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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    45 Abril 2018  
 
 
MAL-ESTAR NA CIDADE

SE ENTREGA, CORISCO!


EQUIPE EDITORIAL DO BOLETIM ONLINE



- Se entrega, Corisco!
- Eu não me entrego, não!
Eu não sou passarinho
Pra viver lá na prisão
- Se entrega, Corisco!
- Eu não me entrego, não!
Não me entrego ao tenente
Não me entrego ao capitão
Eu me entrego só na morte
De parabelo na mão
- Se entrega, Corisco!
- Eu não me entrego, não!
(Mais fortes são os poderes do povo!)
(Perseguição, Sérgio Ricardo)




Numa tentativa torpe de rasurar a recente história popular brasileira, o relator começaria sua exaustiva preleção se referindo a uma “tropa de choque”. Por um instante ele assim desorientaria quem escutava aquele julgamento em segunda instância: seria bom demais se o magistrado estivesse deste modo se referindo à elite do atraso que em 2016 havia golpeado o país, primeiro ao julgar desqualificada a palavra da presidenta para, logo mais, destituir o poder civil dos votos. Surpreendente seria se desta forma o desembargador estivesse identificando o crescente poder policial investido em judiciais operações lava-jato. Mas, em ardilosa retórica, eis que o sujeito pretendia lançar mão de tal imagem para (des)caracterizar a política que estava sendo feita nas ruas em tempo real...

Àquela inicial desorientação se antepôs a força conceitual que permite pensar, a tempo, nosso tempo. Conceitos são como estações que nos permitem descansar para podermos avançar nas elaborações do que nos cabe viver. Evocou-se, uma vez mais, a lição de Jacques Rancière, ao revisar os sentidos dos conceitos de política e de polícia. Em “O dissenso” [I], o filósofo designa polícia ao “conjunto dos processos pelos quais se operam a agregação e o consentimento das coletividades, a organização dos poderes e a gestão das populações, a distribuição dos lugares e das funções e os sistemas de legitimação dessa distribuição” – considerando assim “as funções de vigilância e de repressão habitualmente associadas a essa palavra como formas particulares de uma ordem muito mais geral que é a da distribuição sensível dos corpos em comunidade”. Ao ampliar assim o conceito de polícia, Rancière especifica o conceito de política, reservando-o ao “conjunto das atividades que vem perturbar a ordem da polícia pela inscrição de uma pressuposição que lhe é inteiramente heterogênea”. O exemplo atualíssimo desse tipo de perturbação se encontra nos usos do espaço em uma manifestação de rua: do ponto de vista das forças da ordem, a rua é um espaço de circulação; os manifestantes, por sua vez, a transformam em espaço público onde tratar diretamente os assuntos da comunidade – aqui e não mais alhures, nos prédios públicos previstos para esse uso, com as pessoas destinadas a essa função.

Desde o dia 5 de abril, em que foi decretada a prisão do ex-presidente Lula, um novo acontecimento político veio de fato reverberar o potencial de impacto das sucessivas tragédias sobre nossas populações não cooptadas pela nação zumbi-midiática-jurídica-jurássica e agora militarizada, convocando sua imediata mobilização para uma ação efetiva, desta vez sob a forma da ocupação de São Bernardo do Campo por milhares de pessoas: mais um capítulo do julgamento policial de Lula com a farsesca decisão do STF de denegação do habeas corpus impetrado diante de sua condenação em segunda instância e o apressado decreto de sua prisão emitido exatos 22 minutos depois pelo juiz Moro, processo que requer habitualmente no mínimo 30 dias de tramitação.

Lula e Marielle Franco são figuras muito diferentes em vários aspectos e em seus alcances, seja pelo tempo de trajeto e cargos ocupados, seja porque representam diferentes gerações, partidos, gêneros, discursos e talvez, em certa medida, maneiras de pensar a cidadania e o fazer político. No entanto, se foram justamente estas as maneiras capazes de despertar tal potência de ação e de resistência, isto pode ser atribuído àquilo que têm em comum, a saber, ao que há de genuíno em sua escolhas e trajetórias em função de sua origem social e história pessoais. Em seu protagonismo ostentam, cada um a seu modo, a capacidade de encarnar aquilo que os setores mais conservadores da nossa sociedade e poderes experimentam como insuportável e que desperta seu desejo de destruição, de eliminação sumária, em sua nostalgia escravagista. Por fim, o caráter violento destes gestos que, de forma real ou simbólica, pretendem matar, põem a nu, obscenamente, não apenas a arbitrariedade e ilegitimidade de quem ocupa no momento as instâncias de poder, mas revela involuntariamente os próprios mecanismos e estratagemas - ao mesmo tempo tão toscos e sofisticados! - daquilo que, em seu próprio modo de funcionamento, revela seu caráter indiscutível de um golpe.

Terminamos com esta citação: Para destituir o poder não basta vencê-lo na rua, desmantelar seus aparelhos, incendiar seus símbolos. Destituir o poder é privá-lo de seu fundamento. É isso o que justamente uma insurreição faz. Aí, o constituído surge tal qual é, nas suas mil manobras desajeitadas ou eficazes, grosseiras ou sofisticadas. “O rei está nu”, é dito então, porque o véu constituinte está em farrapos e toda a gente pode ver através dele. Destituir o poder é privá-lo de legitimidade, é conduzi-lo a assumir sua arbitrariedade, a revelar sua dimensão contingente. É mostrar que ele não detém mais do que a própria situação, sobre a qual desdobra estratagemas, procedimentos, combinações - é dar início a uma configuração passageira das coisas que, como tantas outras, apenas a luta e a astúcia farão sobreviver. É forçar o governo a descer para o nível dos insurgentes, que não serão mais “monstros”, “criminosos” ou “terroristas”, mas simplesmente inimigos. Encurralar a polícia reduzindo-a a uma mera gangue, a justiça a uma associação de malfeitores. Na insurreição, o poder vigente é mais uma força entre outras sobre um plano de luta comum, e não mais essa metaforça que rege, ordena ou condena todas as potências. Todos os canalhas têm um endereço. Destituir o poder é mandá-lo por terra. (Comitê Invisível - Aos nossos amigos - Crise e Insurreição, 2016).



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[I] RANCIÈRE, Jacques."O dissenso” in: NOVAES, Adauto. Crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras; Brasília: Ministério da Cultura; Rio de Janeiro: Fundação Nacional de Arte, 1996.




 
 
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