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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    45 Abril 2018  
 
 
MAL-ESTAR NA CIDADE

MARIELLE FRANCO PRESENTE!


MARIA LÚCIA DA SILVA [1]


Foi assim que nós, pretas e pretos, acordamos de banzo.
Corpo doído, cabeça zonza, resfriado, febre, choro, dor, raiva, ódio,
coração pequeninho. Como aquela sensação de nostalgia que os nossos
ancestrais sentiram por estar ausentes de seu país de origem.
Uma tristeza profunda
.
Thamyra Thâmara





Do Rio de Janeiro, onde nasceu e atuava, diretamente ao mundo, já silenciada, mas referenciada, por milhares de vozes, como símbolo de luta por direitos e justiça.

Mãe de Luyara, feminista e cria da favela da Maré, como se dizia, Marielle carregava em seu corpo as marcas históricas da desvalorização: mulher, negra, lésbica, periférica.

Trilhou muitos caminhos para se deslocar de um lugar predeterminado no imaginário social: foi aluna do pré-vestibular comunitário da Maré e, com bolsa integral, dividindo seu tempo entre estudo e trabalho, graduou-se em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Iniciou sua trajetória como educadora infantil na Creche Albano Rosa, na Maré e, mais tarde, tendo alcançado o grau de mestre em Administração Pública pela Universidade Federal Fluminense (UFF), tornou-se professora e pesquisadora, uma socióloga respeitada. De favelada a vereadora, contrariando uma estatística perversa, foi a quinta candidata à Câmara Municipal mais votada, no Rio de Janeiro, em 2016. Comprometida com a defesa das minorias, ao contrariar a lei da invisibilidade imposta historicamente, incitou a fúria do leão. Foi condenada à pena máxima, tendo a própria vida ceifada.

Na ânsia de calar a voz de Marielle, seus adversários a amplificaram, e hoje essa voz ecoa pelo mundo. Uma voz calada que multiplicou-se em muitas outras por intermédio de homens e de mulheres, e, em especial, das mulheres negras.

Algumas falas de mulheres negras, descritas a seguir, evidenciam a reedição de uma experiência de vulnerabilidade conhecida por estas, e provocada por privação, humilhação, violência e marginalização:

“A morte de Marielle me deixou deprimida, me levou para um lugar de vulnerabilidade, fiquei pensando que poderia ser qualquer uma de nós, mulher preta, que a gente não é nada, que é muito fácil os caras meterem uma bala em nossa cabeça, é muito fácil, tem sido muito fácil.”

“Se essa mina, uma das mais votadas no Rio de Janeiro, os caras dão um tiro na cabeça dela sem prestar conta pra ninguém, isso colocou todas nós em situação de vulnerabilidade, fiquei muito deprimida; foi muito escancarado.”

“É a violência do sistema contra quem está conseguindo bater de frente, isso colocou todas nós em situação de perigo; sempre estivemos em situação de perigo, não se deram ao luxo de parecer um latrocínio, não tiveram o trabalho de mascarar nada, foi um aviso a todas nós.”

“É isso, nem a institucionalidade salva a gente, há todo um discurso do caminho institucional a seguir, a gente faz tudo direitinho, mas quando chegamos com nossas ideias, nossas pautas os caras mudam a regra do jogo; a todo tempo vivenciamos as micromortes, o tempo todo precisamos nos reafirmar, estou cansada.”

“É amedrontador! Isso foi um recado pra mulheres, mas principalmente para as mulheres negras: não mexam aqui, não mexam com isso, deu muito medo, deu muita raiva também; raiva da hipocrisia dos partidos, do sistema, da esquerda, dos brancos...”

“Sinto-me exposta, sem saída, de nada adianta seguir o roteiro estabelecido, você estará sempre vulnerável, sua vida estará em risco.”

“Apesar da raiva, do medo, da dor isso também nos empurra pra frente, pra luta, pra guerra que temos que vencer a cada dia: a cada mulher negra violentada, excluída, a cada jovem negro assassinado, a cada trabalho perdido: não nos calarão, nossas vidas importam!”

São desabafos que remetem ao que Costa (1989) chamou de cultura da violência:

...certos padrões de comportamento social hoje são suficientemente estáveis e recorrentes para que possamos afirmar a existência de uma forma particular de medo e reação ao pânico, que é a cultura narcísica da violência. Essa cultura nutre-se e é nutrida pela decadência social e pelo descrédito da justiça e da lei. (...) Na cultura da violência, o futuro é negado ou representado como ameaça de aniquilamento ou destruição. (p.167).

Os depoimentos destas mulheres indicam um frequente estado de sofrimento resultante da constante ameaça de violência, frente à inexistência de direitos e de justiça para corpos considerados abjetos, uma experiência historicamente conhecida, podendo constituir-se num trauma.

Se considerarmos o trauma como um evento real, acompanhado de uma experiência subjetiva que promove angústia, crise de ansiedade, medo e a sensação de desamparo, poderemos considerar o assassinato de Marielle como um trauma social.

Segundo Puget (2000), citado por Costa (2012), o trauma social é

...um fenômeno que ocorre em meio a um evento social imprevisível, que provoca no grupo estados de desorganização de maior ou menor intensidade e exige novas práticas em razão do evento; este recebe, pois, dos membros do grupo um significado subjetivo compartilhado.

Judit Mészáros (2011), ao discutir os elementos para a instalação do trauma, faz uma distinção entre ocorrências envolvendo pessoa-contra-pessoa e dentro das comunidades, e situações produzidas por grandes acidentes e desastres naturais. Em sua opinião a diferença é marcada pelo fenômeno da solidariedade, conforme segue:

Enquanto desastres naturais, acidentes e até ataques terroristas geram quase imediatamente sinais de solidariedade no entorno, assim como formas e gestos de ajuda psíquica, (...) esses mesmos gestos normalmente faltam em atos envolvendo pessoa-contra-pessoa que produzem traumas dentro da família ou da comunidade (p.10).

O assassinato de Marielle sensibilizou e mobilizou grandes multidões questionando o Estado, num momento de profunda crise ética e moral. Um Estado sem legitimidade e sem um projeto político que corresponda aos anseios e necessidades da população, ou seja, sem perspectiva de transformação social.

Neste contexto, o assassinato de Marielle desperta memórias de experiências individual e coletiva, cuja angústia não teve reconhecimento e nem espaço para acompanhamento e elaboração.

... o trauma social possui um caráter doloroso, mas também representa uma nova chance para a elaboração de conflitos subjetivos. (...) Logo, o trauma social então não consiste apenas no evento traumatizante em si, mas na tentativa de ligá-lo socialmente, através, inclusive, da recordação e por meios e instrumentos coletivos . (Puget, 2000 apud Costa, 2012).

As diferentes ações dos movimentos sociais e diversos coletivos em memória de Marielle – passeatas, encontros, narrativas, oficinas, rodas de conversas – têm sido potentes no acolhimento do sofrimento e do medo tão presentes, pois são espaços de elaboração onde a dor pode ser sentida, reconhecida e compartilhada.

Tendo em vista que a solidariedade também promove transformação, vale relembrar um provérbio africano:Quando as teias de aranha se juntam, elas podem amarrar um leão.



Referências

Costa, L. M. O trauma social na atualidade, 2012. O Jornal Psicologia em foco. Disponível em http://jornalpsicologiaemfoco.blogspot.com.br/2012/03/o-trauma-social-na-atualidade.html

Mészáros, J. Elementos para a teoria contemporânea do trauma: a mudança de paradigma de Ferenczi. Percurso nº 46, p.10 - A clínica do trauma - ano XXIII - junho de 2011.

Santos, L. O. O medo contemporâneo: abordando suas diferentes dimensões. Psicol. cienc. prof., Brasília, v.23, n.2, p.48, jun. 2003. Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932003000200008

Thâmara, T.: Marielle Franco: nosso fuzil é a palavra. Calle2. https://calle2.com/marielle-franco-nosso-fuzil-e-a-palavra/

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[1] Psicóloga, psicanalista, especializada em trabalhos de grupo com recorte de gênero e raça. Diretora-Presidente do Instituto AMMA Psique e Negritude; Coordenadora Geral da Articulação Nacional de Psicólogas(os) Negras(os) e Pesquisadoras(es). Empreendedora Social da Ashoka. E-mail: lucia@ammapsique.org.br




 
 
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