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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    45 Abril 2018  
 
 
NOTÍCIAS DO DEPARTAMENTO

ABERTURA DO EVENTO QUESTÕES SOCIAIS E POLÍTICAS NA HISTÓRIA DA PSICANÁLISE: ONTEM E HOJE


NOEMI MORITZ KON [I]



Bom dia a todos.

Iniciamos hoje o evento Questões Sociais e Políticas na História da Psicanálise: ontem e hoje.

Antes de apresentar Marcelo Checchia, gostaria de falar um pouco sobre a ideia que norteou a realização desse evento. Ela se baseia no surgimento de uma série de pesquisas que são o resultado de um verdadeiro processo de retorno do recalcado, nas palavras de Gottfried Heuer, na apresentação do livro sobre Otto Gross, Por uma psicanálise revolucionária. Pareceu-nos que esse trabalho era merecedor de abrigo no seio do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, por aquilo que consideramos ser nossa missão e nosso posicionamento político; pensamos que seria, também, nossa a responsabilidade de abrir espaço para que todo esse material expurgado da história oficial da Psicanálise pudesse ser conhecido e assim reocupar seu justo lugar na cena psicanalítica. Imaginamos, ainda, que seria importante, até mesmo para entendermos melhor as novas propostas clínicas que vêm sendo colocadas em prática aqui em São Paulo, que pudéssemos compreender quais teriam sido os motivos para que certos temas e atores fossem submetidos a processos de recalque e de recusa, e que, apesar de sua força e significância, fossem diminuídos em sua legitimidade e valor pela historiografia oficial psicanalítica. Afinal, sabemos, todos nós, que esse é justamente o papel do analista, o de sustentar abertos espaços nos quais aquilo que foi proscrito possa fazer-se novamente presente. E estamos hoje aqui para isso.

O trabalho do psicanalista tem alguns traços que se assemelham ao trabalho do historiador: procuramos fazer presentes as marcas históricas que nos alicerçaram para, então, ao compreendermos melhor aquilo em que nos constituímos, rompermos o ciclo infernal das repetições enrijecidas e criarmos alternativas mais prazerosas (ou, quem sabe, menos desprazerosas) para nossa existência.

Talvez fosse possível dizer que a história para a psicanálise se traduz num tempo verbal singular, que poderíamos denominar de pretérito presente, um passado permanentemente atualizado, um passado diferente daquele que um dia teria sido, pois que é transformado pela potência linguageira e narrativa, por uma potência ficcionalizante, que aplicamos à lembrança da experiência vivida, num processo de conversão dessa experiência em memória. “Nada do que foi será, de novo, do jeito que já foi um dia”, canta Lulu Santos.

Transubstanciar experiência em memória é o trabalho historiográfico que fazemos também sobre nossa vida, e esse trabalho narrativo implica, no melhor dos casos, o perspectivismo e o inacabamento. Quero dizer com isso que, sendo a nossa memória ativa, plástica e criadora, ela se abre para uma compreensão sempre parcial e mutante, ou ainda, para múltiplas compreensões simultâneas, resultado dos tantos pontos de vista e entendimentos de que – eu e também os outros – somos capazes de estabelecer. Sendo assim, a memória para a psicanálise e também, espero, para a história, não se adequa à imagem de um porão inerte, sem movimento, de um arquivo morto; a memória é mesmo um arquivo vivo, muito vivo, no qual as marcas mnemônicas readquirem, pelas novas conexões a que estão suscetíveis, novas significações. Nosso passado, nesse sentido, é sempre presente.

Sabemos, também, que não há neutralidade na narrativa histórica, não há nenhum método que capacite o historiador a se colocar do lado de fora de sua narrativa e a formular uma história geral e universal, inatacável, que o resguarde dos conflitos entre as diferentes forças político-econômicas que atuam no contexto de que participa. É sempre importante saber quem é aquele que narra a história e para quem é narrada essa história que foi construída. A historiografia responde, assim, a desígnios ideológicos contextuais e é escrita para garantir, simultaneamente, que certas perspectivas sejam sustentadas como verdadeiras e para escamotear lacunas destas narrativas, ou seja, para esconder as brechas do discurso pelas quais outros tantos pontos de vista e entendimentos poderiam ser assumidos.

“A história é filha de seu tempo”, afirma o historiador Jacques Le Goff, alertando-nos que o ato de lembrar não é um gesto positivo de quem recolhe fatos; mas é antes uma interpretação, uma forma de voltar ao passado com os olhos bem focados naquilo que nos interessa do presente. [II]

A montagem da história da Psicanálise não difere da montagem historiográfica em geral, e certamente corresponde a intenções ideológicas confessadas ou inconfessáveis.

Vejamos: Sabemos que foi o próprio Freud quem inaugurou a historiografia psicanalítica através de dois textos importantes:História do movimento psicanalítico, de 1914, e Um estudo autobiográfico, de 1925. Nesses trabalhos, ele vincula de forma inequívoca o nascimento e o destino do movimento psicanalítico ao seu próprio destino. É bem verdade que esses dois textos estabelecem também uma característica essencial da epistemologia psicanalítica, ou seja, que o método de produção de conhecimento no campo psicanalítico preconiza que a subjetividade do autor está entremeada ao conhecimento que ele mesmo produz. Não há separação entre o sujeito que estuda e o objeto que é estudado. E essa é uma particularidade fundamental e distintiva da epistemologia psicanalítica. Mas, e não devemos esquecer!, nesse mesmo gesto é introduzida uma outra característica, adjunta mas também vital para a nossa compreensão do que viria ser a história da Psicanálise: a história oficial da psicanálise passa a ser a história de seu fundador. E da mesma forma, a sina do movimento psicanalítico se confunde com o próprio destino mítico de seu criador. Assumimos de partida, portanto, um modelo historiográfico arcaico, uma quase mitologia, de datas e nomes, um modelo personalista no qual foi construída uma lenda da autogeração, num processo de partenogênese, da psicanálise por seu valoroso pai. Todos os outros personagens da história da psicanálise têm sua importância determinada pelo lugar transferencial ocupado no vínculo estabelecido com Freud.

Sabemos ainda que Ernest Jones foi o escolhido por Freud para dar sequência ao processo de criação de uma historiografia psicanalítica. A biografia escrita por Jones, apesar de suas qualidades inegáveis, nasce assim com um defeito de fábrica: ela foi escrita, como sinaliza Elisabeth Roudinesco, por “um homem que era ao mesmo tempo um cronista a serviço de um rei, o líder de um movimento político e um adversário da maioria dos atores cuja saga narrou. (...) Como bom estrategista político, dissimulou os acontecimentos passíveis, a seu ver, de tirar o brilho da imagem do movimento psicanalítico: os suicídios, os extravios, as loucuras e as transgressões” (Dicionário da psicanálise, E. Roudinesco, p. 345). Foi Jones quem, consagrado pelo próprio Freud, estabeleceu a narrativa da história oficial da Psicanálise, uma aventura na qual o homem Sigmund Freud teria conseguido, “pelo poder de seu talento solitário e ao preço de um heroísmo intransigente, desprender-se das falsas ciências de sua época e revelar ao mundo a existência do inconsciente” (ibidem).

Depois da de Jones, outras biografias importantes de Freud foram escritas, já mais distantes do vórtice de poder de Sigmund Freud e da IPA: Peter Gay [III], Emilio Rodrigué [IV], Elisabeth Roudinesco [V], para citar talvez as obras mais conhecidas, nos trouxeram novas versões do fundador da Psicanálise.

Entre nós, Renato Mezan [VI] tem trabalhado, já num campo mais conceitual, uma história, digamos, da constituição de um pensamento, com seus livros A trama dos conceitos, Freud pensador da cultura, e mais recentemente uma tentativa de dar inteligibilidade à história do movimento psicanalítico com seu O tronco e os ramos.

Mas é sempre a Freud, como marco iniciático, que voltamos. E isso chama a atenção, pede que pensemos sobre o sentido dessa repetição, pede que pensemos sobre nossos totens e nossos tabus.

Talvez pudéssemos nos interrogar se a historiografia psicanalítica padeceria dos mesmos sintomas e mecanismos que ela tão bem estabeleceu junto a seus pacientes neuróticos. Ela também recalca – se é que não recusa -, para não ter de lidar com seus conflitos?

Como psicanalistas, sabemos que são os ruídos e as repetições, as pausas e os esquecimentos, que chamam a nossa atenção quando escutamos nossos analisandos. São esses mesmos elementos dissonantes que nos convocam quando nos dedicamos ao estudo da historiografia oficial da Psicanálise.

E é para esses elementos desarmônicos que nos voltamos aqui; esse é nosso foco hoje: buscar por ruídos resistenciais para então procurar desfazer o trabalho de recalcamento aplicado à história da Psicanálise.

E é para nos orientar nesse trabalho que convidamos Deivison Nkosi, Marcelo Checchia, Maria Silvia Bolguese, Oswaldo Duek Marques, Paulo Sérgio de Souza Jr., Rafael Alves Lima e Renata Udler Cromberg. Para nos determos naquilo que foi colocado fora da historiografia psicanalítica oficial, para conhecermos algo mais dos autores excluídos e das teorias por eles apresentadas e pensarmos juntos sobre o sentido ideológico da construção da narrativa histórica oficial da Psicanálise. Nossos conferencistas nos permitirão saber um pouco mais sobre o sentido da exclusão de Otto Gross, Sabina Spielrein, Frantz Fanon e Erich Fromm, entre outros tantos personagens importantes que do mesmo modo foram descartados pela historiografia oficial da psicanálise como “degenerados” ou “desarrazoados”, tais como Wilhelm Stekel, Otto Rank, Alfred Adler, Victor Tausk, Hermine von Hug-Hellmuth e Ruth Mack-Brunswick. Quem sabe, possamos, a partir desses novos conhecimentos, contextualizar também as propostas teórico-clínicas contemporâneas, aquilo que temos chamado de clínicas públicas, clínicas, digamos, de alcance social, que serão o foco de nossos trabalhos no segundo semestre deste ano.

Iniciamos agora nossos trabalhos com a conferência de Marcelo Checchia: Introdução ao pensamento de Otto Gross.

Retomo as palavras de Marcelo Checchia em “Otto Gross: um psicanalista anarquista” (prefácio de Otto Gross: Por uma psicanálise revolucionária) para convocar nossa escuta para a obra desse “psicanalista revolucionário”, desse homem libertário, aberto a práticas clínicas invulgares, crítico ferrenho do patriarcado, da monogamia e da família burguesa tradicional, que ressaltava os efeitos deletérios do recalque da sexualidade, principalmente no que se refere às mulheres, para que assim empatizemos com esse psicanalista incomum que foi apresentado reiteradamente de forma caricata na história da psicanálise como um enfant terrible a ser domado.

Marcelo Checchia escreve:

“Otto Gross deixou uma obra que, a meu ver, o coloca no patamar dos psicanalistas que merecem um lugar não só na história da psicanálise, mas também no debate contemporâneo. Entretanto, para alcançar a riqueza dessa obra, é necessário ultrapassar a imagem estereotipada de um psicótico ou de um viciado (ou de ambos) ao qual seu nome foi associado. É preciso não se deter na crítica fácil (...). Sobrepujadas essas resistências, desvelam-se uma infinidade de pontos relevantes a serem debatidos” (idem, p. 71)

Conferencista : Marcelo Checchia

Mini-currículo : psicanalista, doutor em psicologia clínica pelo IPUSP, autor dePoder e política na clínica psicanalítica (2015),O sujeito e a adolescência (2002/2014), organizador de Combate à vontade de potência (2016) e um dos organizadores da edição brasileira das Atas da Sociedade Psicanalítica de Viena (2015).

Com Paulo Sérgio de Souza Jr. e Rafael Alves Lima organizou Otto Gross: Por uma psicanálise revolucionária (2017), no qual apresenta uma biografia resumida, intitulada “Otto Gross: um psicanalista anarquista”.



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[I] Psicanalista, Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora e supervisora no curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma, mestre e doutora em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo USP, autora de Freud e seu duplo: reflexões entre psicanálise e arte (1996/2016) e A viagem: da literatura à psicanálise (2003). Organizadora com Maria Lucia da Silva e Cristiane Cury Abud de O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise (2017).
[II] Le Goff, J. & Nora, P. Histórias: Novas Abordagens, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1976.
[III] Gay, P. Uma vida para nosso tempo, São Paulo, Companhia das Letras, 2012.
[IV] Rodrigué, E. Sigmund Freud – Século da Psicanálise - 1895 –1995. São Paulo, Ed. Escuta, 3 volumes, 1995.
[V] Roudinesco, E. Sigmund Freud em sua época e em nosso tempo, Rio de Janeiro, Zahar, 2016.
[VI] A trama dos conceitos (Perspectiva, 1982),Freud, pensador da cultura (Companhia das Letras,1985), O tronco e os ramos (Companhia das Letras, 2014).




 
 
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