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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    50 Junho 2019  
 
 
ESCRITOS

SÁBADO INQUIETO


RUBIA DELORENZO [i]


Neste sábado, tive medo.


Muito medrosa sempre, foi neste sábado que conheci a verdade do medo.

Acordei e vi uma discrepância nos olhos. Desiguais, estranhei minhas pupilas. Muito díspares uma da outra, davam à minha figura um ar de boneca antiga, o rosto de porcelana com seus olhos fixos, quase estrábicos. Vi dessas bonecas no Museu do Autômato, no alto da montanha do Tibidabo.

Naquele ambiente de coleção, ao lado dessas peças restauradas, feitas em alabastro, máquinas de velhos parques de diversão faziam companhia aos brinquedos. Neste espaço de reparo e conservação, suspensos no ar, um cheiro de nostalgia pelo perfeito e a tensão na angústia pelo declínio.

Nunca pensamos em como pupilas gêmeas dão harmonia aos olhos e ao rosto como um todo.

O que vi foi muito feio. Um dos olhos estava grande: uma bola intumescida, volumosa. E a pupila dilatada sem controle, como se fosse tingir de preto toda a brancura da córnea, escondia o colorido do olho, tornando-o escuro, sem bordas. O outro, operado, estava ali, comportado, no seu tamanho elegante e na cor marinha de sempre.

Os dois juntos no mesmo rosto, assim irregulares, compondo tão sinistra figura, trouxeram, para dentro do espelho, a boneca Olímpia, com seus olhos de vidro e sua aparência de louca. Parada ali na janela.

Sentia a areia doendo nos olhos. E aos poucos essa sensação ampliou-se, alucinada. Fez reverberar os muitos elementos ópticos do conto de terror: a ardência nos olhos, a ameaça de ver em seu lugar “horríveis cavidades negras e profundas”... e o duplo maldito: o vendedor de óculos, lunetas, de binóculos e lentes. Sondei com imprecisão, na névoa do que via, esses objetos multiplicados, dispostos na bancada da pia, feitos para regular a avaria do órgão.

Não bastasse a invasão de tantas reminiscências oculares, na superfície espelhada, polida e cristalina, o espectro do robô arrebentado também refletiu-se. Com um dos olhos bem encaixado no celuloide do rosto liso, fazia adivinhar as feições uniformes do passado. No entanto, mostrava sem pudor o avesso do outro olho: seu mecanismo arruinado, as molas partidas, pendentes, seu despedaçado interior.

Assustou-me essa memória de oficinas, cemitérios de brinquedos, de terrenos lotados de destroços, de parques decaídos com seus rangidos, gemidos de dor.

Assombrou-me essa visão dos olhos frios, dos olhos vítreos, dos olhos mortos que não podem ver.

É quando o corpo desanda.

Nunca senti tanto medo... eu desde sempre medrosa...

Junho - 2018



[i] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.




 
 
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