après coup, (re)vejo que o título deste volume é: O estranho em nós: clínica, sociedade, cultura...

 

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[1]Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante do conselho editorial da Revista Percurso.
[2]Lembro José Miguel Wisnik, noutro debate recente, durante a III Jornada do Feminino, quando, pensando a complexidade vertiginosa da questão identitária, assinalou que a palavra persona,“por onde soa”, corresponde a alguém, pessoa, mas também à máscara, personagem, o que remete ao que sou e não sou. Como na palavra francesa  personne, lembrou Wisnik, que, frequentemente, corresponde a ninguém.




 
 
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