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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    45 Abril 2018  
 
 
ESCRITOS

CORPOS EM TRÂNSITO


RUBIA DELORENZO [1]


Momentos inquietantes, perturbadores: a mulher no homem, o homem na mulher, o corpo infantil no hormônio farto, o corpo jovem no maduro, o maduro no corpo velho.


Na velhice, os corpos em trânsito transpiram de alívio e de medo. É a experiência do transitório que exalam. São as formas da mutação que exibem.


Esses corpos, de exuberantes passam a sua forma discreta, de fartos passam a encolhidos, de firmes a gelatinosos.


O rosto vai se parecendo com animais pequenos, um coelho, um rato. Mas pode ganhar também grandes orelhas de lobo. Ou o aspecto paquidérmico dos animais sem pescoço, com suas crostas tão grossas que mal lembram a pele.


No corpo do velho, em seu rosto, os traços dos outros forçam, empurram, sob. Surge o olhar sem viço, o nariz ancestral. Fragmentos, restos de outros corpos, vestígios de outros gestos, espiam. A mãe caolha ou manca, a velha furiosa, a demente. Na voz já murcha, em falsete, é audível, às vezes, um tom decidido ainda. Outras, um tom já desabado, melancólico. O lamento, as varizes nas pernas, as longas caminhadas, o peso nos ombros. Caídos.


Toda a genética, toda a fonética, tudo se infiltra, se filtra nos traços. No movimento um tanto abrupto, no andar já claudicante...


Que terrível descobrimento o da transposição do tempo sempre mais para frente, nos corpos já tão gastos, superfícies corroídas, descarnadas, Giacometti.


Difícil equilíbrio, queda vacilante, projetar-se para frente, inclinar-se para trás. A boca aberta preparando o grito. Os ossos já perfurando as faces, faces fósseis.


Extinguem-se as formas, volume, lisura. Outra vez Giacometti.


Ossos tão finos, tão quebradiços. Corpos tão provisórios. Tão próxima a forma final do esqueleto.


As esculturas de Giacometti “são familiares, caminham nas ruas...” diz Genet. Mas as encontramos também confinadas nos asilos, nos leitos de morte, na figura dos velhos da família.


Genet diz que Giacometti usa com frequência a palavra destrambelhada. Usa-a sobretudo quando olha uma escultura sua.


A velhice é destrambelhada.


Fevereiro – 2018


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[1] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.





 
 
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