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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    45 Abril 2018  
 
 
MAL-ESTAR NA CIDADE

ENTRE O MITO E A SINGULARIDADE – REVOLTA E LEVANTE FEMININO


MARIA CAROLINA ACCIOLY [I]




uma mulher incomoda
é interditada
levada para o depósito
das mulheres que incomodam

loucas louquinhas
tantãs da cabeça
ataduras banhos frios
descargas elétricas

são porcas permanentes
mas como descobrem os maridos
enriquecidos subitamente
as porcas loucas trancafiadas
são muito convenientes

interna, enterra [II]


Esses dias acordei de um sonho com uma imagem forte e assustadora. Éramos uma multidão de mulheres caminhando e cantando, sentindo-nos potentes, em luta e, então, surgia uma sombra que se tornava um tanque de guerra enorme em nossa direção. Seríamos atropeladas, massacradas, e ainda assim seguíamos andando, juntas. Havia medo mas havia, sobretudo, força, beleza e cor.

O sonho me remeteu às últimas semanas, à Marielle, às mulheres assassinadas e violentadas e às mulheres que gritam e se fazem ouvir, aos golpes na democracia que nos derrubam a cada dia, à clareza cortante da fala da Buba [III], aos secundaristas e aos movimentos sociais, à arte.

A arte, em tempos sombrios e dolorosos, ocupa ainda mais essa função de afetar corpos, de resistir, de incitar levantes coletivos. Uma diretora de teatro tem chamado minha atenção nos últimos tempos: Martha Kiss Perone é uma atriz, diretora, artista que, ano retrasado e passado, dirigiu Rozà, espetáculo multimídia produzido a partir das cartas de Rosa Luxemburgo escritas, em grande parte, nas prisões alemãs. Espetáculo encenado por mulheres, com música e videoinstalação que misturavam cenas de Berlim, atuais e históricas, com cenas que ela filmou nas manifestações e ocupações do movimento secundarista de 2015 (as atrizes montaram a Oficina para corpos revolucionários junto aos secundaristas nas ocupações). Uma experiência de impacto, com um cenário vivo e pulsante que deixa o público dentro da cena. Para corpos revolucionários.

Este ano, Martha, com uma boa equipe de artistas e profissionais, monta a peça Revolta Lilith [IV]. Figura mítica, deusa/demônio do vento, da tempestade e da sensualidade, Lilith teria sido a primeira mulher no Paraíso, antes de Eva. Em algumas versões, é a serpente que seduz Eva e, ao ser expulsa do Paraíso, transforma-se num demônio. Martha pesquisou as origens pagãs do mito na Babilônia, a partir do livro do escritor iraniano Réza Barahéni, e costura esse mito feminino com trechos documentais de acusações de bruxaria do séc. XV e XVI, trechos de falas de uma guerrilheira curda do ano passado, poemas de uma cigana polonesa, frases de uma militante anarquista negra, entre outros fios de narrativas sobre a desobediência das mulheres. Na peça, Lilith, ao invés de ser expulsa do Paraíso, recria sua história, dirige seu próprio filme, foge e, exilada, organiza uma revolta: “Vamos queimar o paraíso e apagar o inferno!”. Assim, ela convoca o público, que é de fato público e não plateia pois está de novo dentro da cena, ao alcance do olhar das atrizes, no deserto, no exílio, no ato que funda e que rompe a história, num levante de desobediência feminina.

Os mecanismos de controle do corpo da mulher estão entrelaçados com os mitos enigmáticos e demoníacos - lilithianos - que enredam as vidas das mulheres há séculos. A mulher desobedeceu e desobedece a cada conquista – o voto, a pílula, o prazer sexual, o trabalho, dirigir um carro ou a própria vida, falar ao invés de silenciar, amar à sua maneira e ao seu prazer, decidir ter ou não ter filhos, lutar.

Ao invocar este registro mítico, como narrativa transformadora e transgressiva, a mulher se inventa, se levanta, no teatro, na dança, nos coletivos, nos movimentos de resistência, nas análises.

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[1] Maria Carolina Accioly é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise, integrante do grupo do Feminino, do GTEP e da equipe editorial deste Boletim.
[II] “Uma canção popular (sec.XIX-XX)”, poema no livro O útero é do tamanho de um punho. Angélica Freitas. São Paulo: Companhia das Letras. 2017
[III] https://www.facebook.com/precisamosagirefalarcontraofascismo/videos/151675728839537/?hc_ref=ARQ_lqlclPWTRjU3PxLPN0-H6FaHgwba4EY9_y-Ig4YXhi8rlGKv9T9TUNIrqXCZnJU&fref=nf
[IV] A 1a temporada esteve em cartaz na Casa do povo, março 2017.




 
 
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