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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    45 Abril 2018  
 
 
O MUNDO, HOJE

MISOGINIA NA PSICANÁLISE


Helena Canto Gusso
Julia Fatio Vasconcelos
Manuela Crissiuma
Mariana Angelini
Melina Cavalcante
Paula Rojas
Renata Conde [I]

 

Ao longo dos últimos anos, acompanhamos uma série de movimentos reivindicatórios de direitos nos campos do gênero, da raça e de classe. Vimos a greve geral das mulheres na Polônia fazer recuar a proibição total do aborto, mulheres latinoamericanas realizarem atos, greves e lançarem a campanha ni una menos após brutais casos de estupro e feminicídio. Por todo os Estados Unidos, pessoas saíram às ruas no ato das mulheres contra o Trump. Muitas mulheres e alguns homens vêm denunciando de forma incessante casos de abuso dentro de Hollywood, do mundo dos esportes e em outras áreas, provocando uma onda de demissões e processos - entende-se que há uma mobilização no campo das relações de poder. Segundo elas o slogan é Time’s up.


No Brasil, os movimentos feministas foram fundamentais na sanção da Lei Maria da Penha, que criou mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar, na Lei do Feminicídio, que tornou crime hediondo o assassinato de mulheres apenas por serem mulheres, e na PEC das domésticas que regulamentou um trabalho que até então não tinha seus direitos reconhecidos no país. Também foi marcante o protagonismo das estudantes mulheres nas ocupações de escolas e nas denúncias de situações de violência que vivem dentro das Universidades. Um dos principais atores da rede Globo foi afastado após denúncias de assédio. No campo virtual explodiram #s como #MeuPrimeiroAssedio, #MeuAmigoSecreto, #AgoraÉQueSãoElas. As redes sociais vêm sendo usadas para denunciar, mobilizar e reivindicar um protagonismo feminino. Discussões sobre consentimento, o não da mulher e o direito ao próprio corpo têm um lugar importante nas lutas emancipatórias. Ainda avançando nesse campo, nos deparamos também com debates sobre as diferenças entre assédio e cantada, entre as pautas do feminismo branco, do feminismo negro, asiático e trans... Fala-se de perda de privilégios, de outra configuração das relações, questionando-se inclusive a própria concepção de poder.

Acompanhamos com esses movimentos críticas sistemáticas ao gerenciamento dos corpos das mulheres, à violência física e simbólica e à naturalização de lugares socialmente estabelecidos que apontam para uma história da dominação masculina - a misoginia tem sido pauta fundamental nessas discussões. Segundo Joan Scott [II], não é mais possível considerar somente as questões de classe - as categorias raça e gênero também são fundamentais para se pensar as estruturas de poder.

Nesse cenário, a história da desqualificação da mulher e da misoginia passa a ser entendida como a história também da transmissão cultural. Lacan [III] (1998) nas Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade feminina, afirma que os analistas também estão expostos aos discursos de sua época e, como quaisquer outros, a um preconceito relativo ao sexo. Nos indagamos, então, quais os efeitos dessa transmissão na psicanálise?

Marie Hélène Brousse [IV] afirma que, embora ocorra em alguns momentos, não há uma tradição dos analistas em assumirem posições políticas publicamente. Entretanto, reitera a importância dos analistas se interessarem “pela dimensão do político e da cidade” (p.14, 2003). Colette Soler [V] ressalta que para fazer a psicanálise existir, não há como o psicanalista - com sua psicanálise - se subtrair, se colocar como exceção e se “extraterritorializar” às questões dos discursos contemporâneos. Nesse sentido, com esses movimentos que explodem no campo social, os analistas são convidados constantemente a contribuir com o debate. Mas, não só isso, há que se perguntar: o que tais movimentos têm a contribuir para a teoria e a clínica psicanalítica?

O ciclo Misoginia na Psicanálise teve, portanto, como direção articular ao longo dos encontros, história, teoria e clínica, e a consideração desse tema na atualidade. Em abril de 2017, a psicanalista Vera Iaconelli, diretora do Instituto Gerar, nos convidou para fazer a curadoria de uma série de eventos que promovesse o debate dessas questões no campo da psicanálise. A proposta foi problematizar em que medida os preconceitos relativos às relações de gênero também se perpetuam no universo psicanalítico. A ideia era inverter a ordem: a psicanálise deixaria o lugar comum de analisar, interpretar e falar sobre algo, para interrogar a si mesma. Num cenário tomado pelos debates feministas e constantes críticas à misoginia, estaríamos nós, psicanalistas, de fora disso?

Começamos o ciclo com Um debate sobre as primeiras psicanalistas: Sabina Spielrein e Virgínia Bicudo. Duas analistas que possuem uma produção teórico-clínica fundamental. Resgatar suas histórias e contribuições teóricas é uma forma de lembrar que essas não foram as únicas mulheres que tiveram suas trajetórias pouco reconhecidas pela psicanálise e também de nos perguntar os efeitos desse silenciamento ainda hoje. Nesse sentido, para a psicanálise, campo em que a palavra é tão cara, que lugar coube às vozes das primeiras psicanalistas mulheres? “Sabemos que o apagamento de uma história não se dá ao acaso, obedece a uma gramática que não é individual, regida por saberes que remetem tanto ao saber inconsciente, como a uma lógica de dominação e poder”, afirma Ana Paula Musatti Braga que junto com Renata Cromberg trouxeram contribuições fundamentais ao debate.

Na mesa seguinte, Renata Rampim e Tatiana Assadi contribuíram com o tema - Histeria: história, atualidade e política. Assim como propõe Juliet Mitchell [VI] (2006), questionamos se a histeria é um diagnóstico ou, às vezes, apenas um insulto. Embora haja uma vasta produção teórica sobre o tema, ainda confundimos mulher, histeria, feminino e feminilidade. A partir disso, quando se fala da histeria, preconceitos sobre a mulher seriam reproduzidos tanto na escuta como na teoria? Em que medida a naturalização da mulher como objeto teria efeitos também na maneira como os analistas abordam a histeria? Na clínica, tomaríamos frequentemente a queixa histérica apenas como “lamúria” e deixaríamos de escutá-la também enquanto reivindicação de direitos? Citamos Bleichmar [VII] (1988):

Se no imaginário, a histérica supostamente se interroga sobre se é homem ou mulher, não é com respeito aos papéis sexuais, se não ao poder, à valorização, as formas de obter reconhecimento; não é a diferença de sexos ao que reage, mas a desigualdade imperante entre eles. Em todo caso, se tivéssemos que conceber um interrogante em torno do qual situá-la, poderíamos escutá-la perguntando-se sobre como aceder a poder identificar-se com seu gênero sem que isso implique ser inferior (p.196).

Dando continuidade aos encontros, Mara Caffé, Maria Lucia Homem e Sandra Berta trouxeram suas considerações acerca do tema Falo - estrutura e história. Sabemos que esse é um tema de debates importantes na psicanálise, assim como entre psicanalistas e feministas. Diálogos e discussões ocorrem em torno de que medida, para a psicanálise, o falo é tomado como significação da falta, enquanto estrutura da neurose, ou é ainda (con)fundido com o pênis por uma contingência histórica que é sistematicamente reproduzida. Nesse sentido, estaríamos subvertendo a ordem ao revelar a estrutura ou ainda confundimos pênis-falo, perpetuando uma história de dominação masculina? Considerando isso, quais os efeitos dessa referência ao órgão masculino? Seria possível pensar a falta sem estar em referência ao masculino quando adotamos o termo falo? Nesse sentido, lê-se em Irigaray [VIII]:

O feminino é sempre descrito como defeito, atrofia, inverso do único sexo que monopoliza o valor: o sexo masculino. Daí a demasiado célebre “inveja do pênis”. Como aceitar que todo o devir sexual da mulher seja comandado pela falta e, portanto, pela inveja, o ciúme, a reivindicação endereçados ao sexo masculino? Quer dizer que essa evolução sexual não se referiria nunca ao próprio sexo feminino? (2017, p 82).

Na última mesa, Feminismo e Psicanálise, a interlocução entre esses dois campos foi pensada a partir do feminismo interseccional - que entende classe, gênero e raça como categorias articuladas entre si, sobre as quais não se pode assumir a primazia de uma sobre a outra. Tendo isso em vista, na medida em que a direção da análise aponta para a subversão do sujeito e a dialética do seu desejo, perguntamos: subverter o modo como se compreende as relações de poder produz efeitos na maneira como escutamos o sujeito e pensamos a condução de uma análise? Relativo a isso, Maria Rita Kehl [IX] (2008) afirma: “se a produção psicanalítica contemporânea não puder acompanhar estes deslocamentos, a psicanálise deixará de fazer sentido. A psicanálise nasceu para dar voz ao emergente e não para corroborar com a tradição” (p. 258). Nesse sentido, acompanhando os deslocamentos produzidos pelo feminismo nas últimas décadas, o que os psicanalistas, com a sua psicanálise, podem repensar, de maneira crítica, na teoria e na clínica, para que possamos alcançar a subjetividade de nossa época? Para esse debate contamos com a presença de Ana Laura Prates Pacheco, Léa Silveira e Fabiana Villas Boas (Roda das Pretas).

Convidamos as interessadas e interessados a assistir os vídeos dos debates que estão disponíveis no canal do Instituto Gerar no Youtube.



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[I] Psicanalistas que integram o Grupo de estudos e trabalho em psicanálise e feminismo, grupo criado em 2015, com a proposta de pensar diálogos e tensões entre feminismo e psicanálise, a partir de diferentes espaços como rodas de conversa, debates e produções teóricas. Helena Canto - acompanhante terapêutica, psicanalista e aspirante a membro do Departamento de Psicanálise; Julia Fatio Vasconcelos - acompanhante terapêutica e psicanalista; Manuela Borghi Crissiuma - acompanhante terapêutica e psicanalista; Mariana Facanali Angelini - acompanhante terapêutica e psicanalista; Melina Rosa Cavalcante - consultora de diversidade e recursos humanos e mestranda em psicologia social na USP; Paula Grimberg Rojas - psicanalista e acompanhante terapêutica; Renata Conde - psicanalista.
[II] SCOTT, Joan. Gênero uma categoria útil para a análise histórica. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/1840746/mod_resource/content/0/G%C3%AAnero-Joan%20Scott.pdf
[III] LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
[Iv] BROUSSE, Marie Hélène. O inconsciente é a política. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2003.
[V] SOLER, Colette. O que Lacan dizia sobre as mulheres. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2005.
[VI] MITCHELL, Juliet. Loucos e Medusas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
[VII] BLEICHMAR, Emilce Dio. O feminismo espontâneo da histeria. Porto Alegre: Artes médicas, 1988.
[VIII] IRIGARAY, Luce. Este sexo não é só um sexo: sexualidade e status social da mulher. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2017
[IX] KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do feminino. Rio de Janeiro: Imago, 2008.





 
 
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