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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    45 Abril 2018  
 
 
NOTÍCIAS DOS CURSOS

MAIS UMA VEZ: SURPRESA!


ANA MARIA SIGAL[I]



Todo final de ano, quando se abrem as inscrições ao nosso curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma, começamos a nos preparar para a organização do ano seguinte. Ao final de 2017, Natalia Gola deixou nossa equipe por razões pessoais: precisava de tempo; Alessandra Sapoznik pediu um ano de licença para terminar seu doutorado e Daniela Danesi, depois de muitos anos levando em frente seminários e supervisões, tomou um ano sabático no seminário, mas continua com as supervisões dos aprimorandos da Clinica do Sedes. Ademais, perdemos nossa querida Eliane Berger. Em função destas mudanças, convocamos três colegas para trabalhar conosco; são eles: Cristina Barczinski, que trabalha na equipe editorial do Boletim Online há mais de 10 anos; Cristina Herrera, que participa de numerosos trabalhos no Departamento, entre eles a coordenação da Incubadora de ideias e teve uma grande e longa participação na Clínica do Sedes e Rodrigo Blum que, entre outras participações, há 10 anos dá aulas no GTEP. Além deles, seguem conosco: Christiana Cunha Freire, Iso Ghertman, Maria Marta Azzolini, Noemi Moritz Kon, Sílvia Nogueira de Carvalho e Soraia Bento.

Nossa forma de incorporar professores se dá através de convite, que nos 22 anos de funcionamento do curso tem se mostrado muito produtiva. Não fazemos concursos acadêmicos porque entendemos que não é só o saber que fundamenta uma boa transmissão. Se bem este seja fundamental, preferimos avaliá-lo através de publicações, apresentações públicas, trabalhos grupais no Departamento - que implicam o reconhecimento dos pares. O fato de um colega vir de um trabalho coletivo consolida nossa comunidade e forma laços sociais fundamentais para se integrar ao grupo de trabalho. Discutimos os candidatos, e o grupo, no seu conjunto, tem que aprovar por unanimidade a incorporação do colega. Só depois o convidamos.

Nosso grupo é coeso e muito bem formado, o que - sem dúvida - tem dado sucesso ao curso.

Mas este ano, mais uma surpresa: tivemos 143 inscritos para fazer o curso, dos quais aprovamos 102. O grupo tomou uma decisão, não queremos um crescimento ilimitado que acabe nos fazendo perder o controle sobre o nosso trabalho, que até aqui tem sido feito cuidadosamente.

O que será que desperta tanto interesse no estudo da psicanálise?

Em princípio detectamos no nosso perfil de alunos um grande grupo que vem de outras formações, inclusive muitos doutores e pós-docs de outras especialidades, assim como muitos artistas, cineastas, escritores, advogados e pedagogos cujos trabalhos conversam com a psicanálise.

Nossa preocupação se deve a que muitos deles estão buscando a psicanálise como uma segunda profissão. Embora não sejamos um curso que pretende dar formação, sem dúvida oferecemos “uma perna” do tão conhecido tripé para percorrer o caminho da formação. Trabalhamos os andaimes da teoria freudiana, transmitindo um saber engajado e que se repensa permanentemente. Isto faz com que muitos dos que nos procuram vejam aqui a possibilidade do início de um caminho. Alguns chegam a nós porque veem na psicanálise uma forma possível de ter um trabalho que providencia uma forma de vida economicamente melhor que a que eles têm; têm a estranha ilusão de que a psicanálise os ajudaria rapidamente a se inserirem em um novo mercado que lhes agrada mais e que descobrem agora como uma possível nova formação... mal sabem nossos colegas do esforço que significa desenvolver e sustentar o fazer do psicanalista!

Outros porque tem uma situação econômica tranquila e querem se desligar de trabalhos que já não lhes dão a satisfação que eles buscam. Muitos chegam impulsionados por suas análises, depois de se apropriarem de um novo desejo.

Como a psicanálise não é uma profissão, não tem titulação universitária e não é regulamentada, os candidatos buscam caminhos possíveis, sendo nossa responsabilidade permitir que entrem em contato com o largo percurso que significa uma formação. É uma grande responsabilidade trabalhar com estes alunos, porque precisamos transmitir a ideia de que esta formação requer, além de conhecimento da teoria, uma longa formação em análise pessoal e prática clinica supervisionada. O oficio de psicanalista supõe um caminho artesanal que vá entretecendo as transferências.

Temos ainda um grande grupo de jovens formados, que estão se iniciando na carreira, em Psiquiatria e em Psicologia, também em busca dos inícios. Muitos deles estão trabalhando em CAPS, em ONGS, em Hospitais e encontram no curso uma possibilidade de pensamento e de reflexão sobre o que estão fazendo. Estes colegas podem se apresentar para ocupar os lugares de aprimoramento que a Clínica do Sedes oferece, para atender pacientes.

Muitos alunos nos procuram também para complementar com este estudo as atividades nas quais estão engajados: são professores, orientadores escolares, pedagogos, advogados, promotores ou juízes e coordenadores de diversos grupos, que se aproximam porque se oferece um percurso para conhecer as raízes da formação subjetiva.

Os numerosos artistas que se aventuram neste caminho querem se aprofundar nas raízes do ser para expandir mais seus horizontes. A riqueza que se encontra nos grupos, a partir desta imensa variedade de candidatos, dá ao estudo e aos grupos uma possibilidade bem arejada para aproveitar as diversas fontes das quais a psicanálise se nutre.

No dia 22 de março oferecemos uma aula inaugural para receber nossos alunos. Queremos compartilhá-la com vocês.



AULA INAUGURAL DO CURSO CLÍNICA PSICANALÍTICA: CONFLITO E SINTOMA
Março de 2018

ABERTURA



ANA MARIA SIGAL [II]



Caros alunos,

Estamos aqui reunidos para recebê-los, ao iniciar este novo ano de 2018. Vamos nos apresentar para que conheçam a equipe com a qual vocês irão trabalhar. Embora cada seminário seja conduzido por um professor, somos um conjunto de psicanalistas que pensa e divide as questões do curso coletivamente. Nós nos reunimos permanentemente para criar melhores condições de levar adiante nossa tarefa. Lucía Barbero Fuks e eu, Ana Maria Sigal, somos as fundadoras e coordenadoras do curso; junto a nós, nossos professores, que coordenarão os trabalhos nos seminários e são a alma da transmissão porque transitam com vocês no dia a dia com o texto. Eles são: Cristina Barczinski, Cristina Herrera, Christiana Freire, Daniela Danesi, Noemi Kon, Rodrigo Blum e Sílvia Nogueira. No segundo ano se encontram Iso Ghertman, Marta Azzolini e Soraia Bento, que não estão aqui presentes porque as aulas do segundo ano já começaram.

A marca da história

Começarei nossa aula inaugural lendo a nota pública do Sedes em relação aos últimos acontecimentos - tristes, imperdoáveis - que viveu nosso pais.



NOTA PÚBLICA DO INSTITUTO SEDES SAPIENTIAE – MARIELLE FRANCO, PRESENTE!

O assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, ativista negra, militante dos direitos humanos e relatora da comissão da Câmara de Vereadores responsável pelo acompanhamento da intervenção militar no Rio de Janeiro são mais uma manifestação do desrespeito à população civil vulnerável à violência e à barbárie que vem se consolidando no país.

A vereadora retornava do evento Jovens Negras Movendo as Estruturas.

As informações amplamente divulgadas das condições de perseguição e execução de Marielle Franco e do seu motorista Anderson Gomes tornam evidente que o ato faz parte de uma política de extermínio das populações vulneráveis. Os assassinos e seus mandantes sabem que podem contar com a segurança e a impunidade do Estado cada vez mais protegido pelo arbítrio e pelas armas dos que, no poder, vêm usurpando árduas conquistas democráticas construídas ao longo das últimas décadas no Brasil.

Os que cometeram este crime assassinaram uma vereadora combativa e querem mais: querem aterrorizar e desestimular a resistência ao retrocesso político, econômico e social no país.

Querem amedrontar a população vigiada por uma intervenção federal que se iniciou no Rio de Janeiro.

Querem o desmonte das políticas que atendem aos anseios da população brasileira.

Querem a desmoralização das lideranças combativas.

Querem submeter e humilhar todos os cidadãos e cidadãs que resistem à desconstrução do país e à reimplantação da barbárie.

Querem que os cidadãos pobres, negros e vulneráveis sejam exterminados.

Neste momento de espanto, dor e indignação, o Instituto Sedes Sapientiae se une a todos os que repudiam com veemência este ato perverso e vil contra Marielle Franco e Anderson Gomes.

São Paulo, 16 de março de 2018

 



Esta leitura responde a dois objetivos: por um lado, situá-los frente à instituição que vocês escolheram para abordar a psicanálise, instituição esta, marcada por uma ética caracterizada pelo compromisso de analisar e responder às exigências do contexto social para a construção de uma sociedade baseada nos princípios da solidariedade e da justiça social. Acreditamos que, como cidadãos e como psicanalistas, temos que nos responsabilizar pelo papel que nos corresponde na nossa vida e na nossa época; por outro, e a partir desta ideia, queremos oferecer a vocês o que nós pensamos sobre a psicanálise que transmitimos, uma psicanálise engajada no seu tempo.

A psicanálise tem a marca da história; tanto o estudo da teoria, como o modo pelo qual se conduz uma sessão clínica nos mostram as inscrições individuais e coletivas que se expressam no discurso. A psicanálise trabalha para desalienar o sujeito. É uma forma de intervenção ético-política. Pela forma em que opera nosso saber, acaba eventualmente se tornando ameaçador, ao propor que o sujeito seja mais regido pelo desejo que pelo terror e pelo submetimento.

O processo psicanalítico deveria estar em oposição radical aos atos totalitários, uma vez que este processo quer dar ao sujeito a obtenção de uma liberdade interna para questionar, e não se submeter cegamente. Um espírito livre não pode passar sobre os acontecimentos e os indivíduos com um olhar indiferente.

Começamos nossos seminários estudando a Autobiografia de Freud, que nos fala do modo em que sua vida se relaciona com a cultura e os fenômenos sociais da época. Neste texto, e em toda sua obra, podemos ver que o transcurso de sua vida tem íntima ligação com sua produção teórica. A psicanálise não seria a psicanálise se Freud não fosse Freud. A partir do mergulho na sua obra, será possível perceber o quanto sua leitura nos toca como sujeitos, e quanto suas palavras às vezes tocam nosso inconsciente. Por isto pensamos que o estudo da psicanálise é mobilizador e pode ser transformador.

Nosso Departamento também tem as marcas da história. Por causa do exílio, um grupo de analistas argentinos chegamos ao Brasil vindos de uma terra assolada por uma feroz ditadura militar. Aqui se produziu o que poderíamos chamar um “bom encontro”, no dizer de Deleuze. Ao chegarmos, fomos recebidos de forma ímpar por nossos colegas brasileiros, encabeçados por Regina Schnaiderman. Este encontro permitiu consolidar e desenvolver um curso que já estava em gérmen de formação aqui no Sedes. Foram duas histórias que se cruzaram, e podemos dizer que este curso é o que é por sua biografia. Assim nasceu o Curso de Psicanálise, 40 anos atrás, que anos depois deu origem ao Departamento de Psicanálise, no qual este curso – Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma – há 22 anos se alberga.

Nosso curso se insere dentro de uma estrutura maior, a do Instituto Sedes Sapientiae. Este Instituto também tem uma marca política particular na história do país: foi fundado em 1975 e dirigido por muitos anos pela Madre Cristina, uma figura significativa na democracia, que lutou corajosamente contra a ditadura militar brasileira, em favor da Anistia. Isto dá a cor e a marca do que aqui se transmite.

Desde aquela época, nosso pensamento estava definido por certos parâmetros. Tinha uma marca que colocava o Curso de Psicanálise como um curso alternativo e como uma alternativa de formação ao modelo tradicional da Associação Internacional de Psicanálise, a IPA. Nunca trabalhamos com a ideia de analise didática, nem com a ideia de que o transcurso por um curso ofereceria uma titulação, sempre pensamos a formação como um percurso que não tem fim e sempre se ressignifica. A forma e a escolha dos textos também tinha uma marca identitária que continua valendo para as leituras que realizamos neste nosso Curso de Conflito e Sintoma.

Valorizando amplamente o mundo interno, nunca deixamos de considerar a forma pela qual o social, o político-cultural e o econômico se fazem presentes no sujeito, para marcar sua história. Quiçá num primeiro momento não seja claro o que isto significa, mas à medida que vocês se aprofundem na teoria, poderão ver que nossa leitura não é uma leitura coagulada, estagnada no tempo. Fazemos uma leitura cuidadosa de Freud considerando as questões datadas pela história e incorporando tudo aquilo que os avanços do conhecimento nos vão oferecendo. Trabalhamos com uma concepção de sujeito no qual a fantasia não é uma produção psíquica independente das marcas dos acontecimentos vividos, buscamos articular os acontecimentos históricos significativos com as fantasias nas quais se inscrevem. O acaso tem um lugar na teoria, o que nos permite pensar o inconsciente como um sistema aberto que dá espaço a novas formações inconscientes. Temos uma forma particular de pensar a doença e a saúde, o normal e o patológico. Priorizamos o conceito de pulsão, com um objeto não fixo, ao invés da noção de instinto, descolando o sujeito da determinação biológico-instintivista. Isto nos permite pensar a sexualidade como singularidade, entendendo melhor os novos modos de sexuação, descolando-os da biologia e dos aspectos normativos. Entendemos o sexual como centro do psiquismo humano mas enfatizamos a alteridade como sua fonte originária. O estudo do narcisismo e a revalorização e compreensão do Complexo de Édipo, acrescentando novos parâmetros, também nos possibilitam sair de um esquema que só considera a formação tradicional da família para incluir as novas modalidades parentais e familiares. Também pensamos o sujeito como um sujeito cindido, que inevitavelmente tem que se deparar com a falta e consideramos o sintoma uma expressão do dizer do inconsciente, que não deve ser apagado e sim escutado.

Interessa-nos uma psicanálise engajada, que ofereça à sociedade elementos de transformação; vimos desenvolvendo um estudo da obra freudiana, reconhecendo os problemas que a teoria tem - em função do momento histórico em que ela se desenvolveu - e buscando fazer uma leitura que a faça avançar naqueles pontos que, respondendo à moral sexual civilizatória do momento, ficaram a nosso ver mal resolvidos. Nossa ideia é fazer trabalhar o texto freudiano, questioná-lo em sua leitura, estarmos abertos para rearticular conceitos e sobretudo não pensar que somos os verdadeiros leitores da psicanálise ou que já chegamos à conclusão final. Sabemos que oferecemos uma leitura possível e estamos abertamente contra as ideias e teorias dogmáticas que pensam que representam a verdadeira psicanálise.

O Departamento de Psicanálise nos oferece um caminho para formação permanente, um espaço de reflexão para nosso saber. Contém em si numerosos grupos de estudo e de trabalho e dois curso a mais do que o nosso. O Curso de Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea, que é um curso de aprimoramento de dois anos de duração e transmite a psicanálise que aborda as formas de sofrimento psíquico ligadas aos novos modos de subjetivação. E o Curso de Psicanálise, um curso de formação de analistas, com duração de 4 anos, que exige uma profunda análise pessoal assim como trabalho clínico e supervisão grupal e individual, somados a um conhecimento aprofundado da teoria psicanalítica.

Qual a característica deste nosso curso

É importante entender que este não é, nem pretende ser, um curso de formação de psicanalistas.

Ficamos muito felizes por termos sido procurados, cada vez mais, por um número muito grande de profissionais que vêm de outras áreas. A grande quantidade de profissionais das artes, de antropologia, advocacia, história, cinema, música, assim como professores, orientadores escolares e colegas que trabalham com grupos, nos mostra o constante interesse que a psicanálise tem para as ciências sociais, entendendo que é mais um elemento que se procura para melhor compreensão da subjetividade, tendo presente que a psicanálise não é uma visão de mundo ou uma ideologia. O quanto se enriquece a psicanálise no cruzamento com estas diversidades, será uma marca que o trabalho de vocês nos seminários poderá valorizar. Este sempre tem sido apreciado por nossos professores, assim como por nossos alunos, como um elemento altamente enriquecedor da teoria.

Este curso oferece sim um importante mergulho na obra freudiana. A formação de um psicanalista é um longo processo que não pode se banalizar, ao se supor que, em um curto período de um ou dois anos de estudo da teoria, poderíamos nos autorizar como psicanalistas. Esta formação exige um longo percurso. Vocês poderão encontrar aqui o início de um caminho, mas fazemos questão de transmitir a ideia de que nosso trabalho teve início no interesse de oferecer uma ferramenta que poderia ser utilizada por profissionais de outras áreas para obter uma melhor compreensão da constituição do sujeito.

A psicanálise que transmitimos tem sua linha fundamental baseada no pensamento freudiano. Nosso objetivo é iniciar os alunos numa reflexão que pretende oferecer um método de investigação, uma forma de abordar o modo de estruturação do sujeito e as patologias que podem ocorrer nos percalços desta subjetivação.

Hoje, depois de mais de 100 anos de sua aparição, a psicanálise continua sendo um saber polêmico porque, ao tirar o tema das paixões, da loucura, da sexualidade e da relação com o outro dos campos da medicina e da neurobiologia, nos coloca diante de uma ciência que escapa do campo do empírico, da medição, do observável, das evidências, para colocar o homem frente a uma verdade inatingível, produto de sua singularidade.

A psicanálise nos mostra um homem que não está limitado ao seu destino biológico. Freud pensa um homem que é produto de sua história, dos percalços pelos quais transcorreu sua existência e das marcas que estes deixaram; apresenta-nos um ser de palavra, marcado pela relação com o outro. Confronta-nos com a realidade, mas atribui à realidade psíquica e à fantasia um valor preponderante. Põe-nos em contato com um ser em conflito, que produz sintomas.

Numa era pós-moderna busca-se um homem feliz, um homem que circule pela vida sem enfrentar sua própria natureza, sua angústia, seu confronto com a realidade, sua própria limitação . É uma época na qual o fugaz quer marcar a história, é um momento em que se tenta apagar o conflito ao invés de reconhecê-lo e dar às pulsões em confronto uma via de saída que desaliene o sujeito e expanda suas possibilidades. Trata-se de um momento social no qual os medicamentos pretendem dar conta dos distúrbios da alma para apagá-los. Ao renegar o conceito de conflito e de representação psíquica, deixa-se o homem reduzido às substâncias químicas.

Queremos oferece-lhes um mergulho nas fontes do pensamento, para entender os diversos caminhos pelos quais transcorreu esta ciência. Estamos em um momento histórico no qual o avanço das religiões, a exaltação da psiquiatria e a neurobiologia estão querendo atribuir-se pleno poder frente às condutas que se geram no ser humano. A psicanálise só afirma seus alicerces aprofundando sua pesquisa e difundindo seu conhecimento para permitir que o homem seja visto de modo mais integral, conservando aquilo que é sua marca nos processos subjetivos inseridos no contexto social.




O SINTOMA



LUCÍA BARBERO FUKS [III]



O sintoma ocupa na clínica psicanalítica uma centralidade indiscutível. Encontra-se no fundamento que dá sentido à prática psicanalítica, assim como na origem do progressivo estabelecimento de seu método de trabalho e da descoberta do inconsciente.

Começa com a contrariedade que a HISTERIA desperta na medicina científica, no desafio às leis que governam a anatomia e fisiologia tradicionais. O sintoma baliza o devir de cada tratamento, desde sua configuração inicial em transferência, até sua formalização final, passando pelos momentos de impasse que inevitavelmente transitam em cada cura.

Da hipnose ao método catártico e à livre associação, são as histéricas que guiam Freud por esse caminho. O sintoma histérico ensinou muito aos psicanalistas.

Deste modo, o sintoma demonstra ocupar uma tripla posição de causa , motor e objetivo da análise. A noção de sintoma tem percorrido um longo caminho no trajeto analítico, e se em algo contribuiu à originalidade do tratamento, é por ter possibilitado perceber, desde o início, a relação problemática do sujeito consigo mesmo.

O achado, a descoberta, é ter colocado essa relação em conjunção com o sentido dos sintomas. É o desconhecimento desse sentido por parte do sujeito o que o coloca frente a um problema. Esse sentido não deve ser-lhe revelado, deve ser assumido por ele ao longo do processo analítico.

Podemos considerar quatro eixos na obra de Freud que é preciso estudar: eles estão na “Conferência XVII: O sentido dos sintomas”; na “Conferência XXIII: Os caminhos da formação do sintoma”. As duas conferências são do ano 1917.

Depois devemos considerar: Inibição, sintoma e angústia, de 1926, e finalmente Moisés e a religião monoteísta, de 1939.

Em “O sentido dos sintomas”, Freud afirma que é possível decodificá-los, porque, assim como os atos falhos e os sonhos, estão regidos pelas leis de condensação e deslocamento e mais importante que a supressão do sintoma é sua tradução, a procura do significado do mesmo, assim como se procura o sentido dos sonhos.

Nesse texto, Freud faz uma aposta que não se dirige só à desaparição do sintoma, senão a de que o doente obtenha também um conhecimento maior de sua subjetividade, compreenda a significação do mesmo já que, inicialmente, esse conteúdo pertencia ao INCONSCIENTE. Podemos dizer que esse significado não lhe pertence, lhe é alheio, compete ao INCONSCIENTE.

Em “Os caminhos da formação do sintoma” ele insiste na procura do significado do mesmo. Mas enfatiza, mais que o significado, o que chama deformação do sintoma, o qual se configuraria como uma formação de compromisso, resultante de um conflito, uma luta entre o recalque do saber não sabido do INCONSCIENTE versus a satisfação pulsional.

O recalque opera substituindo a satisfação. Freud diz: “as representações sobre as quais a libido transfere sua energia pertencem ao SISTEMA INCONSCIENTE e estão submetidas às leis que regem o processo primário, a condensação e o deslocamento.”

Nesta versão do sintoma como satisfação substitutiva, ele procura uma realização do desejo e assim mascara a pulsão. “O sintoma nasce como um rebento do cumprimento do desejo libidinal inconsciente, desfigurado de múltiplas formas”.

Pensando a formação do sintoma por esta via, podemos destacar duas questões:

Supõe um cumprimento do desejo

A procura de uma satisfação substitutiva, na formação do sintoma, se faz por um caminho sinuoso que tenciona mascarar a pulsão.

Temos que captar a mensagem oculta para que possamos desvendar o conflito e a implicação do sujeito nesse conflito. Temos também que aceitar que a satisfação do desejo não é reconhecida pelo paciente, que a percebe como sofrimento e se queixa disso. Isto faz parte do CONFLITO PSÍQUICO e foi por essa pressão que se configurou o SINTOMA.

Portanto, o que foi anteriormente uma satisfação, provoca neste momento uma RESISTÊNCIA.

Freud amplia sua descoberta e sua metodologia de trabalho e se debruça sobre os sonhos, os atos falhos, os esquecimentos e os chistes, para esclarecer através deles o fluxo das associações espontâneas dos pacientes em análise. Postula uma comunidade de estrutura com o sintoma neurótico.

As chamadas formações do inconsciente deixam em evidência o retorno do recalcado através das operações de condensação e deslocamento.

Exemplo de condensação: uma pessoa presente no conteúdo manifesto de um sonho acaba sendo, através das associações do paciente no trabalho de interpretação, a condensação de várias pessoas da vida real atual ou anterior do paciente.

Deslocamento: em um caso de representações obsessivas, o sentimento de culpa consciente e ilógico, devido a um crime imaginado a partir de uma notícia policial, se esclarecerá como resultado do deslocamento de um desejo masturbatório, recalcado defensivamente, que apenas se insinuava na consciência e foi rejeitado, dias antes da emergência do sintoma.

Em Psicopatologia da vida cotidiana Freud aborda os erros involuntários e constata que o retorno do recalcado se manifesta aí sintomaticamente, mesmo que a pessoa não sofra por esta manifestação, como no caso de um sintoma, por “se tratar só de um erro acidental”. Isto permite a Freud estabelecer, contrariamente ao discurso instituído, uma continuidade e não uma ruptura entre a psicopatologia das denominadas doenças mentais e a vida “normal” cotidiana.

Freud estabelece relações entre o mecanismo de formação do sonho e o mecanismo de formação do sintoma, e assinala analogias e diferenças. Os sonhos são realizações de desejos, podemos afirmar que os sintomas também.

Mas os sintomas são FORMAÇÕES SUBSTITUTIVAS e produtos transacionais entre dois sistemas em conflito. No sintoma se expressa tanto SATISFAÇÃO (procurada por um deles) como CASTIGO (procurado pelo outro sistema).

Em A interpretação dos sonhos (1900), o conflito ocorre entre os sistemas inconsciente e pré-consciente/consciente já que no APARELHO PSÍQUICO existem duas instâncias constitutivamente cindidas, separadas por uma barreira: a censura.

Resumindo: Os sonhos são realizações inconscientes de desejos recalcados que seguem o seguinte caminho: desejos inconscientes recalcados – censura relaxada durante o sono – formação de um produto transacional: o sonho.

Este modelo levou Freud a conceber que os sintomas da HISTERIA podem ser pensados segundo o modelo da REALIZAÇÃO DE DESEJOS. A ideia de tal realização põe de manifesto uma trama de representações nas quais operam os mecanismos que já mencionamos, como a condensação e o deslocamento.

No trabalho do sonho, um desejo sexual recalcado é transferido aos restos diurnos que melhor se prestam aos fins da deformação. Sobre isto opera a ELABORAÇÃO SECUNDÁRIA e, como produto desse trabalho, aparece o conteúdo manifesto do sonho.

Retomando os dois eixos que faltavam, resta falar de Inibição, sintoma e angústia (1926), onde Freud destaca o sintoma como formação substitutiva ou formação de compromisso vinculada com o recalque e a angústia de castração.

O sintoma indica o caminho e é substituto de uma satisfação pulsional interceptada, é um resultado do recalque. Essa satisfação pulsional, dirá nesse texto, provém do ID.

Aqui, como verão, entramos na SEGUNDA TÓPICA, que só vamos mencionar, porque, nesse primeiro ano do curso, nos detemos e aprofundamos nos conceitos da PRIMEIRA TÓPICA.

A direção definitiva sobre a concepção freudiana do sintoma aparece no final de sua obra, em Moisés e a religião monoteísta, de 1939. A formação do sintoma é o resultado do conflito entre o recalque articulado à angústia de castração versus a pulsão que insiste na procura da satisfação.

O sintoma provém do recalcado. Seria um representante perante o Ego. O recalcado é para o Ego terra desconhecida, algo desconhecido dentro de si mesmo.

Como vocês estão percebendo, o conceito de sintoma foi trabalhado insistentemente, ao longo da obra de Freud, e foi sendo enriquecido por novos aportes teóricos.

Para finalizar vou mencionar um conflito da atualidade: nos últimos anos tem-se questionado o uso abusivo da medicação tanto para adultos quanto para adolescentes e crianças. Medicações nem sempre necessárias se aplicam como modo de adestramento e silenciamento do sujeito e seus sintomas, sem levar em conta que o sintoma é precisamente a ponta do iceberg que convida a um deciframento. A emergência da ANGÚSTIA, correlata do sintoma, não é reeducável. É um alerta, indica um caminho. O psicofármaco tampona, não resolve, adormece o sintoma, silencia-o. A psicanálise tenta elucidar suas causas assim como, também, diminuir sua intensidade através do entendimento das mesmas.



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[I] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora do Curso de Psicanálise e co-ccordenadora do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma.
[II] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora do Curso de Psicanálise e co-ccordenadora do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma.
[III] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora do Curso de Psicanálise e co-ccordenadora do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma.





 
 
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