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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    45 Abril 2018  
 
 
ESCRITOS

ENTRE MENINAS E MULHERES


TIDE SETÚBAL [1]


Apesar daquele dia desgastante de trabalho, em que teve que fazer o que mais a deixava amargurada - desligar uma pessoa de sua equipe -, juntou a energia que restava para visitar a mãe. Antes era preciso pegar as filhas na escola. Tinha horror de esquecê-las um dia e receber uma ligação reprovadora da secretaria dizendo que elas estavam largadas no pátio.


Já no carro com as meninas, era evidente o cansaço. Briga para ver quem sentaria no banco atrás da mãe, briga por conta de um pacote de biscoito recheado que tinha número ímpar, dificilíssimo decidir quem ficaria com o último... briga. Antes que a próxima surgisse, a mãe interferiu bruscamente. Elas pararam. Quietas!


Tudo bem na escola? O dia foi bom? Tiveram aula do quê? A nossa apresentação da aula de música está ótima e quase pronta, mas é impressionante como os meninos só fazem bagunça. Na minha classe também! Na aula de biblioteca de hoje, a gente não conseguiu terminar a leitura coletiva de um livro irado porque a professora perdeu metade da aula dando bronca nos meninos! Eles são chatos! Pelo menos nisso a gente concorda, as irmãs disseram ao mesmo tempo, trocando olhares de cumplicidade. Chatos, chatos, chatos. Mas todos? A mãe perguntou com um leve sorriso divertido. Sim, categóricas.


O trânsito estava péssimo, meia hora para chegar na casa da mãe. A tímida vontade tinha ficado no meio do caminho, chegariam tarde em casa. Onde estava com a cabeça quando combinou uma visita logo numa terça-feira? Por que sempre faz o que acha que a mãe quer? Num vacilo pegou o celular para dizer que desistiu, não deu tempo, chegaram.


Nos cumprimentos, entre beijos e abraços sorridentes, sentiram o cheiro de comida feita com tempo e o conforto inigualável de uma casa bem vivida. Avó e netas começaram a brincar de Stop. Não acho nenhuma cor com a letra D! Eu já consegui! Mas eu tenho o nome de cidade com D e você não tem! Gargalhadas vinham da saleta de televisão, ali o afeto parecia fácil. Exausta, a filha atirada no sofá da sala ao lado, quase dormiu.


A conversa durante o jantar foi entrecortada pelas discórdias das meninas que disputavam um copo de unicórnio colorido. Desenho de unicórnio, camiseta de unicórnio, tiara de unicórnio, como eram irritantes esses fanatismos passageiros. Papai não vem? Não, hoje vai ficar até mais tarde no trabalho - respondeu a mãe. Depois da última garfada, as meninas correram para o Ipad.

O trabalho que não motiva mais como antes, as meninas brigam por detalhes insuportáveis do cotidiano, não consegue ter um tempo para estar com as amigas. O casamento? Vai bem, acha. A menos que esteja negando algo, porque entre mil e três assuntos na cabeça, às vezes escolhe não pensar em algum, desabafa a filha. A mãe escuta sem parar. É assim mesmo no trabalho, contesta, tem dias melhores e piores mas é preciso ter resiliência, agora, das meninas você não pode se queixar, elas são maravilhosas! Sem falar no seu marido que é preciso tomar conta, viu?! Vai acabar perdendo ele, prenuncia. A filha é tomada por um mau humor insuportável. Não há quem tenha empatia com seus assuntos, nem a própria mãe. Não era isso o que ela quis dizer. Não concordaram, chega! Depositando as tristezas no fundo de si, quis ir embora.


“Vamos meninas! Está tarde! O papai já deve estar nos esperando em casa, amanhã temos que acordar cedo, vocês ainda não fizeram a lição de casa.”


“Calma, mãe! Por que você está tão estressada? Viu, vó, como ela só grita?!”


“Filhinhas, vamos. Parem de enrolar, ajudem a sua mãe. Ela está cansada.”


Já no carro, indo para casa. Ela escuta os murmúrios da polêmica das meninas. Óbvio que sim! Eu acho que não! Talvez dependa do dia, elas tentavam chegar num consenso. Não sobrava energia alguma para escutar a conversa que se fazia furtiva. Já entrando na garagem, veio a pergunta:


“Mãe, você não gosta de visitar a vovó?”



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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante do grupo do Feminino e da equipe editorial deste Boletim.




 
 
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