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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    50 Junho 2019  
 
 
NOTÍCIAS DO DEPARTAMENTO

ELES-NÓS


DEDÉ OLIVEIRA RIBEIRO [i]



Yo tengo tantos hermanos
Que no los puedo contar


Há anos ela escutava falar do Museu da Memória e dos Direitos Humanos, no Chile. Sete anos para ser mais exata, desde que, saindo apreensiva da faculdade de Psicologia – tão jovem! –, resistindo a começar a atender e, apaixonada por Arte, resolvera fazer uma pós para um dia tornar-se curadora. Fantástico, imperdível, assombroso... Foram muitos os elogios dedicados ao museu chileno que chegaram a seus ouvidos.


A respeito da Casa da Memória, em Montevidéu, nada. Ou quase nada, já que alguma lembrança guardada deve tê-la levado à internet para buscar “museu, ditadura, Uruguai”. Dois comentários no TripAdvisor podem ter chamado sua atenção: um que elogiava o museu, mas sentenciava “nada comparado à qualidade do museu respectivo no Chile”; e outro que dizia ser “modesto” o seu acervo. Hummm, era para lá que queria ir. Desistiu do museu de Arte pré-colombiana. Tem também o Torres-Garcia! Aquele cujas obras arderam em chamas no Rio de Janeiro? É: se houvesse tempo, em alguma hora de almoço, também iria. Era perto do Congresso, algum colega haveria de acompanhá-la.

Congresso? Sim, a coragem para começar a atender veio com o estudo da Psicanálise. Não estava fácil. Fazia três anos que se inscrevera no Curso – e que pintara seu cabelo de vermelho; esse era o primeiro congresso do qual participaria. Ficou na dúvida: não é só para adultos? – riu, de batom roxo, que ela dizia ser cinza, do alto de seus 30 anos. O tema era violência; os amigos da classe e o professor amado iriam apresentar trabalhos... Muitas mesas interessantes! Bom. Teria apenas um dia para visitar Montevidéu. À Casa da Memória.

Nitidamente, nenhum especialista em museografia dera palpites no espaço expositivo; nenhum estudo a respeito de interatividade ou de como provocar qualquer deleite do público passou pela cabeça de quem quer que fosse. Nada do que ela havia aprendido no caro curso de expografia parecia combinar com aquele lugar. Mas nada é muito. Havia emoção ali. Mas emoção de outro tipo. As cadeiras de um tecido meio plástico devem ter pretendido imitar couro. Rangem e bambeiam quando ela busca seu colo. Não enxerga nada com essa luz: o ápice da tecnologia presente no museu é um vídeo cassete que pretende exibir, em pequenas televisões de tubo, algumas imagens. O documentário francês era bom. Depoimentos. Mas ela tinha fome. Só que isso foi depois.

Na primeira sala, ela ouviu o grito vindo da parede: uma capa do semanário Marcha, de 30 de junho de 1973, estampa em letras garrafais “NÃO É DITADURA”. Abaixo, em letras pequenas, o decreto presidencial 646, de três dias antes, marco oficial do início da mais recente ditadura uruguaia. O decreto dissolve o Congresso, cria um Conselho de Estado que acumularia as funções dos Poderes Executivo e Legislativo... Escancara-se a ditadura que já vinha sendo construída. O último artigo dizia assim:

Proíbe-se a divulgação, pela imprensa falada, escrita ou televisionada, de todo tipo de informação, comentário ou gravação que, direta ou indiretamente, mencione ou se refira ao disposto pelo presente decreto, atribuindo propósitos ditatoriais ao Poder Executivo, e possa perturbar a tranquilidade e a ordem públicas.

Ela riu de novo. Nervosa. Será que poderia chamar de chiste? Ela queria fazer a monografia sobre isso... Inegável, diz respeito ao laço social! Ou ao seu dilaceramento. De qualquer forma, a capa-resposta-documento-petardo era um achado. Humor feroz. Crítica sagaz. Não posso usar minhas palavras? Uso as suas. Contra um decreto infame, uma manchete-paulada. É assim que se faz, então? Querem que me cale, eu grito? Era para aprender isso que ela fora parar ali? Ela queria muito gritar.

Este é um museu de memória. Um museu de palavras. São as palavras que a arrebatam. As palavras que as ditaduras tentam calar. Aquelas com as quais se constroem a psicanálise e aquele museu. Sentiu-se tocada por imagens delicadas e fortes. Imaginou se teria coragem de espalhar miguelitos nas ruas de São Paulo, se fosse preciso. Pequenos e cortantes. Como algumas pessoas? Mas foram as palavras que a perfuraram mais fundo.





Os depoimentos das mulheres torturadas foram dados a duas artistas, e depois escritos, assim, a mão, a lápis, ao lado dos retratos desenhados enquanto falavam. A cabeça dói. As crianças que tentavam visitar seus pais na prisão e sofriam nas mãos de uma bruxa sádica. A tupamaro que mudou seu jeito de ver o mundo quando estudou com Paulo Freire. A tortura. A tortura. A tortura. Os desenhos de Eugenia Bekeris e Maria Paulo Doberti eram de fato Dibujos urgentes.





A ditadura uruguaia começou antes de sua data oficial. E a nossa? Qual delas? Segundo a Malunguinho, em 1500... E quando terminou? 1985? E como chama, se não é ditadura?

E como se chama quando se perseguem professores, arrancam-se faixas em que se lia Abaixo o fascismo, cortam-se verbas de pesquisa e educação, homenageiam-se torturadores, estraçalham um músico com 80 tiros... como se chama? Quando foi que esse pesadelo começou? Ela sabe que essa história não é recente. Já entendeu que a polícia do seu país nunca foi democrática. Ela tem algumas dúvidas sobre o que é essa tal de democracia – que, com toda certeza, nunca chegou às periferias da cidade onde vive, que dirá aos tais “rincões do país”, que nunca nem soube onde ficavam.

Lembrar para não repetir, dizia sua avó. Tantas histórias. Será que onde se valoriza a memória, há mais esperanças de a barbárie não retornar? Ela não sabia responder. Mas precisava acreditar que sim.

Ela tinha visto o filme do Mujica. Ah! Será por isso, a busca na internet? As pessoas não tentaram impedir aquilo? Como deixaram que isso acontecesse? Lembrava agora que saiu transtornada do filme. Era o dia do segundo turno das eleições no Brasil.

Tantas vezes ela ria dos amigos que sonhavam com a revolução, em pleno século XXI! Eles não percebem? Mas agora ela estava ali, e estava com medo. Com vergonha por ter lembrado tão poucas vezes que havia pobres sendo torturados pela pobreza ou pela polícia - até que cresceu o risco de pessoas como ela passarem por isso. Isso sempre esteve aí. A gente é que não queria ver.



[i] Educadora, professora de história. Psicanalista, ex-aluna do Curso de Psicanálise do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Integrante do grupo Escuta Sedes.




 
 
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