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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    45 Abril 2018  
 
 
NOTÍCIAS DO CAMPO PSICANALÍTICO

UMA VISITA À FERENCZI HOUSE


MARCIA BOZON [I]



Em setembro de 2017 viajei para Budapeste, onde tive a oportunidade de ser recebida por Judit Mészáros, atual presidente da Ferenczi House/ International Ferenczi Center and Archives, para uma visita a este local tão especial onde Ferenczi morou e desenvolveu sua clínica a partir de 1930. A construção é uma Villa composta por três pavimentos, cercada por uma enorme área verde em meio ao centro de Budapeste, no lado ocidental da cidade, Buda.

Ferenczi comprou uma propriedade na qual pudesse viver e trabalhar, em meio a uma linda área verde no centro de Budapeste. Contratou um arquiteto para fazer uma grande reforma que envolveu todos os três andares, sendo que ele e sua esposa, Gizella Ferenczi, viviam no primeiro andar, onde também ficava seu consultório. Ferenczi viveu nesta casa por um curto e intenso período entre 1930 e 1933, ano de sua morte. Lá escreveu seuDiário Clínico (1932), Confusão de línguas entre adultos e crianças (1933), além de diversas cartas para Freud:

Já estamos empacotando; a nova casa, quase spic-and-span , nos espera. A mudança acontecerá em 3 ou 4 de julho. Enquanto isso, eu estou trabalhando com diligência: sete a oito, nove horas por dia; o mecanismo mais fino do "trauma psíquico" e sua relação com a psicose também estão se formando em uma imagem muito impressionante, pelo menos para mim. (Ferenczi a Freud, Budapeste, 29 de junho de 1930, p. 394)

Toda a documentação da reconstrução da casa, assim como as correspondências entre Ferenczi e Freud, Ferenczi e Grodeck, fotografias e manuscritos, encontram-se disponíveis nos arquivos do Instituto, representando o legado da Escola de Budapeste dissipada pela emigração, pelo Holocausto e pela ditadura estalinista. Os Arquivos, considerados a “alma da casa”, constituem um testemunho da dicotomia provocada pela emigração dos analistas húngaros e pela sobrevivência daqueles que permaneceram não apenas durante os dias obscuros do nazismo, mas também, mais tarde, nos anos de submissão à ditadura estalinista (Mészáros, 2012). Os arquivos contêm o legado composto pela correspondência, fotografias, publicações e manuscritos da primeira e segunda geração de analistas que permaneceram na Hungria, além de documentos que fazem referência à perseguição da psicanálise nos “anos subterrâneos”, durante os quais, em meio às tensões políticas e sociais, era praticada às escuras, num ato de resistência e cumplicidade entre analista e paciente. Para as gerações de hoje, a Casa Ferenczi constitui um espaço de memória, representativo da capacidade de resiliência da psicanálise, abrindo-se para o intercâmbio acadêmico através de palestras, seminários e reuniões com pessoas e grupos de todo o mundo de modo que, a partir das perspectivas do passado, torna-se possível compreender o presente e as perspectivas futuras.


Um pouco da história nos faz compreender a importância da iniciativa da Sociedade Ferenczi e da Internacional Ferenczi Fundation de, em 2011, conduzidos por Judit Mészáros e Carlo Bonomi, comprar parte desta propriedade, mais precisamente o primeiro andar, impregnado de memórias e de emoções ligadas ao passado e a tudo que Ferenczi representa no desenvolvimento teórico da psicanálise.


A Hungria foi o primeiro dos países de língua não alemã onde a psicanálise atraiu um seguimento considerável. A Escola de Budapeste é caracterizada por uma série de ideias pioneiras, tendo como principal representante Sándor Ferenczi (1873-1933). De origem judaica, descendente de uma família de imigrantes das províncias do leste da Áustria (Galiza) , Ferenczi influenciou fortemente o movimento psicanalítico, especialmente a prática clínica, através de uma visão da análise como um processo de desenvolvimento de uma relação afetiva entre analista e paciente desde a perspectiva de um encontro. Além disso foi um dos fundadores da Associação Psicanalítica Internacional, concebendo a instituição como um grupo que pudesse exercer o fazer psicanalítico com liberdade, mantendo a fidelidade aos fundamentos propostos por Freud:

seria como uma família em que o pai não desfrutasse de uma autoridade dogmática, mas apenas a que ele tivesse direito por suas habilidades e trabalhos, de modo que seus pronunciamentos não fossem seguidos cegamente como se fossem revelações divinas, mas estariam sujeitos a críticas profundas, que ele aceitaria, não com a absurda superioridade do pater familias, mas com a atenção que merecia (Ferenczi, 1911, p.303).

Em 1913, Ferenczi fundou a Associação Psicanalítica Húngara em Budapeste, que teve Melanie Klein (1882-1960) como um de seus membros originais. Em análise com Ferenczi entre 1916 e 1920, Klein iniciou o desenvolvimento de sua técnica de análise com crianças em Budapeste, indo posteriormente a Berlim e Londres, onde se estabeleceu em 1926.

Judit Mészáros, atual presidente da Ferenczi House, se debruçou sobre uma extensa pesquisa a partir da correspondência entre Freud e Ernest Jones e entre Ferenczi e Freud, fornecendo ligações importantes entre a história da psicanálise em todo o mundo e o movimento de refugiados da Europa em meados do século XX. Seu trabalho sobre as condições políticas em que os analistas trabalharam e conseguiram sobreviver – apesar dos estados de cerco impostos pelos governos ditatoriais - também ressalta a importância do trauma no desenvolvimento da psicanálise. Entre os psicanalistas húngaros obrigados a deixar Budapeste no início dos anos 20 estavam, além de Melanie Klein, Margaret Mahler, René Spitz, Franz Alexander, Therese Benedek, Georg Gero e George Deverauz. Entre os que tentaram resistir ao exílio estão Alice e Michael Balint que, com Ferenczi, estabeleceram a formação psicanalítica na Hungria em 1926, assim como uma clínica de baixo custo em Budapeste. A pesquisa de Mészáros suscita muitas questões sobre a forma como os eventos políticos do século XX moldaram o desenvolvimento do pensamento e da prática psicanalítica.

Em sua pesquisa, a autora se dedicou à composição de uma “árvore genealógica da Família Psicanalítica de Budapeste”, entre 1908 e 1943. No cartaz exposto na sala que outrora serviu como local de trabalho de Ferenczi, vemos a dimensão de sua influência na formação de analistas na época. Observando a imagem abaixo, vemos que todas as folhas pintadas de verde claro trazem impressos os nomes daqueles que se analisaram com ele nesse período, entre os quais estão Melanie Klein, Georg Grodeck, Ernest Jones e Michel Balint.


O estudo de Mészáros traz em seu cerne a pergunta sobre o significado da imigração dos analistas húngaros para o desenvolvimento da psicanálise contemporânea, apontando para áreas em que seu impacto pode ser observado, influenciando tanto o método terapêutico como a formação de analistas. Nesse sentido, podemos ressaltar a inclusão do fenômeno da contra-transferência observado por Ferenczi a partir de 1919, representando uma mudança fundamental na compreensão da relação de mutualidade entre analista e analisando, baseada num vínculo de confiança; a importância da comunicação autêntica por parte do analista como um requisito fundamental na análise, pois declarações falsas poderiam resultar numa dissociação remetendo à dinâmica das relações patológicas anteriores; as primeiras teorias de relações de objeto, introduzidas por Ferenczi e desenvolvidas por Michael Balint, Alice Balint, Imre Hermann, Melanie Kleine, Margaret Mahler, Therese Benedek, René Spitz e posteriormente por Winnicott; a contribuição dos psicanalistas húngaros no campo da psicossomática psicanalítica, especialmente Ferenczi e Groddeck, que compreendiam o corpo e a psique como um sistema único, no qual os processos psíquicos e somáticos fluem, afetando-se mutuamente. Judit Mészáros se dedicou ao estudo da influência da Escola de Budapeste na psicossomática contemporânea num artigo intitulado “ Contributions of Hungaryan Psychoanalysts to Psychoanalyst Psychossomatics ”, publicado no The American Journal of Psychoanalysis em 2009.


Em seu discurso de inauguração da Ferenczi House, Mészáros ressalta que a sobrevivência intelectual da Escola de Budapeste decorre da solidariedade dos analistas americanos que criaram o Comitê de Emergência de Alívio e Imigração, que recuperou as perspectivas de sobrevivência de analistas de Budapeste e de outros países da Europa. A abertura do Ferenczi Center em Nova York e o apoio para a constituição de um Centro Ferenczi em Budapeste demonstraram o empenho na preservação e transmissão do legado da Escola de Budapeste para as próximas gerações, mantendo vivo o “espírito de Ferenczi” que representa, acima de tudo, o respeito à soberania humana e o foco na possibilidade da psicanálise constituir uma ferramenta para a autonomia e para a cooperação construtiva voltada para o desenvolvimento de conexões interdisciplinares pautadas na tolerância, na capacidade de cooperar e na capacidade de suportar as tensões causadas pela incerteza.

Referências:

Mészáros. J. Ferenczi and Beyond: Exile of the Budapest School and Solidarity in the Psychoanalytic Movement During the Nazi Years. Karnac Books, USA. 2014.

Mészáros. J. Contributions of Hungaryan Psychoanalyysts to Psychoanalyst Psychossomatics . The American Journal of Psychoanalysis, USA. 2009

https://www.sandorferenczi.org/the-ferenczi-house/



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[I] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, articuladora da Área de Publicações no Conselho de Direção gestão 2017-2018.




 
 
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