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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    50 Junho 2019  
 
 
O MUNDO, HOJE

ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE O TEMPO E O ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO NO ENVELHECIMENTO


LUCIANA GOULART MANNRICH [i]

Fazer 70 anos não é simples.
A vida exige, para o conseguirmos,
perdas e perdas no íntimo do ser,
como, em volta, mil outras perdas.

Fazer 70 anos é fazer
catálogo de esquecimentos e ruínas.
Viajar entre o já-foi e o não-será.
É, sobretudo, fazer 70 anos,
alegria pojada de tristeza.

Ó José Carlos, irmão-em-escorpião!
Nós o conseguimos…
E sorrimos
de uma vitória comprada a que preço?
Quem jamais o saberá?

À sombra dos 70 anos, dois mineiros
em silêncio se abraçam, conferindo
a estranha felicidade da velhice.



Carlos Drummond de Andrade



Muitos artigos sobre envelhecimento começam com a afirmação de que no ano de 2050 um terço da população brasileira será composta por pessoas com mais de 60 anos [ii] . Aliada ao fato de que hoje vivemos mais, o que é comemorado, vem também a constatação de que não estamos preparados para isso. O rápido envelhecimento populacional exige, portanto, novos estudos que possibilitem uma mudança na visão sobre o envelhecimento e no modo como construímos nossas cidades e como nos relacionamos com as diferenças a partir dessa nova constituição social.

Esse processo, por outro lado, coloca o envelhecimento em evidência, o que faz surgir uma série de filmes e livros com essa temática. É o caso da série Grace e Frankie (já na quinta temporada e disponível na Netflix), que aborda a vida de duas mulheres idosas que precisam se reinventar quando seus maridos assumem seu romance e decidem se separar delas. Cada capítulo aborda um dos muitos desafios do envelhecimento, tudo com muita graça e leveza.

Num dos episódios da última temporada, assistimos a duas senhoras tentando chegar ao outro lado de uma avenida. Uma delas, mais lenta, não consegue atravessar em tempo hábil e, ao chegar ao meio da avenida, precisa recuar por medo de ser atropelada. É angustiante acompanhar as reiteradas tentativas que culminam na desistência de chegar ao outro lado. Talvez o angustiante seja ver, tão acentuada, a fragilidade do corpo exposta à lógica da rapidez e da produtividade que rege as grandes cidades.

Para aguentar esse ritmo frenético é exigido de qualquer pessoa um corpo ágil e forte. Por essa razão, esse ambiente torna-se hostil para grande parte de sua população: crianças, idosos, cadeirantes e pessoas com qualquer tipo de necessidade especial, ao enviar constantes mensagens de que não têm lugar, não deveriam estar ali. A duração de um farol de pedestres revela o quanto a cidade não comporta o ritmo de qualquer pessoa que tenha um passo mais lento.

Para pensar sobre o efeito que essa rapidez tem sobre a psique de uma pessoa mais velha, vamos acompanhar como o psicanalista Jack Messy [iii] diferencia envelhecimento de velhice. Envelhecer, para ele, seria um processo irreversível que se inicia ao nascermos e se encerra com a morte. No meio, toda a vida com suas aquisições e perdas. A velhice, ao contrário, estaria referida unicamente ao fato de se chegar à idade avançada, rumo ao fim. Como definir em que momento se entrou na velhice? Para a psicanálise, tanto os escritos quanto a clínica parecem confirmar que essa entrada se dá quando um fato surge de maneira brutal e há uma ruptura que cessa o equilíbrio entre perdas e aquisições, deixando a pessoa incapaz de se relançar a um novo investimento libidinal.

É assim que um sujeito se torna um idoso, inscrito numa imagem negativa, incapaz de se ver como objeto de desejo, o que é confirmado pela sociedade que sinaliza o quanto ele é inútil e improdutivo. O tempo insuficiente do farol grita ao sujeito que este é velho, está perto da morte, não tinha nada que estar fazendo ali no meio da rua. Ignora o processo em andamento para condená-lo ao fim.

A questão do tempo acelerado lança o sujeito idoso numa percepção avassaladora de não pertencimento. Se de alguma forma ele se dava conta de seu processo de envelhecimento, ainda que de maneira discreta e não muito consciente, estar fora do tempo estipulado socialmente o lança direto na velhice, sem intermediação. É o que Messy vai apontar como o encontro de uma percepção de dentro, o sentir-se velho, e uma imagem de fora, que reforça a ideia de exclusão.

No poema que abre este artigo podemos notar que muita ênfase é dada às perdas. Mas é possível perceber que ainda há um equilíbrio entre o reconhecimento de tudo o que já se foi e a importância do que ficou, como esse amigo que se pode abraçar e com quem se comemora a entrada nos 70 anos. Ainda que o poeta se sinta velho, o amigo a quem abraça reafirma, desde fora, que ainda há lugar para eles no mundo.

No livro O Eu-pele, Didier Anzieu afirma que o funcionamento psíquico é duplamente dependente: do corpo biológico, que o suporta, e do corpo social, composto por todas as estimulações, crenças e normas que emanam do grupo social ao qual pertence, desde a família até o meio cultural.

Conforme envelhecemos, o corpo biológico, que nos primeiros anos costuma ser tão disponível e amistoso, começa a se colocar na cena com mais insistência: torna-se mais trabalhoso e exigente e já não se recupera tão rápido de uma noite mal dormida quanto antes. Com o passar dos anos, fica mais frágil e vulnerável e pode falhar como sustentação psíquica por se tornar a sede de muitas transformações penosas e de difícil superação. É mais difícil realizar as tarefas, a manutenção da saúde é mais trabalhosa, há dores mais constantes e uma maior aproximação da finitude, ainda que não se possa prever quando esta se dará [iv] .

Esse corpo que envelhece o faz junto ao grupo ao qual pertence, submetido a regras, valores, crenças. Esse corpo social se organiza de acordo com os valores vigentes, privilegiando certos grupos e excluindo outros, como já mostramos. Ao excluir, se torna menos continente, falhando como suporte psíquico e confirmando exteriormente a sensação interior de inutilidade do sujeito.

Essa sensação de exclusão pode ser tão grande que atrapalha o fluxo do sujeito pela cidade, fazendo-o sentir-se incapaz de sair de casa. Essa reclusão é percebida pelas pessoas mais próximas, que passam a se preocupar com a possível depressão que o acomete. Depois de buscar por muitos tipos de ajuda, algumas famílias chegam ao acompanhante terapêutico (AT) e fazem junto a ele uma aposta.

No meu cotidiano de acompanhante terapêutica me deparo com familiares angustiados por não saberem o que fazer com alguém que não se interessa por mais nada. O acolhimento a esses familiares e a escuta de sua angústia possibilita a construção da entrada do profissional na vida do idoso.

Desde sua chegada, que pode ser recebida com desconfiança, até a criação de um laço possível que permita surgir a confiança e a formulação de um pedido, qualquer que seja ele, há um fazer próprio do Acompanhamento Terapêutico (AT). Susana Kuras e Silvia Resnik definem essa especificidade lindamente: ajudar a procurar um destino para a dor psíquica. Gostaria de me aprofundar nessa definição para tentar extrair dela a complexidade que porta.

Em primeiro lugar o AT é aquele que ajuda a procurar, o que o insere numa interessante horizontalidade com o sujeito. O AT não sabe mais, apenas coloca-se ao seu lado para com ele procurar, o que implica que aceite a possibilidade de não encontrar. Creio que isso esteja ligado ao interesse pelo processo, mais do que por um possível objetivo a alcançar.

Se o AT ajuda a procurar um destino para a dor psíquica é porque crê que essa dor que acomete o sujeito, apesar de ser inteiramente dele, pode ser transformada em outra coisa, destinada, reconfigurada. A clínica do AT se propõe a acompanhar o sujeito onde quer que ele esteja. Muitos atendimentos acontecem dentro de casa, seja por conta de uma incapacidade física, medo de cair ou mesmo um desinteresse por novidades, e muitas vezes se ganha as ruas, com a possibilidade de se aventurar e reconquistar uma cidade que parecia perdida.

O AT, com sua presença constante, possibilita ao sujeito que sofre reencontrar prazeres perdidos, projetos que ficaram para trás. Ao se colocar ao lado desse sujeito com seu corpo e sua subjetividade, pode ser capaz de fornecer a sustentação psíquica necessária para que sejam retomados laços e para que se criem pontes entre esse sujeito e seu meio social, seus interesses, sua cidade.

Referências Bibliográficas

Andrade, Carlos Drummond de. Amar se aprende amando: poesia de convívio e de humor. Rio de Janeiro, Record, 1999.
Anzieu, Didier. O Eu-pele. São Paulo, Casa do Psicólogo, 1989.
Kuras de Mauer, Susana; Resnicky, Silvia. Territórios do acompanhamento terapêutico. Buenos Aires, Letra Viva, 2009
Messy, Jack. A pessoa idosa não existe. São Paulo, ALEPH, 1999



[i] Psicanalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

[ii] Segundo estimativa do IBGE.

[iii] Jack Messy é um psicanalista francês que trabalhou com envelhecimento por muitos anos. Alguns autores, como André Quaderi, consideram que ele foi o primeiro a apostar na presença de uma vida psíquica em pessoas que sofriam de demência e a criar um aparato teórico para se trabalhar com esses pacientes.

[iv] Há aqui a importante ação da medicina que toma o corpo velho de assalto, prolongando a vida ao máximo possível (o que nem sempre é bom ou desejado). Para esse assunto, recomendo o belo livro O tempo e os medos, de Maria Silvia Borghese.




 
 
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