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    50 Junho 2019  
 
 
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DEMOCRACIA EM RISCO: 100 DIAS DE GOVERNO BOLSONARO


Em 24 de abril participamos da conversa com Conrado Hübner Mendes, professor de direito Constitucional no largo de São Francisco (USP), em torno dos 100 dias de governo Bolsonaro. O evento foi organizado por Cristina Barczinski, sob a chancela do Grupo Pensar e Agir contra o Fascismo. O Boletim Online publica a seguir a fala de abertura da organizadora, seguida da reportagem da equipe editorial.


APRESENTAÇÃO DE CONVERSA COM CONRADO

CRISTINA BARCZINSKI [i]



Gostaria de agradecer a todos os presentes e ao Conrado por haver se disposto prontamente a comparecer a esta conversa aqui no Sedes. Ele é professor de Direito constitucional e colunista da revista Época, onde escreve justamente sobre as questões que surgem na área do judiciário, área esta que vem apresentando diversos desafios para quem se preocupa com os destinos do país.

O convite a Conrado foi feito no contexto da proposta surgida aqui no Sedes no 2º semestre do ano passado: diante da iminência da eleição de Jair Bolsonaro e da urgente necessidade de entender o momento que atravessávamos, um grupo de psicanalistas interdepartamentos convidou a nossa comunidade para uma primeira reunião a fim de pensar e agir contra o fascismo. Assim se designou esse primeiro “grupão”, que deu origem a diversos outros grupos que se propuseram a pensar formas de barrar a violência que já se anunciava, ou a escutar o sofrimento psíquico resultante deste momento - o grupo Escuta Sedes - ou ainda a buscar formas de defender o sistema democrático, fosse através de conversas viravoto com eleitores ou da produção de material a ser compartilhado nas ruas e nas redes sociais.

Entre outras iniciativas, tais grupos convidaram profissionais da área do direito e da sociologia para palestras, como as de Pedro Serrano, Plínio de Arruda Sampaio Jr e Ney Strozake ou para rodas de conversas como a que foi realizada com o educador Daniel Cara. Em comum, o interesse de pensar como havíamos chegado a um momento tão ameaçador, no qual um político com quase 30 anos de vida parlamentar sem destaque e com um discurso claramente fascista poderia ser eleito para a presidência do Brasil. Todas estas conversas se deram no período de dois meses. Vale lembrar que os vídeos de algumas delas estão disponíveis no site do Departamento de Psicanálise, assim como foram publicados artigos a respeito nas edições 48 e, em breve, 49 do Boletim Online.

Bom, estamos vivendo este momento agora. Em pouco mais de cem dias, nos vimos diante de espantosas escolhas de ministros, da presença maciça de militares no governo, da violência crescente por parte das forças do Estado, da visível determinação de destruir cada uma das conquistas sociais feitas nos últimos anos, ou seja, de uma operação de desmonte de uma democracia já bastante precária. Na conversa com Daniel Cara, surgiu entre nós a questão sobre o modo como uma leitura atenta da Constituição de 1988 poderia funcionar como estratégia de luta para as forças democráticas do país. A fim de continuar essa reflexão surgiu a ideia de convidar Conrado Hübner Mendes, professor de Direito Constitucional e com uma enorme facilidade em se fazer entender para um público leigo no assunto. Conrado é professor da São Francisco há 6 anos, com doutorado em Direito e Ciência Política. Nas suas áreas de pesquisa, consta a questão da separações dos poderes, o direito à igualdade e a linguagem do direito. A respeito desta última, encontrei na apresentação de Conrado uma frase que me soou esperançosa: “A linguagem dos direitos é o principal recurso moral e jurídico para a veiculação de demandas de justiça nas sociedades democráticas”. Esperamos realmente poder contar com isto, a estas alturas, Conrado.



DEMOCRACIA EM RISCO: 100 DIAS DE GOVERNO BOLSONARO



EQUIPE EDITORIAL DO BOLETIM ONLINE



Conrado Hübner Mendes começa sua fala afirmando que foram 100 dias de fúria ou de uma lua de fel. A nova política era tudo o que prometia: desprezo pela gestão pública e pela diplomacia. Forças muito poderosas de mercado aplicaram muito dinheiro no desejo persistente de negação, ao superestimar a clarividência do ministro Paulo Guedes e sua capacidade de se fazer respeitar. Atualmente encontra-se em ação um processo de corrosão social.

No primeiro mês, o governo pegou as demais instituições de férias e lançou vários balões de ensaio, experimentos autocráticos previsíveis: restrições à transparência, impedimento do acesso a documentos, mecanismos de monitoramento da sociedade civil. Houve ainda o atiçamento da violenta militância digital através de medidas jurídicas. Trata-se daquilo que poderíamos chamar de democracia iliberal.

Depois, seguiu-se a cozinha da experiência pública. Demissões no ministério da educação, restrições à expressão no ministério do meio ambiente, retirada dos grupos LGBT das preocupações do ministério, encontros internacionais que deixaram má impressão, além do constante risco à sobrevivência das comunidades indígenas.

O bolsonarismo existe como sistema ainda a ser decifrado, aos 30 anos da Constituição, “com o Brasil batendo à porta da liga dos governos autoritários” [ii] . O populismo autoritário que ele representa procura driblar as instituições e desestabilizar as políticas públicas.

A democracia está em risco? Essa pergunta não surgiu com Bolsonaro mas se agudiza em seu governo. A atual crise de 30 anos da democracia brasileira é decorrente de 3 testes de stress recentes: 2013, nas ruas e tribunais, em 2016 com o impeachment de Dilma Rousseff, e em 2018 nos tribunais e nas urnas.

Trata-se de um processo de desinstitucionalização. Uma política de “pânico e circo” desenha uma espécie de espaço de alheamento, blindado ao diálogo, e que produz uma superreação diante de problemas desimportantes aliada a uma subreação quanto aos problemas que realmente importam. O pânico tanto pode ser espontâneo como fabricado. Assim se constrói uma “democracia com déficit de atenção” sob o uso de armas de distração em massa, como a permanente fabricação de polêmicas que monopolizam as redes sociais, polêmicas estas que funcionam como cortinas de fumaça enquanto chovem decretos e cortes em orçamentos voltados às políticas sociais.

O bolsonarista da esquina é o problema pois, movido por medo e raiva, busca fazer “governo com as próprias mãos”, e a lei é ignorada. Em vista desta disposição, os discursos de ódio jamais serão pura retórica e devem ser combatidos de forma permanente. Ainda mais quando são produzidos por autoridades públicas como um presidente, governador ou prefeito, estes sinais não são inofensivos e causam efeitos assustadores, como o aumento da agressividade.

A intensificação da violência que surge a partir deste momento não é só quantitativa, é qualitativa também. Podemos identificar três camadas no cenário atual: violência criminal do crime de ódio e de todas a formas de discriminações punidas pela lei, violência na zona cinzenta da legalidade: assédio na rua, acirramento de conflitos e violência na área das microagressões, nas quais o agressor, ao ser acusado, invoca seu “direito ao politicamente incorreto”.

Em relação ao registro dos ideais, a democracia e o Estado de Direito têm regras de ouro. No caso da democracia, podemos contar com o pacto de civilidade e de continuidade, construído a partir do respeito aos adversários e do reconhecimento de sua existência. Quanto ao Estado de Direito, apóia-se no compromisso performático de respeito à lei e à legalidade, com a obediência às normas e a inserção em uma cultura democrática.

Em desrespeito a eles, há a violência coreográfica e simbólica praticada pelo presidente e sua família; a violência física dos bolsonaristas da esquina e das milícias virtuais e, finalmente a violência do colarinho branco, em nome da supressão de direitos sociais.

O judiciário é sempre um poder a ser atacado em regimes totalitários. Embora tenha o poder da retórica a seu favor e possa ser visto como a última trincheira democrática, o STF acabou por corroer seu capital político por sua própria comédia de erros. Pois pratica o que Conrado nomeia como ilusionismo procedimental, ao atuar entre dois extremos: “Quando um não quer onze não decidem” e “Quando um quer, decide sozinho e submete um país a sua deliberação”. O desafio do STF consiste em não se submeter à cartilha dos regimes autoritários, o que pode levar à sua definitiva domesticação.

No Mensalão em 2012, o STF teve seu pico de popularidade, quando o país, pela primeira vez, passou a conhecer e classificar cada ministro. Na Lava Jato, um fenômeno mais complexo, evidenciou-se o grau de arbitrariedade de decisões monocráticas, imprevisíveis em relação a quando e o que vai se decidir, deixando claros os conflitos de interesse entre os ministros. Além dessa imprevisibilidade, a recusa a construir jurisprudência é uma outra forma de autoempoderamento. Uma vantagem da jurisprudência é a de, a partir do julgamento de vários casos, estabelecer uma linha decisória que possa prevenir casuísmos nas decisões, o que funciona como uma forma de autolimitação. No entanto, Conrado considera que atualmente o STF está “sequestrado pela individualidade”, o que provoca unanimidade na crítica a sua atuação, vinda de vários pontos do espectro político. O próprio inquérito sobre ameaças feitas ao STF, proposta pelo Dias Toffoli, que dava sinais de colaborar com o autoritarismo, representa um espasmo autoritário. A superposição dramática da desmoralização do STF com a radicalização conservadora certamente coloca o tribunal em risco.

Conrado lembra que já se anunciam providências que visam neutralizar o tribunal, como antecipar a idade da aposentadoria dos ministros do Supremo e aumentar seu número, através da indicação de juízes que sejam apologistas do novo governo. Portanto parece remota a esperança de que o STF possa efetivamente funcionar como uma trincheira democrática, embora tenha um papel fundamental na contenção do que vem pela frente. Nas palavras do jurista, “a Constituição prevê alguns botões de fuga e resistência, mas dependemos de um STF hábil para apertá-los. [iii]

O palestrante busca enumerar quais seriam as características do bolsonarismo. Entre elas estaria a dimensão de ataque no relacionamento com as instituições para o exercício da legalidade autoritária, que dribla o processo legislativo e produz norma por decreto e medidas provisórias, como a flexibilização da posse de armas. Mas também a legalidade informal com promessa de leniência da fiscalização, por exemplo, a redução de radares nas estradas, a diminuição flagrante da fiscalização e da aplicação de multas ambientais, assim como vista grossa a casos de invasão das terras indígenas. E, ainda, a legalização da violência policial, como no pacote anticrime.

O estímulo ao antagonismo extremado na esfera pública se acentua, com a estigmatização dos adversários políticos – definidos como comunistas e corruptos –, usada como estímulo à guerra pública. A tecnologia levou a uma mudança qualitativa nesse processo, pois as redes sociais funcionam como caixas de ressonâncias da radicalização dos conflitos e da atmosfera de uma campanha política permanente. As liberdades de imprensa, pedagógica, religiosa e sexual passam a sofrer ataques constantes.

Neste momento, a partir das falas e decretos no governo, enxergamos a exacerbação de um programa de redução do Estado, através da pregação da meritocracia dos Chicago boys, pondo em risco o Bolsa Família e os programas de ações afirmativas, enquanto as corporações militares estão a salvo de qualquer tipo de intervenção mais radical.

A agenda da segurança, com a política de encarceramento e repressão policial, não fazem mais do que aprofundar os sinais de desdemocratização. O resultado da cultura de violência policial é termos no Brasil uma das polícias que mais matam e mais morrem no mundo. Por outro lado, os presídios, nos quais muitos detentos encontram-se em seu 3º ou 4º encarceramento, não passam de espaços eficientes de arregimentação de novos membros do crime organizado.

Mas, por fim, se trata do fato de não haver cultura democrática que resista a esse grau de desigualdade social. Sem a redução da pobreza, que no momento só faz aumentar, inclusive pelo desmonte das políticas sociais, torna-se muito distante a construção de um projeto emancipatório de país.

Pensando a partir da fala de Conrado, talvez pudéssemos falar em “pânico pré circo” - para além de cortina de fumaça, a produção do pânico poderia ser uma forma de nos distrair dos sinais vitais da angústia. Ou seja, às vezes o pânico anuncia de fato o circo. Em outubro, o filho 02 diz: o STF pode facilmente deixar de sustentar o Estado de Direito, à base de um cabo e um soldado. Neste abril, nós nos perguntamos se um STF enfraquecido não deixa de fato de sustentar o Estado de Direito.

Resta interrogar se a leitura atenta da Constituição, 30 anos depois, ainda seria capaz de inspirar uma espécie de renovação de votos entre setores progressistas, na afirmação de pontos comuns de identificação. Entendemos que as reuniões inéditas de ex-ministros do Meio Ambiente [iv] e de políticos e de representantes de vários partidos progressistas no movimento Direitos já [v] anunciam um esforço inicial no sentido de ultrapassar as diferenças de pauta em nome da luta pela democracia e da preservação dos valores expressos na Constituição de 1988. Esta pode certamente fornecer uma salvaguarda neste delicado processo de articulação da resistência ao populismo autoritário.



[i] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise, professora do Curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma, membro da equipe editorial do Boletim Online e integrante dos grupos de trabalho Sexta Clínica e Medicações em Análise.

[ii] Hübner, Conrado Mendes: “A política do pânico e circo” in Democracia em risco? 22 ensaios sobe o Brasil hoje. São Paulo, Companhia das Letras, 2018, p. 246.

[iii] Idem.




 
 
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