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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    50 Junho 2019  
 
 
O MUNDO, HOJE

INTERFACES ENTRE FAMÍLIA E ESCOLA NA CONTEMPORANEIDADE [i]


ADRIANA ELISABETH DIAS [ii]



Vivemos uma época de rápidas e profundas mudanças que convocam Escola e Família ao diálogo sobre a educação de crianças e adolescentes. O convite à parceria, indispensável para a realização dessa impossível tarefa, nas palavras de Freud, tem gerado conflitos e críticas de uma à outra, indiscriminando, muitas vezes, o que seria de responsabilidade da esfera pública e da esfera privada. O presente trabalho problematiza, na perspectiva psicanalítica, a complexidade dessas duas instituições sociais, relacionando aspectos sociais e históricos às formas de subjetivação na contemporaneidade. A leitura psicanalítica presente, portanto, é fruto de uma revisão bibliográfica sobre as temáticas problematizadas e da escuta de atendimentos no consultório e na escola. Por meio dela, evidencia-se o lugar ocupado pelos adultos numa sociedade em que impera o desejo de gratificação narcísica e, consequentemente, uma infantilização dos sujeitos, exigindo um reposicionamento das instituições de educação e dos adultos que nela atuam.



Para compreender como se dá a interlocução presente entre Escola e Família na contemporaneidade é importante apresentar o panorama histórico do estabelecimento dessas duas instituições sociais.

Philippe Ariès (1975), em seu estudo sobre a História da Criança e da Família, nos mostra como a construção social das instituições Família e Escola começou a surgir em decorrência do estabelecimento de um sentimento de infância, na transição do século XVI para o XVII, na Europa.

Por volta do século XV, as crianças não desempenhavam um papel importante na família. As idades da vida eram divididas em infância, juventude e velhice, sendo a infância caracterizada apenas pelas primeiras idades. Somente por volta do fim do século XVI e começo do século XVII dá-se início ao estabelecimento do sentimento de infância que possibilita distinguir significativamente as crianças dos jovens e dos adultos. Os jovens, por sua vez, só eram diferenciados dos adultos pelo aspecto físico, mas as atividades desempenhadas por eles eram as mesmas.

É nesse processo de invenção da infância que começa a ser estabelecido o sentimento de família. O aprendizado das regras sociais dava-se a partir do convívio com os adultos ao oferecer valores sociais e morais, independente de laços sanguíneos e/ou afetivos. A família, assim, não exercia necessariamente uma função afetiva, o mais importante era a realidade moral e não a sentimental.

A família não tinha como função exercer as trocas afetivas e as comunicações sociais das crianças. Tal função era desenvolvida por uma outra família que não a mesma em que a criança nascia. Assim, as crianças eram chamadas de aprendizes e eram poucas as famílias que não faziam uso desse formato. Independentemente de sua situação econômica, era comum as famílias enviarem e receberem crianças para que estas aprendessem as boas maneiras. Desse modo, o serviço doméstico acabava sendo uma prática muito comum de educação.

No século XVII começa a haver uma passagem mais prolongada entre a infância e o mundo adulto. Algumas instituições escolares começam a ser estabelecidas, mas ainda voltadas somente aos clérigos e sem que haja uma importância e discriminação nas idades dos estudantes que conviviam juntos. Somente no final do século XVIII e início do século XIX é que surge uma certa regulamentação da escolaridade. Até então, a infância era limitada às primeiras idades, correspondendo, portanto, a uma ideia de infância curta, um período de transição que logo seria ultrapassado. Com a regulamentação da escolaridade, a infância é prolongada até perto do fim do ciclo escolar, sendo o processo de escolaridade algo exclusivo de crianças e jovens, embora com acessos distintos para as diferentes classes sociais. Dessa forma, a substituição da aprendizagem informal pela escola teve também a função de aproximar as crianças e a família por meio de seus laços afetivos.

No entanto, embora as crianças tivessem conquistado um espaço até então inexistente, os jovens já tinham as obrigações e direitos dos adultos. Não eram diferenciados dos mesmos, apenas eram adultos mais novos. É na virada do século XX que determinados fatores sociais promoverão uma ressignificação dessa juventude e serão determinantes para a invenção da Adolescência. Calligaris (2000) nos apresenta esse contexto mostrando que nessa época o jovem começa a assumir uma importância devido à sua capacidade de combater e obedecer, mas também de governar e comandar. Havia um mito do jovem sagrado e sábio, uma idealização e exaltação dos jovens, sobretudo em função das guerras.

Podemos dizer que após a 2ª Guerra Mundial o fenômeno da Adolescência atingiu uma maturação. Os jovens passaram a ser vistos como indivíduos que traziam riscos para a sociedade e para si próprios. Ao mesmo tempo mostravam a necessidade de proteção e ajuda particulares. A adolescência, assim, passou a ser objeto de inveja e temor, de admiração e repulsa. Sendo uma produção social, tornou-se um importante objeto de contemplação. Esse culto à juventude e à infância é um fenômeno atual que adentrou fortemente as instituições de educação, sobretudo a Família e a Escola.

Hannah Arendt (1954) afirma que essa supervalorização do mundo da criança proporcionou uma grande crise na educação. Segundo a autora, os adultos deixaram de assumir uma responsabilidade pelo mundo e de se legitimizar a exercer sua autoridade. A educação exige do adulto um papel de mediador entre o passado e o futuro, valorizando um legado social construído pela sociedade e almejando o engajamento dos jovens no processo civilizatório. Porém, com a idealização da Infância e da Juventude, o mundo adulto se coloca em pé de igualdade, culminando no fracasso dessa transmissão, pois elimina a diferença de gerações.

Maria Rita Kehl (2013) nos mostra que essa diferença dos lugares geracionais é o que autoriza os adultos a exercerem as funções paterna e materna. Condição indispensável para a responsabilização pela nova geração que está ameaçada justamente por conta do encantamento alienado pela infância e juventude. Essa desresponsabilização pelas novas gerações, decorrente de uma cultura narcísica em que impera o individualismo, deixa as crianças e os jovens, segundo a autora, em um estado de abandono moral porque, ao não assumirem essa diferença entre as gerações, não sustentam os riscos decorrentes de sua função, ficando desnorteados. Embora possa haver muito afeto e admiração, não há necessariamente a transmissão de valores éticos, deixando as crianças e os jovens vulneráveis nesse contexto, pois os adultos buscam satisfazer-se narcisicamente através deles.

Vemos, assim, que ambas as instituições, Família e Escola, ao se estabelecerem a partir da invenção da Infância, começam a desempenhar papéis próximos relativos à formação e educação das crianças e jovens, mas distintos em relação ao modo e objetivos. Com a Escola assumindo seu papel no âmbito do que seria social e, portanto, público, no sentido de oferecer os princípios e valores culturais de uma época, a Família passa a desempenhar seu papel de educação na esfera do que é afetivo e, portanto, da vida privada.

A passagem da família extensa para a família nuclear evidencia uma importante ruptura para uma nova configuração e fortalecimento da instituição Família. A família nuclear passa a vigorar estabelecida por um arranjo ou pela escolha amorosa entre um homem e uma mulher, escolha esta que culmina em uma conjugalidade que começa a ser valorizada, respeitada e preservada. É instituída em um contexto em que começa a haver uma importância do amor e do afeto nas relações. Torna-se o modelo vigente e normativo do que seria saudável, promovendo também uma divisão na responsabilidade pelos filhos entre o casal. A mãe/mulher passa a ser a responsável pelos cuidados do espaço privado e das articulações com os campos médico e escolar. O pai/homem assume a função de provedor e símbolo de autoridade. O Estado também passa a assumir a responsabilidade pela educação das crianças com a formalização dos estabelecimentos escolares. E é nesse contexto que surge a Psicanálise, quando Freud se interessa e escuta os sintomas subjetivos advindos dessa nova configuração familiar.

Birman (2007), interessado em analisar as diferentes formas de subjetivação ao longo desses tempos, utiliza-se dos conceitos foucaultianos de Biopolítica e Biopoder para evidenciar o interesse da sociedade em regular os indivíduos e a própria população com o pretexto de promover melhor qualidade de vida às pessoas. Assim, com a medicalização do espaço social, a regulação das genealogias, o estabelecimento da demografia, o controle da epidemiologia e da periculosidade social, passamos a vivenciar um espaço de higiene social em que as categorias de normal, anormal e patológico foram estabelecidas para que houvesse um controle da população por meio de uma regulação biopolítica. Em decorrência disso, há um interesse em preservar as crianças e os jovens dos males sociais, através de especialidades médicas criadas especificamente para isso e universalizando o ensino para que toda a população possa ser "bem-educada".

No século XX, com o movimento feminista e a descoberta de procedimentos anticoncepcionais seguros, há uma reviravolta nesse quadro. A mulher passa a disputar o mercado de trabalho e seu lugar na família passa a ser revisto. Seu desejo passa a ser também considerado assim como a sua satisfação sexual, podendo escolher quando e se queria ou não ter filhos, separando sua vida sexual da procriação. Pode, portanto, ser mulher e mãe ao mesmo tempo. Desta forma, o exercício do desejo começa a imperar socialmente. O poder na família passa a ser distribuído mais igualitariamente entre o homem e a mulher e, aos poucos, também entre pais e filhos. A conjugalidade passa a ser considerada para além da escolha amorosa, sendo fundamental que o outro potencialize a condição de existência do sujeito. Nesse sentido, a permanência dos laços conjugais é ameaçada, pois podem tornar-se efêmeros.

Daniela Teperman (2014), em seu estudo psicanalítico sobre Família e Parentalidade, resgata esse contexto histórico para mostrar uma diferenciação entre conjugalidade e parentalidade. A autora ressalta uma reorganização do que é da ordem da esfera pública e da esfera privada. A conjugalidade, ao ser estabelecida pela escolha dos cônjuges e, portanto, do amor entre eles, está na ordem do que é privado. Ao mesmo tempo advém uma responsabilidade legal pelas crianças que, ao passar para a esfera do que é público, ficam submetidas ao Estado - um terceiro social -, também responsável pelas crianças. Assim se estabelece a categoria de parentalidade às pessoas que publicamente se tornam as responsáveis pelas crianças.

Com as novas configurações familiares estabelecidas ao final do século XX e início do XXI, o que é considerado Família começa a ser colocado em questão, pois o modelo de família tradicional, em que há um pai, uma mãe e seus filhos morando todos juntos, não é mais a única referência. Nesse sentido, a escuta psicanalítica possibilita uma abertura para ressignificar o que é função da Família, pois a subjetivação, necessariamente fruto desse contexto, não depende apenas dos pais biológicos e das pessoas responsáveis legalmente pelas crianças e, sim, das funções estabelecidas e exercidas pelas pessoas que cuidam delas.

Teperman (2014) propõe o conceito de família como resíduo para ilustrar o que é indispensável a essa função, independentemente de sua configuração e época. Nesse sentido, a Psicanálise compreende que não há um modelo de família ideal, que padronizaria o que é uma subjetivação saudável, como se fosse possível ter um modelo ideal que normatizasse a subjetividade humana. Esse processo de subjetivação é algo que se dá a posteriori, não sendo possível regulá-lo antecipadamente, embora haja condições mínimas indispensáveis. Segundo Kehl (2013), a idealização de uma família normal, referenciada pela família tradicional e nuclear, é o que promove justamente o mal-estar contemporâneo em virtude dos males sociais serem vistos como fruto da dissolução de um modelo de família outrora vigente.

A Família, portanto, é o que possibilita essa condição mínima que promove a transmissão dos elementos necessários para que haja sujeito, não importando qual seja a configuração familiar estabelecida para que essa condição se dê. É indispensável que haja adultos implicados para esse fim, independente da forma como se unem amorosamente para isso, e que busquem juntos entoar esse canto ao sujeito que virá. Como diria o poeta, "...qualquer maneira de amor vale o canto, qualquer maneira me vale cantar" . [iii]

Com o estabelecimento contemporâneo de novas configurações familiares para além da família tradicional e nuclear, uma nova ruptura se dá em relação ao que é considerado Família. Essa nova estrutura da família contemporânea é nomeada por Kehl (2013) de família tentacular, em que o núcleo central da família foi implodido, configurando um desenho irregular em que uma diversidade de sujeitos pode conviver por meio de um laço afetivo. Contudo, isso imaginariamente se torna uma ameaça à existência da Família, por mais uma vez colocar em questão o que é legítimo à sua função. A presença das diversas configurações familiares assumindo-se como Família e demandando uma legitimação social de sua função, um reconhecimento de seu papel, instaura um medo social de aniquilamento pelo outro, culminando em um sentimento de intolerância a tudo o que é diferente. Há, assim, uma busca em apagar a diferença em prol do estabelecimento exclusivo do que é semelhante, ou seja, a iminência de um movimento de segregação.

A intolerância é um traço do mal-estar social contemporâneo que vigora fortemente, já anunciado por Freud como condição da existência humana, desde os homens primitivos. Refere-se à ideias e atitudes, mas também se apresenta como intolerância à existência de um outro diferente, podendo atingir a exigência de sua exterminação, virtual e até mesmo real. É inevitável reconhecer inúmeros exemplos que se apresentam cotidianamente, seja no estádio de futebol, na avenida Paulista ou nas redes sociais; seja em outro país, no prédio vizinho ou no grupo de WhatsApp da família. O conflito pulsional presente no aparelho psíquico de cada sujeito revela-se também nas relações dos sujeitos em sociedade. As mesmas forças dominantes estão presentes.

A intolerância, assim, revela um peculiar e sintomático destino pulsional presente no laço social contemporâneo. É uma representação recalcada que tem retornado e culminado na ânsia de extermínio do que é estranho ao sujeito da contemporaneidade. Estranho de si mesmo e, portanto, também familiar. Para Freud (1919) este estranho é o que é inquietante, o que promove o encontro do sujeito com seu duplo, o estrangeiro, o inimigo, o odiado. É o que desperta angústia e horror. O que deveria permanecer secreto e oculto, mas que emergiu e, por isso, deve ser exterminado. Assim, o sujeito busca eliminar no outro - ou eliminar o outro - aquilo que gostaria que não existisse em si mesmo. Ao almejar a todo o momento gratificações narcísicas por meio de seus semelhantes que validem sua existência, o sujeito contemporâneo frustra-se e sente-se desamparado cotidianamente ao deparar-se com esse estrangeiro. Angustia-se e reage, sendo a intolerância uma manifestação originária desse processo.

A intolerância e o extermínio do que é estranho revela a busca por uma gratificação narcísica. Tal gratificação se apoia na ilusão de que há uma posição superior a ser alcançada entre os homens, posição esta que, uma vez conquistada, imaginariamente não será mais perdida. O objeto que representar uma ameaça, portanto, será alvo de violência. O outro - o diferente - necessariamente precisa estar presente e subjugado para que o sujeito se reafirme como tal. Assim, ao revelar esse sintoma social, a Psicanálise contribui para uma escuta que pode possibilitar ao sujeito uma mudança no seu traçado pulsional, reintegrando o que está recalcado à cadeia associativa e possibilitando novos manejos para lidar com a angústia decorrente da revelação do que estava oculto.

A relação da Família com a Escola nesse contexto contemporâneo, especialmente no Brasil, revela também um desejo de retorno a uma indiscriminação entre essas duas instituições. Como diria outro poeta, " ...Narciso acha feio o que não é espelho" [iv]. A Família busca na Escola uma extensão de seus valores, o que certamente é necessário para que a empreitada educacional com as crianças e os jovens possa acontecer. Porém, nessa extensão confunde-se, muitas vezes, o que seria da esfera pública e da privada, impedindo que o ato educativo por meio desses veículos civilizatórios aconteça. A Escola trabalhará, necessariamente, com o coletivo e a diversidade. E, embora possa ser reconhecida por diferentes famílias como um socializador possível para seus filhos, trabalhará simultaneamente com todas essas famílias e, portanto, com as diferenças inevitavelmente presentes.

Essa diversidade no interior das escolas gera, muitas vezes, um questionamento do que de fato é de responsabilidade de sua função social. No Brasil, movimentos como o da "Escola sem Partido", que acreditam que a Escola tem propagado ideologias (partidárias, de gêneros, de comportamentos, entre outras), tiram da Escola sua função socializadora e a colocam num lugar utilitário, em que deveria estar a serviço de ensinar exclusivamente conteúdos relacionados aos conhecimentos acadêmicos das diferentes disciplinas curriculares. Porém, por ser justamente uma instituição que socializa crianças e jovens para a entrada na cultura e, portanto, para (con)viver com tudo o que nela estiver presente, ampliando a socialização feita num primeiro momento pela Família ao constituir subjetivamente seus filhos, a Escola não pode se limitar à transmissão de conteúdos acadêmicos.

Assim, com esses movimentos que, por si só, já são partidários e segregacionistas, a função da Escola tem sido ameaçada quando é questionada justamente pela essência do seu ato. Ao trabalhar com a diversidade, a escola possibilita às crianças e aos jovens questionar os valores transmitidos em sua família, sendo algo importante inclusive para fortalecer, se for o caso, o que ali vigora. E, na mesma medida, deparando-se com uma multiplicidade de estímulos ao conviver com essas diferenças na escola, as crianças e os jovens podem estranhar o que não é igual e simétrico e demandar a essa instituição ações que fortaleçam aquilo que ela quer transmitir.

Há também movimentos atuais que buscam uma desescolarização, em que a Família deveria ser a responsável exclusiva pela educação de seus filhos, sem a entrada de um terceiro nesse processo. Esses movimentos por um lado podem representar essa ideia imaginária de que a instituição escolar faria um mal aos seus filhos. E é a essa ideia a que nos atemos ao colocá-los como ameaça ao que a Escola tem como função primordial, qual seja: ampliar a primeira socialização feita pela família e promover a entrada das crianças na cultura, na esfera do que é público, coletivo e diferente. Porém, há também por parte de apoiadores dessa causa a intenção de questionar o modelo de educação escolar existente desde sempre, em que não há uma flexibilização da organização do espaço físico e do currículo, evidenciando uma rigidez que precisaria realmente ser rompida. Porém, isso é tema recorrente em escolas que têm buscado uma inovação de suas práticas, cujo projeto pedagógico se pauta na indispensável tarefa de ser ela a instituição responsável por esse legado social e, assim como o psicanalista que exerce seu ofício, precisa estar atenta e à altura de seu tempo histórico e social.

Com o advento das tecnologias e as novas formas de comunicação por meio da internet, os conflitos inerentes ao processo educacional entre a Família e a Escola têm tomado proporções avassaladoras ao provocar, diante de qualquer nível de insatisfação ou de frustração, uma imediata reação que precisa ser comunicada aos quatro ventos. Parece não haver mais espaço para o tempo de reflexão, para o tempo de espera que culminaria em novos pensamentos, em uma possível elaboração desses conflitos. As redes sociais, assim, revelam uma fragilidade dessas instituições que tanto têm se sentido ameaçadas com as exigências da contemporaneidade, com os questionamentos dos modelos atuais vigentes. Uma, a Família, por resistir à entrada do que é diferente, por não se abrir ao novo e tentar um retorno ao modelo tradicional. Outra, a Escola, por estar vulnerável a esse contexto e não ser valorizada na função social que lhe cabe, seja ela escola pública ou privada, pois ambas possuem seus "clientes" que concebem a educação escolar como um produto a ser consumido.

Vimos que, para a Psicanálise, essa ameaça à Família não se sustenta, pois ela resiste em função do laço familiar se ancorar justamente em uma função que é simbólica, definida por Teperman (2014) como uma função de resíduo. Poderíamos também dizer que em relação à Escola haveria uma função de resíduo? Qual seria ela? Vemos que cada vez mais a Escola é demandada para desempenhar seu papel de maneira a não conflitar com a função da Família. Por outro lado, a Família também é convocada pela Escola a participar da educação que se realiza nesse espaço que é público. Um convite, muitas vezes, apresentado como um convite à "parceria". Mas seria essa parceria possível?

Freud escreveu que educar, curar e governar são três profissões impossíveis [v.] Isso é decorrência da inerência de conflito nesses três ofícios que usam a linguagem como o meio primordial para convocar e engajar o outro. Aquilo que nos constitui humanos, nossas pulsões, não são educáveis. Portanto, o impossível no nosso caso seria alcançar um ideal, estabelecer uma conjuntura harmônica em que Família e Escola estariam de mãos dadas na condução da educação das crianças e jovens. Justamente por estarem em instâncias opostas e interdependentes nesse processo, uma da ordem privada e outra da ordem pública, não há um ajuste perfeito nessa comunicação. Portanto, em última instância, não haveria "parceria". O que seria possível, então?

A família como resíduo terá como função promover a constituição subjetiva de seus filhos ao transmitir seu legado, instaurando marcas simbólicas que fazem um sujeito, considerando a diferença sexual, as faltas, as imperfeições e assumindo as particularidades de sua época. Assim, a família faz a primeira função civilizatória do sujeito. Isso é exclusivamente de sua responsabilidade e é singular, ou seja, cada família faz a seu modo e atualiza essa transmissão da maneira que pode.

Por outro lado, a escola como resíduo teria como função primordial uma outra interdição nesses sujeitos que, depois de filhos, tornar-se-ão alunos e cidadãos nesse contexto, deparando-se com o que não é simétrico a si próprios. Essa interdição por meio do processo escolar foi o que caracterizou o estabelecimento das escolas com o advento da família moderna, assumindo a Escola a função de socialização e deixando para a Família uma função afetiva. Esses papéis eram claros e definidos, permitindo que cada uma os exercesse naquilo que lhes cabia. Porém, podemos dizer que a partir do que apresentamos sobre as novas configurações familiares e suas consequências para a Família e para a Escola como instituições sociais, o papel da Escola na contemporaneidade deve ser também o da interdição na própria família. Assim, ao ser demandada como extensão do que se passa na esfera privada de cada uma das famílias que a compõem, a Escola precisa assumir seu lugar de Outro, convocando as famílias a delegarem o que não lhes cabe, a largarem o osso para que seus filhos possam crescer e, assim, não estejam mais submetidos interminavelmente à condição de filhos e possam tornar-se responsáveis pelas suas ações e escolhas, seguindo seu caminho de crescimento e amadurecimento.

Vemos, assim, que a invenção da Infância - que historicamente foi o que possibilitou o estabelecimento da construção social da Escola e da Família - contraditoriamente se tornou, na contemporaneidade, aquilo que as colocam em xeque ao idealizar suas crianças e jovens como sujeitos que precisam de uma superproteção, que precisam estar blindados de possíveis interferências daquilo que não é simétrico a eles, daquilo que não seja extensão do que se passa no interior de sua família. Coloca em xeque a Família porque esta está sendo tomada pela diversidade e ilusoriamente só reconhece o que é simétrico a si. Coloca em xeque a Escola porque esta permite que uma demanda de completude se perpetue em seu interior ao não interditar as famílias, sendo muito difícil, nesse contexto, assumir sua função de promover e ampliar o processo de socialização de seus alunos.

Nessa empreitada educacional temos, então, adultos que estão infantilizados por uma sociedade que se exime de prover condições necessárias para o laço entre todos, culminando em um sentimento de desamparo radical ao não possibilitar uma identificação e reconhecimento pela diferença entre os sujeitos responsáveis por esse processo. Kehl (2013) dirá que esse desamparo é fruto da crise na instituição Família por ter se transformado em um agrupamento de pessoas pelos afetos e desejos, deixando de ser, ilusoriamente, uma sólida instituição com características e regras claras. A Família, portanto, ao ser colocada em xeque, deixa de ser uma representante da continuidade dos ideais e exigências da vida pública. Assim, a não correspondência dos valores presentes no espaço privado e público e a passagem de uma ética da produção para uma ética do consumo culminou nesse abalo da transmissão de valores entre as gerações. Para a autora, será a aliança entre os irmãos que poderá criar identificações horizontais e restituir algo que possibilitaria aos sujeitos encontrarem sua identidade diante de um contexto em que o pátrio poder está distribuído entre vários adultos na família contemporânea. Uma função fraterna complementaria, portanto, a condição residual da família.

Ainda segundo Kehl, o espaço público precisa ser revalorizado para, de fato, ser restituído. Isso só será possível se houver também o fortalecimento do laço identitário entre os alunos, filhos e cidadãos, que não deixam de ser, na estrutura familiar, os irmãos. Eles precisam deixar de acreditar, ilusoriamente, que há alguém que sempre os governará e os protegerá. É necessário, portanto, que os adultos transmitam essa possibilidade para as novas gerações. Nessa relação horizontal, os irmãos podem se reconhecer nas suas semelhanças e diferenças e constituir outros ideais e produção de cultura, a partir da construção coletiva de pactos que fazem da Lei uma função simbólica e não arbitrária de alguém.

Podemos dizer, assim, que as instituições de educação e os adultos que nela atuam precisam se reposicionar, reconhecendo-se, cada um em seu campo, no lugar de adulto e indispensável veículo civilizatório, em que a correspondência ao desejo infantil do outro não esteja referenciando às ações, em que não impere a busca por uma gratificação narcísica imediata nesse processo. Esse reposicionamento só será possível se houver de fato um reconhecimento de que esse movimento depende do adulto implicado na educação das novas gerações, correndo os riscos que forem necessários para que os sujeitos possam crescer, inclusive o de perder seus privilégios de criança e filho para educar seus próprios filhos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARENDT, Hannah (1954). "A Crise na Educação", In: Arendt, H. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Perspectiva, 2000.

ARIÈS, Philippe (1975). História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: LTC, 1981.

BIRMAN, Joel (2007). "Laços e Desenlaces na Contemporaneidade" , In: Jornal de Psicanálise, São Paulo, 40(72): 47-62.

CALLIGARIS, Contardo (2000). A Adolescência. São Paulo: Publifolha.

FREUD, Sigmund (1919). “O Inquietante”, In: Obras Completas volume 14, São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.328-376.

KEHL, Maria Rita (2013). Em Defesa da Família Tentacular . In: www.fronteiras.com/artigos.

TEPERMAN, Daniela Waldman (2014). Família, parentalidade e época: um estudo psicanalítico. São Paulo: Escuta / Fapesp.


[i] O presente texto é fruto de estudos e discussões produzidos no Grupo de Trabalho e Pesquisa Famílias no Século XXI, do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Foi apresentado no II Colóquio Internacional da Rede Universitária Grupos e Vínculos Intersubjetivos, realizado em abril de 2018 na cidade de São Paulo. Agradeço às colegas do grupo pelas contribuições, especialmente à Ariane Leal e Andrea Nosek Lengyel, pelos apontamentos ao texto.

[ii] Psicanalista, psicóloga e mestre em Psicologia Social pelo Núcleo Psicanálise e Sociedade - PUC-SP, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, membro do Grupo de Trabalho e Pesquisa Famílias no Século XXI, membro da equipe clínica do Projeto Ponte, experiência como coordenadora pedagógica e orientadora educacional em algumas escolas de São Paulo.

[iii] Milton Nascimento, música Paula e Bebeto.

[iv] Caetano Veloso, música Sampa.

[v] A esse respeito, conferir: Freud (1925) "Prefácio a Juventude Desorientada, de Aichhorn" e Freud (1937) "Análise Terminável e Interminável". In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: Edição Standard Brasileira, volumes XIX e XXIII, respectivamente, Rio de Janeiro: Imago, 1996.




 
 
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