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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    45 Abril 2018  
 
 
LITERATURA

SOB O SOL DE MAIAKÓVSKI


DÉBORAH DE PAULA SOUZA[I]



Para o júbilo
o planeta
está imaturo.
É preciso
arrancar alegria
ao futuro
À Serguéi Iessiênin, Maiakóvski



Saiu no final de 2017, pela editora Perspectiva, uma nova edição, revista e ampliada, do livro Maiakóvski Poemas, do poeta russo que se matou com um tiro no peito em 14 de abril de 1930, aos 36 anos, depois de incendiar a cena artística de sua época, marcada pela revolução russa e seus desdobramentos.

Para o poeta e tradutor Augusto de Campos, “o que salvou a poesia de Maiakóvski do aniquilamento pelo discurso político foi a rebeldia selvagem do seu talento. Para o amor e para o humor.” Augusto é um dos seus tradutores, junto com seu irmão Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman, que foi o professor de russo deles na USP. Essa trinca construiu a ponte entre o poeta e seus leitores brasileiros quando publicou, em 1967, a primeira coletânea vertida diretamente do russo e, em 1968, uma antologia da Poesia Russa Moderna. Suas traduções e recriações dissolveram a imagem do “poeta oficial” e revelaram um dos artistas mais originais do século 20. Contribuíram também para a divulgação do poeta no país os compositores Caetano Veloso, que adaptou o poema Amor na linda canção cantada por Gal Costa ( Ressuscita-me/ ainda que mais não seja/Porque sou poeta/E ansiava o futuro ) e Jorge Mautner (Mas é que comigo/ a anatomia ficou louca/e sou todo coração). Embora os poemas que originaram as canções não estejam nessa edição, comprovam a fecundidade do mito.

O livro é uma preciosidade. O aspecto rebelde e anti-burocrático do poeta é remarcado pelos tradutores, por exemplo, no título Tó pra vocês, ou na divertida Conversa Sobre Poesia com o Fiscal de Rendas, em que Maiakóvski tenta definir o lugar do poeta na sociedade proletária, reclamando que está em dívida com a Broadway, o Exército Vermelho e as cerejeiras do Japão.

Além do material publicado no Brasil dos anos 60, em plena ditadura civil-militar obcecada por comunistas, a nova edição reúne uma série de poemas experimentais pouco conhecidos e traduzidos em 2015; o prefácio de Schnaiderman que contextualiza a obra; um suplemento biográfico e textos dos irmãos Campos que versam sobre a conexão entre a poesia e o construtivismo russo, com geniais invenções gráficas e fotos antigas de Maiakóvski, que além de tudo era um homem belo, de olhar perturbador.

O livro traz ainda notícias de outros escritores russos, como Serguéi Iessiênin e Marina Tzvietáieva, amigos e contemporâneos de Maiakóvski, que também se mataram. Depois do suicídio de Iessiênin, Maiakóvski lhe dedica um longo poema em que os últimos versos ficaram famosos: nesta vida/morrer não é difícil/ o difícil/é a vida e seu ofício.

Não poderia faltar uma menção especial a Lília Brik, musa e grande amor do poeta. Ela já tinha 80 anos quando recebeu Boris Schnaiderman nos arredores de Moscou para uma conversa que foi publicada no Jornal da Tarde, em 1979. Lília falou do amor e também do moralismo que enfrentaram nos anos 1920, já que viveram juntos a três - o poeta, ela e seu marido, que era crítico literário. Aquele modo de vida libertário incomodava as autoridades soviéticas.

Tanto ela quanto Maiakóvski tiveram outros amantes, mas era ele quem mais sofria de ciúme e não escondeu isso nos poemas que lhe dedicou, como Lílitchka!: (...) Afora o teu amor/para mim/não há sol/ e eu não sei onde estás e com quem (...) . Na sua Carta de Paris ao camarada Kostróv – Sobre a essência do amor, o poeta diz que teve muitas namoradas bonitas e desculpa-se pelo seu lirismo: Sou vivo/minha voz é de bom timbre/ Tonteio como éter/Basta ouvir-me./ Não me fisgam/ com armas/sem valor./ Não caio por qualquer charme./ Eu fui/ para sempre/ferido pelo amor .

O romance moderno de Lília e Maiakóvski foi tema da publicação I Love, do casal norte-americano Ann e Samuel Charters. Não há fofoca ou sensacionalismo na obra, diz Augusto de Campos, a pesquisa deles ajuda a compreender como era a Rússia pré-Stálin e o círculo em que viviam o poeta, sua musa e as outras duas mulheres com quem ele se envolveu, Tatiana Iácovlieva e Nora Polônskaia, essa última uma jovem atriz que tinha acabado de sair da casa do escritor quando ele se matou. Entre os possíveis motivos do suicídio, em abril de 1930, os estudiosos apontam: a desilusão política, o boicote de artistas oficiais e da Associação dos Escritores Proletários - que passaram a considerá-lo “incompreensível para as massas” -, os casos amorosos fracassados, a ausência de Lília, e problemas de saúde que afetaram sua voz. Mas ele já tentara se matar antes, numa briga com Lília (o tiro falhou e ele deu a bala de presente a ela), e o suicídio foi uma marca de artistas russos de sua geração. Diferentemente deles, que abandonaram a vida muito cedo, Lília se matou aos 86 anos e, mesmo tendo se casado com outros, usava sempre o anel-poema que o amante lhe ofertou. Ela trabalhou a vida toda pela difusão da obra de Maiakóvski, atendendo talvez ao singelo pedido da sua carta de adeus: “Lília, ama-me”.

Um desabusado no front

Maiakóvski era um desabusado, amigo do palavrão e da linguagem coloquial, um poeta das ruas: é assim que o professor Schnaiderman o descreve, apontando o rigor com que ele exercia seu ofício, chegava a reescrever um verso sessenta vezes. Além de poesia, escreveu artigos de jornal, ensaios, peças de teatro, roteiros de cinema, cartazes publicitários da luta socialista. Sua autobiografia - Eu mesmo - tem destaque na edição e é uma delícia de se ler, concisa e cortante. Seu pai era um guarda florestal que o levava para cavalgar em Bagdádi, sua aldeia natal. Quando o pai morreu, Maiákovski mudou-se com a mãe e as irmãs para Moscou, onde leu Marx e Lênin, editou na adolescência uma revista clandestina chamada Poriv (Impulso): “Saiu algo incrivelmente revolucionário e na mesma medida horrível”. Muito jovem, ingressou na ala bolchevique do Partido Comunista em 1908, foi preso três vezes, começou a devorar literatura na cela. O texto vai da infância à guerra, passando pela sua incursão na escola de pintura, os livros infantis, a poesia, a sua aguçada percepção do uso da palavra, que via como suporte maleável para a ficção, propaganda socialista, jornalismo e tudo o mais em que ele andava metido, com total entusiasmo: “Meu trabalho só me interessa quando dá alegria”.

Entre os poemas da revolução destaca-se A Plenos Pulmões. De lá do início do século 20, dá para ouvir o seu grito:

Caros
Camaradas
Futuros!
Revolvendo
A merda fóssil
De agora,
Perscrutando
Estes dias escuros,
Talvez perguntareis
Por mim (...)
Escutai,
Camaradas futuros (...)
Eu vos falo
Como um vivo aos vivos (...)
No túmulo dos livros,
versos como ossos,
se estas estrofes de aço
acaso descobrirdes,
vós as respeitareis,
como quem vê destroços
de um arsenal antigo, mas terrível (...)
Desdobro minhas páginas
_ tropas em parada,
E passo em revista
O front das palavras (...)

O poema é considerado um documento histórico, mas reduzir o autor a um ícone da revolução não podia dar certo. Stálin bem que tentou, depois que Lília Brik lhe enviou uma carta alguns anos após o suicídio dele, porém um vulcão não cabe em cartilhas. Para Augusto de Campos, se alguns versos políticos de tom apologético envelheceram, a poesia amorosa e as ousadias experimentais de Maiakóvski mantêm o seu frescor, pois ele era um legítimo rebelde, vivenciou a quebra de estruturas em si mesmo e na sua violenta concepção da linguagem.

Particularmente, adoro seus poemas de amor, seus ferimentos, sua lábia com as mulheres, seus devaneios cósmicos, o chiste ao afirmar que se não fosse poeta seria astrônomo, e aquele trecho da “ Extraordinária Aventura vivida por Vladímir Maiakóvski no verão da Datcha ”, conhecido no Brasil graças ao seu flerte com o sol, à música do Caetano Veloso que furtou um verso da galáxia, e à tradução estelar de Augusto de Campos:

Brilhar para sempre
Brilhar como um farol
Brilhar como brilho eterno
Gente é pra brilhar
Que tudo mais vá pro inferno
Este é o meu slogan
E o do sol



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[I] Psicanalista, jornalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise, integrante do grupo de trabalho Sexta clínica e coordenadora, junto com Cristiane Mesquita, do projeto Cuide-se na Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae.





 
 
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