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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    46 Junho 2018  
 
 
CINEMA

FRESTAS DE LUZ EM TEMPOS DE DESABASTECIMENTO


Nayra C. P. Ganhito [i]


“Não há nada mais lindo do que algo que desaparece diante de nossos olhos”. Esta frase, que bem poderia condensar todo o trabalho de Freud sobre a transitoriedade, irá ressoar ao longo de todo o percurso do filme de Naomi Kasawe, Esplendor (Hikari) [ii]. Filme que se conjuga sob o signo da perda de luz e do tempo irreversível, tendo como imagens recorrentes o sol poente e a escultura de areia que se desfaz ao vento.


O ofício da jovem protagonista, Misako, é narrar as imagens do cinema para que deficientes visuais possam fruí-las. A palavra técnica para este trabalho é audiodescrição, uma faixa de áudio gravada separadamente com descrições bastante literais de tudo o que acontece em cena, sem atropelar as falas do filme. É considerado um trabalho dificílimo, cuidadoso, cheio de tentativas e erros. Logo de início a vemos exercitar-se em trânsito numa grande cidade, nomeando para si mesma, uma a uma, as pequenas cenas que se desenrolam na rua. Em seguida, está numa sala de testes onde sua supervisora e um grupo de pessoas cegas opinam sobre seu trabalho de peculiar tradução. O teor das discussões gira em torno do dizer de menos ou dizer demais, indicando o que está em jogo na tradução de imagens em palavras para um outro: como dar elementos sem obstruir a “imaginação” dos ouvintes? A descrição formal não basta e uma perspectiva muito subjetiva pode fechar os olhos do outro. Assim, uma das questões do filme diz respeito ao que é olhar e, ainda, como dizer a imagem para quem não vê sem que a nossa perspectiva subjetiva obstrua a possibilidade daquele que a recebe construí-la singularmente.

Questão que remete diretamente à natureza do cinema mas que também evoca o ofício do analista, que escuta-olha a outra cena no discurso do analisando, ressoando com suas pontuações o que de sua visão nos alcança e lhe escapa. Ou ainda, a metáfora freudiana da cabine de trem para a situação analítica, na qual é o analisando que, em estado de livre-associação, fala suas imagens para quem não pode vê-las – o analista.

Nas sessões de testes, do longa dentro do longa vemos repetidamente cenas de seu final: uma casa à beira-mar, um barco que passa, o sol pálido sob névoa cinzenta, a figura da mulher de areia se desfazendo e Juzo, já idoso, em sua dor pela perda da amada que vai desaparecendo em seus braços - os “olhos distantes” e “a sorte de não lembrar de nada”. É ele ainda quem profere a frase sobre a transitoriedade e a finitude já citada. Por fim, o veremos caminhar duna acima, curvado e já sozinho, contra um fundo cheio de luz poente que brilha sobre seus ombros. “No alto, Juzo para, olha para o horizonte. O céu está totalmente plácido. Seu rosto se enche de esperança com a vida” - descreve Misako.

No entanto, essa formulação perturba seus ouvintes em sua ânsia de “ver” o filme; atribuindo um significado à cena final, ela diz demais. A jovem irá então consultar o diretor do filme, Kitabayashi, que também interpreta Juzo, seu protagonista[iii], indagando o que ele quis dizer com sua obra, se Juzo é seu alter ego... queria com sua tradução que o filme transmitisse esperança, “está errado?”. Ao que ele, pensativo, responde que o personagem, como ele mesmo, já está velho, nesta idade a linha entre a vida e a morte é mais indefinida... “o drama humano é que alguns querem morrer e têm que viver, enquanto outros querem viver e estão morrendo”.

No grupo de testes, o sr. Nakamori é o maior crítico do trabalho da empenhada Misako. Irritado, chega a dizer que seria melhor que ela se calasse de todo. A jovem sofre com as críticas que recebe, faz e refaz seus textos, procura entender... Pelo desconcerto e logo o interesse que acaba despertando nela, irá descobrir que é um fotógrafo renomado que vive um processo de perda progressiva da visão; as cores que antes capturava se dissipam numa névoa amarela cada vez mais espessa, como a memória da mãe de Misako e de Tokie, a mulher de Juzo.

Quando Misako vê as fotografias de Nakamori, essas imagens evocarão seu passado com inquietante estranheza. A partir daí a trama se desenvolve através da improvável relação entre os dois, que a diretora escolheu colocar sob o signo do amor romântico. Em certo momento, ela tenta sobrepor a foto com seu pai ainda menina na contraluz de um pôr do sol nas montanhas a uma paisagem que ele registrou, indicando a repetição e os deslocamentos que inspiram as escolhas amorosas.

Nakamori, que se debatia com a perda da visão e rechaçava as leituras de Misako, começa a ver beleza através delas; ela se conecta com seu passado e a ausência de seu pai através da fotografia dele. Poderá também reencontrar sua mãe idosa quando esta “foge”, desaparece, no mesmo bosque onde via o poente com seu pai: “Quando o sol cair por detrás da montanha seu pai chegará em casa”, diz a mãe. Cena que contrasta com os encontros até então frustrados entre as duas. O ambiente da casa materna/paterna traz um elemento muito caro à diretora - a natureza, a floresta, os lugares distantes do excesso de estímulos da vida urbana e capital, que nos afastam da sensorialidade e dos afetos. A diretora cresceu criada pela avó num ambiente assim, um universo de simplicidade e colheitas caseiras.

Naomi Kawase tem 48 anos e hoje se destaca no tão masculino cinema japonês. Ela mesma costuma escrever seus roteiros. Embora seus críticos tomem sua sensibilidade como tendência ao sentimentalismo, seu trabalho também é celebrado como um cinema do sensível que embala nossos afetos e uma abertura para a alteridade: “Nos seus últimos trabalhos, Naomi exercita um delicadeza que certos críticos apressados ou cínicos teimam em associar a uma ideia de cinema new age. Nas artes japonesas decerto há uma certa divisão entre o sândalo (a árvore que perfuma o machado que o corta) e o sabre (a violência que adoramos tanto no cinema). Certamente por pensar numa arte que expresse uma preocupação com o outro, Naomi faz filmes para o expectador pensar e sentir. Esplendor, além de outras coisas, é bem isso, olhar para o outro” (Ernesto Barros, 2017) [iv].

Nawase se evidencia assim como artista sugestiva que, ao invés de responder as perguntas que coloca, propõe uma experiência ao expectador. Sua estética sinestésica nos aproxima de nossas condições primárias de percepção; neste filme, a relação do visível/não visível com o tato e o som. A fotografia com figuras em hiperclose e fundo difuso, focos duvidosos, luzes estouradas, ângulos incomuns obtidos pela câmera na mão nos leva a tatear na perda da visão de conjunto - um pouco como nos sonhos. O tratamento do som nos faz ouvir detalhes com a acuidade dos cegos, sobretudo nas cenas no campo. O fundo musical delicadíssimo, quase contínuo, sem exaltações, compõe um embalo sonoro de curioso efeito misto, entre a doçura, a inquietação e a melancolia. A temporalidade é lenta e generosa para fruirmos a experiência com nossas próprias associações.

Na cegueira perde-se também a noção do tempo: Nakamori confunde dia e noite e ao abrir a janela com um “Está um lindo dia!”, terá que ouvir um “Não está”. Misako, para encontrar as palavras e sua medida, aprende que não se pode dizer tudo; Nakamori terá que confiar numa terceira pessoa, ver sem sua Rolleyflex. Será juntos que irão aos poucos enxergar o mundo radiante antes inacessível aos seus olhos.

“O fotógrafo é um caçador cuja presa é o tempo”, diz Nakamori. A captura possível do tempo se dá através do olhar singular de quem o percebe e guarda; num clique, o momento desaparece, mas fica na fotografia ou na memória. O cinema lida com o tempo e com a luz. A ânsia de reter o que desaparece permeia o difícil luto de quem sofre perdas - da visão, dos entes queridos, da memória, da juventude... O desaparecimento pode acontecer em vida, como na demência. Ou nesta outra alienação, o apego ao que se foi, que nos cega para o instante cintilante.

Em português, entre os sinônimos da palavra esplendor encontramos: brilho ou luminosidade intensa, clarão, cintilação, fulgor, resplandecência. Hikari, o som do título em japonês, significa apenas luz. É na procura de Misako pelas palavras justas para concluir o filme de Kitabayashi, e que encontrará repentinamente, que o sentido se desloca e descola: não mais reter, mas usufruir do momento esplendoroso do agora. Ver além da visão é neste filme tanto uma questão concreta como uma metáfora para a possibilidade de experimentar o que cintila na existência apesar das perdas, da dor e da morte. Como quis Freud, que viu na beleza efêmera das flores e do rosto humano as ocasiões privilegiadas para a celebração da vida.

Para saber mais:

http://www.cineplayers.com/critica/esplendor/3753;
http://vertentesdocinema.com/2017/05/23/critica-hikari-radiance/;
https://observatoriodocinema.bol.uol.com.br/criticas/2017/10/mostra-sp-critica-esplendor;
http://www.adorocinema.com/filmes/filme-252153/criticas-adorocinema/;
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2018/05/esplendor-oferece-imenso-prazer-intelectual-mas-apela-ao-sentimentalismo.shtml

 





[i] Psiquiatra e psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise e professora no curso Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea do Instituto Sedes Sapientiae. Integrante da equipe editorial deste Boletim.

[ii] Vencedor do Prêmio Ecumênico no 70o Festival de Cannes, 2017, estreou em maio de 2018 no Brasil. Misake Ayame interpreta Misako e Masatoshi Nagase interpreta Nakamori; roteiro e direção de Naomi Kawase; trilha sonora de Ibrahim Maalouf.

[iii] Tatsuya Fuji, o veterano ator do icônico O Império dos sentidos, de Nagisa Oshima, foi escolhido pela diretora para ambos os papéis.




 
 
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